A palavra fez o homem, segundo a religião e a própria antropologia. E, por alguma razão, se diz que uma pessoa honrada é um homem de palavra; isto é, «não falta à verdade».
A importância da verdade nas relações intercomunicacionais é decisiva para o bom funcionamento das relações sociais. Toleramos o engano, aceita-se a verosimilhança, mas toda a gente repudia a mentira.
A moral religiosa radicaliza o conceito de verdade: não o coloca numa mera relação entre o pensamento e as palavras, mas num testemunho de vida. "Eu sou a verdade e a vida", afirma a Bíblia que o próprio Deus, acerca de si próprio, assim falou. Segundo o ponto de vista religioso, o testemunho de autenticidade de vida é o valor fundamental da verdade.
Na moral filosófica, o valor da verdade está, para o positivismo, na adequação do juízo à realidade. Se o que eu digo corresponde ao que a realidade é, então falo verdade. A filosofia da linguagem considera que a verdade resulta do melhor denominador comum entre as melhores argumentações. Temos, neste caso, a verdade-consenso. Habermas fala, a propósito, de uma comunidade de diálogo, onde o paradigma da consciência é substituído pelo paradigma da linguagem E diz que toda a argumentação se deve pautar pelas seguintes regras: 1º- amor à verdade (procurando que o conteúdo do que digo seja verdadeiro e que os outros acreditem); 2º- dever de sinceridade (só devo falar do que eu próprio acredito); 3º- dever de justeza (a minha enunciação deve harmonizar-se com o que é justo sob o ponto de vista da minha crença); 4º- o que eu digo deve ter um sentido (toda a discussão deve constituir uma partilha de pontos de vista, com a intenção sincera de respeitar a livre adesão ou rejeição de pontos de vista contrários.),5º- o princípio da não-contradição deve guiar toda a discussão.
Tanto sob o ponto de vista religioso, como sob o ponto de vista filosófico, o silêncio não é imoral. É talvez, por isso, que o povo (no sentido romântico - homens bons e de bons costumes) diz: «o silêncio é de ouro».
A propósito do facto de os EU terem rejeitado, no passado dia 6 do mês corrente, qualquer discussão sobre o segundo período do Protocolo de Kioto na Conferência sobre Alterações Climáticas em Buenos Aires, onde a União Europeia tenta debater o reforço das metas de redução das emissões poluentes, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados pronuncia-se aqui em termos bem pertinentes.
Por António Barradas Leitão, membro do Conselho Superior do Ministério Público eleito pela Assembleia da República, no Expresso de 4-12-2004:
APÓS o recente episódio das «cassetes roubadas», muitas das atenções da opinião pública viraram-se para o Ministério Público e para o seu papel no sistema de justiça. De cada vez que o dr. Souto de Moura presta declarações à comunicação social, seja em Badajoz ou à porta de casa, logo surge na imprensa uma multiplicidade de opiniões e comentários acerca da «crise da justiça» e da actuação do Ministério Público.
Muitas dessas intervenções constituem meros ataques ressabiados à pessoa do actual procurador-geral mas outras, de âmbito mais geral, acabam por colocar em causa o actual estatuto do Ministério Público e a sua autonomia.
No nosso sistema constitucional o Ministério Público é a entidade que representa o Estado e a quem cabe defender a legalidade democrática e exercer a acção penal. Desde 1978 que o MP é uma entidade autónoma, no sentido em que não depende de qualquer dos órgãos de soberania. E é aqui que reside o cerne da questão: de facto, nem sempre assim foi e há quem entenda que o Ministério Público não devia ser autónomo e que devia depender directamente do governo, como anteriormente acontecia.
No tempo da monarquia, e mesmo durante a monarquia constitucional, o MP dependia do rei ou dos governos deste e, no período da Iª República e do Estado Novo, também dependia directamente do governo. Era o Ministro da Justiça quem nomeava o PGR e os procuradores, que recebiam ordens directas do ministro, mesmo sobre a condução dos processos. O Ministério Público era, assim, uma mera emanação do poder executivo junto dos tribunais, eles próprios muito limitados na sua independência, embora formalmente independentes.
Com o 25 de Abril, toda a organização judiciária sofreu profundas alterações, diminuindo drasticamente a capacidade do poder político em interferir no poder judicial e também no MP. A partir de 1978 deu-se o reconhecimento na lei da autonomia do MP, conceito que foi aprofundado com as sucessivas revisões constitucionais e alterações da respectiva lei orgânica.
Hoje, o Ministério Público é uma entidade constitucionalmente autónoma em relação aos órgãos de soberania – parlamento, governo e tribunais – isto é, não depende de qualquer deles, estando sujeito a diversos mecanismos de fiscalização externa e de auto-regulação, designadamente através do Conselho Superior do MP, do qual fazem parte, além do PGR e de membros eleitos pelos próprios magistrados, também representantes da Assembleia da República e do Ministro da Justiça.
Está instituído, assim, um sistema complexo de auto-regulação da estrutura do MP que, em princípio, impede a sua instrumentalização pelo poder político e lhe garante a necessária liberdade de actuação. Ao mesmo tempo, existe um elevado grau de autonomia interna, que permite que cada magistrado tenha liberdade de actuação, naturalmente dentro dos limites da lei. Embora a estrutura esteja hierarquizada, os magistrados do MP devem obediência à lei e podem recusar-se a cumprir ordens dos superiores hierárquicos se as considerarem ilegais ou contrárias à sua consciência jurídica.
Este duplo sistema de autonomia - externa e interna - destina-se a garantir que a actuação do MP, em cada momento, será sempre pautada por estritos critérios de legalidade e sem sujeição a pressões exteriores, nomeadamente de outros poderes.
O nosso sistema de autonomia do MP é singular em termos europeus, apenas se encontrando em Itália um sistema com um grau de autonomia superior ao nosso. Por outro lado, em Espanha, ou em França, o MP não dispõe da mesma autonomia que o MP português, continuando muito dependente do poder político. Mas, é bom dizê-lo, nestes países as funções do MP também são muito diferentes das do seu congénere português, a começar logo pela direcção dos inquéritos criminais que, em ambos os países, é exercida por juízes de instrução criminal
Em resumo, o sistema de autonomia português faz a síntese entre os sistemas em que o MP é completamente independente, como em Itália, dos sistemas em que esta magistratura depende directamente do poder político, como em França ou na Alemanha. É um sistema equilibrado, que confere aos cidadãos garantias de não interferência do poder político nos processos judiciais, mas que não corta completamente a ligação com este, mantendo permanentemente abertos canais de comunicação com o Parlamento e com o Governo.
A «governamentalização» do MP comportaria elevados riscos, como o da politização da justiça. A garantia de não interferência do poder político nos processos judiciais diminuiria e, a cada caso, criar-se-ia a suspeição de que certos processos poderiam ser iniciados ou arquivados em função dos ventos políticos que no momento soprassem. E esta suspeição seria particularmente grave nos processos que envolvessem gente ligada à política e em caso de crimes graves como, por exemplo, os de corrupção.
Qualquer alteração no sentido de limitar a autonomia de que o MP hoje beneficia, conseguida através de um processo dinâmico de revisão da Constituição e de aperfeiçoamento das leis verificado ao longo dos últimos 30 anos, seria um retrocesso grave em termos de direitos e garantias, dos cidadãos.
É claro que nem tudo vai bem no funcionamento do Ministério Público, mas não é pela via do cerceamento da sua autonomia que se conseguirão obter as melhorias necessárias. A orgânica do MP deve ser melhor adequada às suas funções, os seus quadros e meios devem ser melhor geridos e aproveitados, a sua articulação com as polícias deve ser efectuada noutros moldes e o controlo democrático sobre o seu funcionamento deve ser aprofundado, mas mantendo a autonomia de que hoje goza e que não é um privilégio de qualquer corporação mas apenas e tão só um meio de garantia da existência de um verdadeiro Estado de Direito e de uma melhor justiça para todos os cidadãos.
Hoje à tarde (ontem, já), um colega do mesmo prédio, simpatizante do PS, com fortes ligações à Igreja e aos Escuteiros, boa alma e bom advogado, sem ligações ao futebol, veio cravar-me um cigarro e aproveitou para protestar contra a justiça no caso "Apito Dourado" e chegou mesmo a garantir-me que, se fosse caso disso, ele, homem de paz e sem ligações ao futebol, iria a Gondomar numa qualquer manifestação de apoio a Pinto da Costa. Fez mais: acusou-me de ser um dos culpados da situação, porque vou à TV branquear a actuação da justiça naquilo que ele considera serem manifestas injustiças.
Ele não tem razão, praticamente em quase tudo. Mas a discussão com ele é sempre estimulante, porque acaba sempre na religião, coisa de que ele sabe muito e eu não sei nada.
Mas hoje foi injusto. Enquanto comentador das coisas do mundo, eu não sou um branqueador de ilegalidades. E se por vezes pode acontecer, é apenas por ignorância técnica e nunca por uma atitude deliberada de branquear o que quer que seja. Aliás, a minha atitude como advogado demonstra-o à saciedade.
Recordo, até, que da última vez que comentei publicamente a Casa Pia fui muito duro para com a investigação e as corporações do direito. E fui muito crítico com o julgamento que está a ser feito na praça pública. Sublinhei os efeitos nefastos de haver quem acredite piamente na culpa dos arguidos, mesmo sem saber porquê, e os efeitos nefastos de haver quem acredite piamente na inocência dos arguidos, também sem saber porquê. Disse mais: que há pessoas que querem que os arguidos sejam condenados, ainda que sejam inocentes, e que há pessoas que querem que eles sejam absolvidos, ainda que sejam culpados.
Tudo isto reconduz-nos a uma questão: a justiça é fiável? E a outra: todos os cidadãos são iguais perante a lei? São questões que já aqui abordei noutro registo. Todos os dias penso nisto. Coisas que também são de boa alma. E concluo, aos poucos, coisas extraordinárias: se é verdade que há operadores da justiça que são incapazes de "atacar" figuras ditas intocáveis, numa atitude covarde, também é verdade que há operadores da justiça que se deleitam a "atacar" os ditos intocáveis, numa atitude também covarde.
Não faltam exemplos de uns e de outros e ambos estão errados. E ambos dão uma má imagem da justiça.
É óbvio que eu estou fora. Sou advogado. Sei perfeitamente o que não devo defender e o que devo defender. E sei mais: sei o que estou obrigado a defender. Ou a atacar. Sem olhar à intocabilidade de quem ataco ou à fragilidade de quem defendo...
(A desenvolver um dia mais tarde. Até porque, como já aqui disse, há uns que são mais intocáveis do que outros - absolutamente)