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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au Bonheur des Dames 303

d'oliveira, 24.12.11

Contra a corrente 

Durante anos (quinze, vinte, mais?) quando comecei a passar o Natal em Lisboa, era certo e sabido: no dia 24 encontrávamo-nos no Nicola, aí pelas dez dfa manhã, bebíamos o primeiro café e, zás!, que se faz tarde, subíamos com algum vagar para o Chiado, parando em todas as livrarias do caminho. O segundo café tomávamo-lo na Brasileira de onde obliquávamos para a a rª da Misericórdia, Largo Trindade Coelho, rª da Trindade batendo as capelinhas alfarrabistas. Mais algum café e retrocedíamos para as escadinhas do Duque para mais alguma livralhada até desaguarmos de novo no Rossio. Eram horas de almoço e nós tínhamos poiso certo: o velho “Restaurante Paris” para um belo peixe grelhado, muitos, muitos grelos, um vinho honrado outro café e troca de prendas. Nas mesas à volta havia grupos enormes, normalmente homens e miudagem, fugidos da azáfama do lar, “saiam-me daqui inúteis e levem a criançada. E não se atrevam a voltar cedo” parecia adivinhar-se nesses grupos com qquem durante tantos anos nos cruzávamos.

Depois tu ias para cima, para a tua casa na Gomes Freire e eu metia-me no carro directo a Oeiras, apanhar a tua irmã e a CG para ir para casa do Octávio. Fazia o carrego das prendas e chegava já quase noite, apesar do caminho se fazer em poucos minutos. Era aguardado por crianças ansiosas que tentavam adivinhar que prendas viriam nos sacos dos tios e da avó. E a consoada podia começar. Não começava, claro que nesses dias tudo começava tarde. Lá para depois da meia noite abriam-se as prendas, a pequena chilreava os grandes arrumavam os papeis de embrulho subitamente inúteis, recolhiam o seu quinhão e nós voltávamos para casa da Mãe.

Agora, tudo parece igual mas não. Tu já não estás. Ausente, dentro de ti, já não me reconheces, o teu sobrinho amador de livros, parceiro de excursão por tudo o que cheirasse a livralhada, conversas longuíssimas sobre autores e surpresas, repegadas de meses em meses quando eu, por acaso, vinha a Lisboa. Vês-me e perguntas quem é aquele? Em momentos de maior lucidez, finges que me reconheces, mas dois minutos depois volta a pergunta, quem é aquele?

O Natal, definitivamente, já não é o que era. Porque tu te escondeste dentro de ti, porque a Sara está no meio da selva na Guiné Conakry e hoje celebrará com os outros geólogos da sua equipa, tão expatriados como ela, um Natal tropical e a Margarida, em Toronto, verá a neve cair a rodos.

Seremos menos à mesa, haverá muito menos azáfama com presentes, agora apenas destinados aos mais novos, aos que ainda não ganham a vida, e o peso dos ausentes será bem maior. A nova geração tarda em aparecer e os mais velhos vão-se tornando escassos. E, no teu caso, o Alzheimer, esconde-te de nós. Sobra, apenas, a recordação, a terníssima recordação, de um tio e um sobrinho passearem na cidade perseguindo o livro improvável e escrevendo, sem saberem, o da vida. Terá durado quase setenta anos esta aventura, Tio Quim. Gostaria que a Margarida, a Sara e o Manel conservassem uma imagem semelhante e amável deste imprestável tio que lhes caiu em sorte. Sem Alzheimer, se possível.

 

(sei que este não é o texto de Natal que algum esforçado leitor esperaria de mim. Mas tem a virtude de ser verdadeiro, coisa que, sobretudo nos temps que correm, pode doer. De todo o modo, desejo-vos não este Natal de hoje mas umas largas e felizes dezenas de outros e melhores natais que partilhei com o tio Quim. E com os outros, aliás, que também não estão/estavam nada mal.)

 

*Lembrando a tia Mariana e o o tio Zé que já não estão. Abraçando a tia Néné e o tio Manuel, e tentando pegar na mão do tio Quim para lhe dizer quanto gosto dele 

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