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Incursões

Instância de Retemperação.

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o leitor (im)penitente 58

d'oliveira, 21.05.10

Três livros sobre política

 

Por razões meramente conjunturais (as datas aproximadas de saída) li estes três livros nos últimos dias. Todos eles me interessavam pelo que, de certa maneira, me ligavam á minha biografia. Pessoal e politica.

Vivi em Moçambique. Tomei parte (menor, menoríssima) numa luta em que se pretendia tirar essa terra da obscuridade colonizada e continuo a seguir com bastante atenção o que se passa lá e em África. Pelo menos na “África negra”.

Por um curto período de tempo, bastante curto, diga-se, mas relevante para o que considero a minha educação politica, achei possível a via “m-l” para o socialismo. Nunca sacrifiquei à versão albanesa e li com a maior suspeita, melhor dizendo incredulidade, uma série de autores que tinham regressado da China iluminados pelo “livrinho vermelho” que, honra me seja feita, me pareceu de um primarismo gritante. Ainda anda cá por casa mas como mero objecto escapado da erosão do tempo.

Não o conservo por ternura, antes como revulsivo, como prevenção e para me lembrar que somos todos mortais e capazes de erro.

Ternura, alguma ternura, liga-me ao terceiro livro que vem “historiar” uma “improvável aventura” que se chamou MES. Durei, como militante, nessa organização cerca de um ano. Saí de lá sozinho, descoroçoado e com a sensação de ter vivido e contribuído para um enorme desperdício de inteligência, de entusiasmo, de tentativa de mudar a vida.

Comecemos então por este livro: “Movimento de Esquerda Socialista, uma improvável aventura” (Paulo Bárcia e António Silva, Afrontamento, 2010).

Muitas das minhas prevenções deixariam de o ser se se considerar o livro não como um “ensaio histórico” mas apenas como um depoimento a quatro mãos com as virtudes e as limitações que isso obviamente pospõe. Se for isto, e só isto, estamos perante uma obra que se lê sem bocejos muito embora se possa sempre criticar certas partes em que se dá uma tentativa de explicação histórica (os flash-backs) que tenta criar o cenário ao progresso do percurso das personagens que se foram paulatinamente agrupando num hipotético “proto-MES” que só não é ainda mais discutível porquanto houve a ideia (feliz) de o qualificar como “proto”. Assim sendo, tudo é possível e pode sempre falar-se em algo que nebulosamente se iria consolidar no MES. E nem sequer é preciso que todas as personagens citadas acabem na organização política que se veio a constituir nos fins de Abril de 1974.

Uma segunda questão que também só se levantaria se estivéssemos perante o citado ensaio histórico é a completa lisboetização dos acontecimentos narrados. Como se o MES só lá tivesse existido sendo a província uma mera paisagem. Até na dedicatória final (aos militantes entretanto mortos, isso é evidente. Só do Porto faltam pelo menos cinco nomes de alguma relevância (Jorge Delgado, ex-quadro importante do PCP, ex-preso político; José Tavares Pinto, advogado sindical e candidato a deputado pelo MES em 1975; José Gomes Bandeira, jornalista, cineclubista, ensaísta, vindo do grupo de Coimbra 69 e candidato a deputado em 75; Luís Teixeira Neves, jornalista, escritor, longo percurso na esquerda activista, candidato a deputado em 75; Maria Manuel Antunes, activista sindical, membro da comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, candidata a deputada em 75). O mesmo se poderá dizer de Coimbra (João Seiça Neves, candidato a deputado em 76) e seguramente de outras terras....E isto que não sendo grave também não deixa de ser importante: é que Coimbra e Porto foram dois dos quatro distritos onde o MES suplantou todos os restantes concorrentes da esquerda revolucionária. Ou seja, algum trabalho, algum empenho, alguma acção hão-de ter sido necessários para se obter esta pequena adesão popular.

O livro fala dos percursos dos autores, dos seus mais chegados amigos, de muitas das figuras importantes do MES. Nada a opor desde que se tivesse usado de critério idêntico para as correntes e os grupos que fora de Lisboa vieram engrossar o MES e torná-lo mais do que “a little cercle of friends” E estou convicto que, por exemplo os militantes saídos sa crise de 69 ( a verdadeira, a de Coimbra) e agrupados na editora Centelha, e no “conj” eram em maior número do que os provenientes da facção “TPC” (Todo o Poder aos Cursos) de Económicas em Lisboa. É verdade que se citam três membros da Direcção da AAC em 69, mas eram muitos mais e também militaram no MES (Pio Abreu, Décio de Sousa José Gil, por exemplo) E, já agora, mesmo que por imodéstia quer Isabel Pinto e eu mesmo fomos eleitos para a DG da AAC no ano seguinte, E militámos no MES. E fomos candidatos a deputados... E tínhamos um longo percurso politico atrás, onde nem sequer faltaram as prisões (no meu caso três e uma detenção), alem de outras e variadas aventuras que de improvável tiveram apenas a virtude de não terem sido do conhecimento policial.

Um último reparo: o MES diz-se (e é verdade) nunca teve secretario geral, presidente, porta-voz. Também não teve uma “jota” ou, muito comum na época um sector da mulher. Convém porem lembrar que o MES durou escassos anos, seis no máximo, quatro dos quais em estado já débil pelo menos como força politica e intelectual interveniente e relevante. Todavia, se porventura tivesse continuado (suicidariamente como tantos outros cadáveres ainda com tabuleta à porta) lá chegaria...

Que fói uma aventura, é verdade. Que foi uma esperança e um ponto de apoio para muitos intelectuais que não se sentiam bem no quadro politico da época, sem dúvida. Que ainda hoje, o recordamos como um espaço de discussão, também. Mas que sofreu de todas as “doenças infantis” da esquerda “revolucionária”, que não percebeu a realidade mas tão só algum “ar do tempo” parece que não restam dúvidas. Que teve a coragem e a dignidade de se dissolver formalmente e de o fazer num tom de festa (que contrastou fortemente com alguns momentos insuportáveis de tensão interna) ninguém discute. Que depois de morto e enterrado, aparecem todos os dias “novos” militantes e simpatizantes que nunca por lá vimos, eis uma evidência e uma ironia que não vem em nenhum livro de teoria politica. Que deu ao país uma forte quantidade de ministros, deputados, responsáveis económicos, administrativos, judiciais, dirigentes de organismos culturais, reitores de universidade, lideres de opinião e activistas de toda a espécie que ultrapassa em muito o exíguo espaço e o reduzido número de militantes é algo que só não espanta quem por lá andou, discutiu, conviveu e se bateu por ideias e por novas práticas de vida.

E isso também perpassa neste texto doce e amargo que o “Didas” e António Silva escreveram. Esperemos que para segunda edição se tomem especiais cuidados e se aumente o número de páginas de modo a todos quantos se aventuraram nesses anos especialíssimos e ruidosos se reencontrem. Mais velhos, mais gordos, mais sós mas sempre vivos.

 

Miguel Cardina, autor de “A tradição da Contestação: Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo”, publicou recentemente “O essencial sobre a Esquerda Radical” (Angelus Novus, 2010). Tratar em pouco mais de cem páginas de uma história tão multifacetada e de um labirinto de siglas, organizações, grupos, revistas e manifestos, é quase milagroso. Cardina, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sabe do que fala, fez o trabalho de casa, mesmo se  - como é o caso – este texto sai de uma tese universitária que ainda está a ser por ele elaborada sobre temas afins.

Quem passou por esta geração e de algum modo foi mais do que testemunha de alguma da história e da vida de um par de organizações mais ou menos radicais, reconhece sem dificuldade o savoir faire e a preparação teórica do autor. E começa a esperar alvoroçadamente mais trabalhos do mesmo autor.

Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus têm uma sólida reputação entre os estudiosos do fenómeno africano colonial e post-colonial. Livros como Purga em Angola, A Pide-DGS na guerra colonial, A luta pela independência ou Memórias do colonialismo, são de leitura obrigatória para quem quiser perceber alguns dos mecanismos e muitas das situações vividas nos anos 60-70 na  África portuguesa. Sai agora um livrinho dos mesmos autores “Nacionalistas de Moçambique” (Texto, 2010) que não desmerece os anteriores. Confesso que ainda o estou a ler mas do lido já formei opinião suficiente para o recomendar. Imprescindível. Por todas as razões mas sobretudo por esta: dá a conhecer um certo número de “desconhecidos” do comum dos mortais e mesmo , de certo modo, dos interessados nestas questões. São curtas mas esclarecedoras biografias políticas de dez homens e uma mulher. Do lote conheci, e honro-me da sua amizade quatro (Noémia de Sousa, Malangatana, Rui Nogar e Ricardo Rangel) e é com alguma (muita) emoção que os revejo neste abençoado livrinho. E até já tenho uma pequena adenda a propor aos autores: A Noémia não publicou em vida nenhum livro mas em 2001, a Associação dos Escritores Moçambicanos com o formidável, generoso e culto, apoio dos “Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique, E.P.” editou “Sangue Negro” que reúne senão a totalidade pelo menos grande parte dos poemas da Noémia.

Claro que o livro está esgotadíssimo mas esperemos que alguém de bem e culto resolva algum dia reeditar esta mulher extraordinária que viveu no exílio português boa parte da sua vida. Foi cá que a conheci, no Técnico se não estou em erro, durante uma das “agitações estudantis” a que ela dava o que podia, um verso e a sua discreta mas corajosa presença. Foi talvez por isso, por contar isso, que uma prima minha, cooperante em Moçambique, conseguiu que uma proprietária do livrinho se desfizesse dele e o enviasse para este imprestável mas grato cronista.

 

* O Didas, o António Silva e Miguel Cardina não levam a mal que a gravura do texto seja uma fotografia da Noémia de Sousa já velhinha. A Dalila e o Álvaro ainda menos. É que a Noémia é mesmo um exemplo de tudo aquilo por que nós todos lutámos. Um belo e bom exemplo.

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