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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

Au Bonheur des Dames 312

d'oliveira, 26.03.12

O dia do estudante, outra vez

 

 

 

Não é uma polémica, mesmo amável, como soe entre velhos amigos, companheiros e camaradas. É apenas uma clarificação “a cause des mouches”.

 

Ontem o meu querido amigo Jorge Sampaio deu, na televisão, uma curta entrevista a Marcelo Rebelo de Sousa. Sempre bem, sempre ele, sempre apressado. Porém, o Jorge esqueceu-se de um pequeno pormenor (que entretanto em artigo publicado antes não olvidara). Esqueceu-se de Coimbra!

 

Esqueceu-se da espectacular (o termo é dele, julgo) participação da Associação Académica de Coimbra e da Academia coimbrã, que aliás se confundiam. Desde a primeira hora,antes até, a Academia coimbrã pela voz dos seus legítimos representantes, pelo voto das suas Assembleias Magnas, pelo esforço e pela solidariedade da maioria dos seus estudantes, esteve de corpo e alma na “crise de 62”.

 

Comecemos por recordar duas datas: a Tomada da Bastilha de 1961 (25 de Novembro) já participada por estudantes de Lisboa e Porto; o Encontro Nacional de Estudantes realizado em princípios de Março de 1962, em Coimbra, onde se delinearam estratégias comuns e mobilizadoras das três academias. Foi aliás, aí, que o jornal da AAC, “Via Latina” passou a ser o “jornal dos estudantes portugueses”. A jornada desse esquecido dia foi épica pelo menos da parte dos estudantes portuenses que, como, abaixo, referi, obrigados a abandonar o(s) autocarro(s) em que viajavam, fizeram uns quantos quilómetros a pé dem medo das polícias variadas que os tentavam atemorizar.

 

Só por isto, querido Jorge, valia a pena teres voltado a mencionar Coimbra.

 

Mas há mais: Logo na segunda feira seguinte aos acontecimentos de Lisboa, participados por umas poucas centenas de estudantes de Coimbra que conseguiram furar o bloqueio policial às portas de Lisboa, a Direcção Geral daAAC convocou uma Asembleia Magna que decidiu imediatamente tomar toda uma série de medidas de apoio e solidariedade às associações lisboetas.

 

Coimbra aderiu à greve às aulas, posição incómoda, porquanto, como salientava a Direita académica, os aconteciemntos de Lisboa não se tinham replicado em Coimbra.

 

Mais e mais significativo: a crise fez com que o “luto académico”, nas suas formas mais tradicionais (batinas fechadas, insígnias escondidas) fosse proclamado.

 

Continuando: As Comissões da Queima das Fitas e o conselho de Veteranos decretaram a suspensão da grande festa coimbrã, o que, para além de elevados prejuízos financeiros, constituiu um facto que atingia toda a cidade que, aliás, se mostrou solidária.

 

A suspensão da Queima, que eu saiba, ocorreu apenas duas vezes. Em 1962 e em 1969 (Crise académica de Coimbra).

 

É pouco?

 

Sem querer entrar em polémica, inútil e tola, vale a pena referir a violência da repressão governamental em Coimbra:

 

- Encerramento das instalações académicas.

 

- Prisão até um mês de quarenta e quatro estudantes que ocuparam a AAC em 19 de Maio de 62 (convém acrescentar que juntamente com estes 44, havia mais duzentos que foram detidos nas instalações da Guarda Republicana. E que, nessa mesma noite, a cidade foi varrida por tumultos e manifestações dificilmente controladas pela polícia.

 

- Expulsão da universidade de trinta e tal estudantes, alguns dos quais proibidos de frequentar qualquer universidade por um ou dois anos.

 

Mesmo sem compararmos as populações universitárias das duas cidades (Coimbra e Lisboa) facilmente verificaremos que os números de Coimbra se mostram altamente desproporcionados e inflacionados. O Governo lá tinha as suas razões: com esta inusitada severidade pretendia sufocar no ovo a revolta estudantil na cidade onde o movimento estava mais coeso, estruturado e radicado.

 

Até a prisão dos 44 em Caxias tinha esse fim claro. Mais do que um castigo (e era-o sem dúvida) havia um aviso, uma clara mensagem à Academia coimbrã, à cidade em que todos se conheciam e onde uma notícia corria, em escassas horas, as repúblicas, as casas de hóspedes, as pensões estudantis, os cafés, os organismos académicos, as faculdades (todas juntas) a Alta, a Baixa, o Calhabé, o Tovim e Santa Clara: quem se mexer, come!

 

Éramos, os Coimbra, melhores? Nada disso! Éramos da mesma massa, da mesma luta e da mesma esperança. E éramos igualmente jovens.

 

Mesmo se engravatados! Esta vai para um texto de António Correia de Campos, outro velho amigo que conheci quando, expulso de Lisboa, arribou às mesas do café Mandarim. Engravatados, diz ele.  Mas alguém, nesse tempo e na universidade, atrevia-se a andar sem gravata, António? A gravata era tão comum quanto os jenas hoje e obrigatória nas aulas, pelo menos em Direito, a nossa comum faculdade. Até nos últimos anos do liceu se usava gravata!...

 

A cinquenta anos de distância e quinhentos de memória cansada, a coisa pode parecer estranha. Mas era assim mesmo. E as meninas estudantes usavam como dizes umas roupinhas “modestamente elegantes”. À uma era assim a moda feminina. Depois, a classe social da esmagadora maioria dos estudantes uiniversitários impunha e usava códigos a que era difícil resistir e muito menos subverter.

 

De resto, quem quiser compulsar fotografias do “Maio 68” francês (seis anos luz depois, tendo em conta o palco em que floresceu) vê milhares de rapazes de gravatinha, cabelo curto, ar composto.

 

A crise de 62, vinda na enxurrada de vários acontecimentos dramáticos (cá e lá fora), desde o golpe de Beja, até ao inicio da guerra colonial, veio coroar um movimento que se esboçara na luta contra o famigerado decreto 40.900 (domesticação das associações de estudantes) até à famosa carta dos trezentos universitários a pedir a demissão de Salazar. Havia aqui ecos da campanha de Delgado (1958), vestígios das derradeiras lutas do MUD juvenil e do seu último julgamento (o julgamento dos 52, no Porto) e um forte sinal da mudança verificada nhas estratégias das oposições políticas ao regime, reavivadas pela campanha eleitoral (Assembleia Nacional) de 1961 que, em Coimbra, dera lugar a uma forte manifestação de estudantes contra a proibição de um comício para juventude (Outubro  de 1961).

 

O regime não caiu, diz-se. Claro que não caiu. Nem era essa a intenção primeira e táctica das movimentações estudantis de 62. Ninguém, em seu perfeit0o juízo, esperava isso, pensava isso, previa isso. Pedia, reclamava-se tão só um espaço de liberdade, um intervalo no sufoco, uma aragem que o tempo internacional exigia e que, mesmo com censura, cá chegava. Pelo cinema, pelos livros, pelos jornais e, sobretudo pelos primeiros turistas e pela emigração de massa para as Franças e Araganças. 

 

O “paraíso triste” dos anos duros da guerra e do pós guerra já não era o mesmo, o do país embiocado, caturra, desconfiado. Nem a Igreja era a mesma! A estrangeira e a nacional. Mas mesmo sendo poucos os católicos anti-regime, isso era já muito. Significava, o que era temível, uma “fenda na muralha”. E Salazar, raposa matreira e hábil político, percebeu isso como ninguém. Como Marcello Caetano, aliás. O primeiro preferiu o bunker. E aguentou mais doze anos. O segundo, teve medo da liberdade. E pereceu ingloriamente, mesmo se, durante algum tempo, apareceu aureolado pela sua defesa da autonomia universitária em 62. 

 

Os jornais, como de costume, acharam mais interessante o folclore e a data redonda do que um esforço para ir um pouco mais além. Daí a vulgaridade dos comentários e dos noticiários. Foi pena.

 

Mas pena, o que chama pena, foi os facto dos participantes no movimento não terem querido ou podido ultrapassar a mera recordação. 

 

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