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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

A palavra e o silêncio

Incursões, 08.12.04
A palavra fez o homem, segundo a religião e a própria antropologia. E, por alguma razão, se diz que uma pessoa honrada é um homem de palavra; isto é, «não falta à verdade».

A importância da verdade nas relações intercomunicacionais é decisiva para o bom funcionamento das relações sociais. Toleramos o engano, aceita-se a verosimilhança, mas toda a gente repudia a mentira.

A moral religiosa radicaliza o conceito de verdade: não o coloca numa mera relação entre o pensamento e as palavras, mas num testemunho de vida. "Eu sou a verdade e a vida", afirma a Bíblia que o próprio Deus, acerca de si próprio, assim falou. Segundo o ponto de vista religioso, o testemunho de autenticidade de vida é o valor fundamental da verdade.

Na moral filosófica, o valor da verdade está, para o positivismo, na adequação do juízo à realidade. Se o que eu digo corresponde ao que a realidade é, então falo verdade. A filosofia da linguagem considera que a verdade resulta do melhor denominador comum entre as melhores argumentações. Temos, neste caso, a verdade-consenso. Habermas fala, a propósito, de uma comunidade de diálogo, onde o paradigma da consciência é substituído pelo paradigma da linguagem E diz que toda a argumentação se deve pautar pelas seguintes regras: - amor à verdade (procurando que o conteúdo do que digo seja verdadeiro e que os outros acreditem); - dever de sinceridade (só devo falar do que eu próprio acredito); - dever de justeza (a minha enunciação deve harmonizar-se com o que é justo sob o ponto de vista da minha crença); - o que eu digo deve ter um sentido (toda a discussão deve constituir uma partilha de pontos de vista, com a intenção sincera de respeitar a livre adesão ou rejeição de pontos de vista contrários.),- o princípio da não-contradição deve guiar toda a discussão.

Tanto sob o ponto de vista religioso, como sob o ponto de vista filosófico, o silêncio não é imoral. É talvez, por isso, que o povo (no sentido romântico - homens bons e de bons costumes) diz: «o silêncio é de ouro».


Ambiente e Direitos Humanos

Incursões, 08.12.04
A propósito do facto de os EU terem rejeitado, no passado dia 6 do mês corrente, qualquer discussão sobre o segundo período do Protocolo de Kioto na Conferência sobre Alterações Climáticas em Buenos Aires, onde a União Europeia tenta debater o reforço das metas de redução das emissões poluentes, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados pronuncia-se aqui em termos bem pertinentes.

Pela autonomia do Ministério Público

Incursões, 08.12.04
Por António Barradas Leitão, membro do Conselho Superior do Ministério Público eleito pela Assembleia da República, no Expresso de 4-12-2004:

APÓS o recente episódio das «cassetes roubadas», muitas das atenções da opinião pública viraram-se para o Ministério Público e para o seu papel no sistema de justiça. De cada vez que o dr. Souto de Moura presta declarações à comunicação social, seja em Badajoz ou à porta de casa, logo surge na imprensa uma multiplicidade de opiniões e comentários acerca da «crise da justiça» e da actuação do Ministério Público.

Muitas dessas intervenções constituem meros ataques ressabiados à pessoa do actual procurador-geral mas outras, de âmbito mais geral, acabam por colocar em causa o actual estatuto do Ministério Público e a sua autonomia.

No nosso sistema constitucional o Ministério Público é a entidade que representa o Estado e a quem cabe defender a legalidade democrática e exercer a acção penal. Desde 1978 que o MP é uma entidade autónoma, no sentido em que não depende de qualquer dos órgãos de soberania. E é aqui que reside o cerne da questão: de facto, nem sempre assim foi e há quem entenda que o Ministério Público não devia ser autónomo e que devia depender directamente do governo, como anteriormente acontecia.

No tempo da monarquia, e mesmo durante a monarquia constitucional, o MP dependia do rei ou dos governos deste e, no período da Iª República e do Estado Novo, também dependia directamente do governo. Era o Ministro da Justiça quem nomeava o PGR e os procuradores, que recebiam ordens directas do ministro, mesmo sobre a condução dos processos. O Ministério Público era, assim, uma mera emanação do poder executivo junto dos tribunais, eles próprios muito limitados na sua independência, embora formalmente independentes.

Com o 25 de Abril, toda a organização judiciária sofreu profundas alterações, diminuindo drasticamente a capacidade do poder político em interferir no poder judicial e também no MP. A partir de 1978 deu-se o reconhecimento na lei da autonomia do MP, conceito que foi aprofundado com as sucessivas revisões constitucionais e alterações da respectiva lei orgânica.



Hoje, o Ministério Público é uma entidade constitucionalmente autónoma em relação aos órgãos de soberania – parlamento, governo e tribunais – isto é, não depende de qualquer deles, estando sujeito a diversos mecanismos de fiscalização externa e de auto-regulação, designadamente através do Conselho Superior do MP, do qual fazem parte, além do PGR e de membros eleitos pelos próprios magistrados, também representantes da Assembleia da República e do Ministro da Justiça.

Está instituído, assim, um sistema complexo de auto-regulação da estrutura do MP que, em princípio, impede a sua instrumentalização pelo poder político e lhe garante a necessária liberdade de actuação. Ao mesmo tempo, existe um elevado grau de autonomia interna, que permite que cada magistrado tenha liberdade de actuação, naturalmente dentro dos limites da lei. Embora a estrutura esteja hierarquizada, os magistrados do MP devem obediência à lei e podem recusar-se a cumprir ordens dos superiores hierárquicos se as considerarem ilegais ou contrárias à sua consciência jurídica.

Este duplo sistema de autonomia - externa e interna - destina-se a garantir que a actuação do MP, em cada momento, será sempre pautada por estritos critérios de legalidade e sem sujeição a pressões exteriores, nomeadamente de outros poderes.

O nosso sistema de autonomia do MP é singular em termos europeus, apenas se encontrando em Itália um sistema com um grau de autonomia superior ao nosso. Por outro lado, em Espanha, ou em França, o MP não dispõe da mesma autonomia que o MP português, continuando muito dependente do poder político. Mas, é bom dizê-lo, nestes países as funções do MP também são muito diferentes das do seu congénere português, a começar logo pela direcção dos inquéritos criminais que, em ambos os países, é exercida por juízes de instrução criminal



Em resumo, o sistema de autonomia português faz a síntese entre os sistemas em que o MP é completamente independente, como em Itália, dos sistemas em que esta magistratura depende directamente do poder político, como em França ou na Alemanha. É um sistema equilibrado, que confere aos cidadãos garantias de não interferência do poder político nos processos judiciais, mas que não corta completamente a ligação com este, mantendo permanentemente abertos canais de comunicação com o Parlamento e com o Governo.

A «governamentalização» do MP comportaria elevados riscos, como o da politização da justiça. A garantia de não interferência do poder político nos processos judiciais diminuiria e, a cada caso, criar-se-ia a suspeição de que certos processos poderiam ser iniciados ou arquivados em função dos ventos políticos que no momento soprassem. E esta suspeição seria particularmente grave nos processos que envolvessem gente ligada à política e em caso de crimes graves como, por exemplo, os de corrupção.

Qualquer alteração no sentido de limitar a autonomia de que o MP hoje beneficia, conseguida através de um processo dinâmico de revisão da Constituição e de aperfeiçoamento das leis verificado ao longo dos últimos 30 anos, seria um retrocesso grave em termos de direitos e garantias, dos cidadãos.

É claro que nem tudo vai bem no funcionamento do Ministério Público, mas não é pela via do cerceamento da sua autonomia que se conseguirão obter as melhorias necessárias. A orgânica do MP deve ser melhor adequada às suas funções, os seus quadros e meios devem ser melhor geridos e aproveitados, a sua articulação com as polícias deve ser efectuada noutros moldes e o controlo democrático sobre o seu funcionamento deve ser aprofundado, mas mantendo a autonomia de que hoje goza e que não é um privilégio de qualquer corporação mas apenas e tão só um meio de garantia da existência de um verdadeiro Estado de Direito e de uma melhor justiça para todos os cidadãos.

Coisas da Justiça

Incursões, 08.12.04
Hoje à tarde (ontem, já), um colega do mesmo prédio, simpatizante do PS, com fortes ligações à Igreja e aos Escuteiros, boa alma e bom advogado, sem ligações ao futebol, veio cravar-me um cigarro e aproveitou para protestar contra a justiça no caso "Apito Dourado" e chegou mesmo a garantir-me que, se fosse caso disso, ele, homem de paz e sem ligações ao futebol, iria a Gondomar numa qualquer manifestação de apoio a Pinto da Costa. Fez mais: acusou-me de ser um dos culpados da situação, porque vou à TV branquear a actuação da justiça naquilo que ele considera serem manifestas injustiças.

Ele não tem razão, praticamente em quase tudo. Mas a discussão com ele é sempre estimulante, porque acaba sempre na religião, coisa de que ele sabe muito e eu não sei nada.

Mas hoje foi injusto. Enquanto comentador das coisas do mundo, eu não sou um branqueador de ilegalidades. E se por vezes pode acontecer, é apenas por ignorância técnica e nunca por uma atitude deliberada de branquear o que quer que seja. Aliás, a minha atitude como advogado demonstra-o à saciedade.

Recordo, até, que da última vez que comentei publicamente a Casa Pia fui muito duro para com a investigação e as corporações do direito. E fui muito crítico com o julgamento que está a ser feito na praça pública. Sublinhei os efeitos nefastos de haver quem acredite piamente na culpa dos arguidos, mesmo sem saber porquê, e os efeitos nefastos de haver quem acredite piamente na inocência dos arguidos, também sem saber porquê. Disse mais: que há pessoas que querem que os arguidos sejam condenados, ainda que sejam inocentes, e que há pessoas que querem que eles sejam absolvidos, ainda que sejam culpados.

Tudo isto reconduz-nos a uma questão: a justiça é fiável? E a outra: todos os cidadãos são iguais perante a lei? São questões que já aqui abordei noutro registo. Todos os dias penso nisto. Coisas que também são de boa alma. E concluo, aos poucos, coisas extraordinárias: se é verdade que há operadores da justiça que são incapazes de "atacar" figuras ditas intocáveis, numa atitude covarde, também é verdade que há operadores da justiça que se deleitam a "atacar" os ditos intocáveis, numa atitude também covarde.

Não faltam exemplos de uns e de outros e ambos estão errados. E ambos dão uma má imagem da justiça.

É óbvio que eu estou fora. Sou advogado. Sei perfeitamente o que não devo defender e o que devo defender. E sei mais: sei o que estou obrigado a defender. Ou a atacar. Sem olhar à intocabilidade de quem ataco ou à fragilidade de quem defendo...



(A desenvolver um dia mais tarde. Até porque, como já aqui disse, há uns que são mais intocáveis do que outros - absolutamente)