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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

noturno

Sílvia, 30.04.05
as notas do piano tocam
o ar como se o escalassem
em passos de balé.
atravessam-no leves
chegam a mim em volteios
e pousam
nos meus ombros.

se as colhesse
teria pássaros nas mãos
e o fragilíssimo equilíbrio
entre o silêncio e do som
a tocar-me a pele.
mas colho-as com ouvidos
e sensibilidade .
e minha cabeça dança
na suavidade do noturno.

silvia chueire

Thank you and goodbye, Mr. Percy Heath

d'oliveira, 30.04.05
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Morreu Percy Heath, o último sobrevivente do "Modern Jazz Quartet". Com ele é toda uma geração que desaparece. O mundo do contrabaixo fica mais pobre, tanto mais que há dias foi-se o Niels Hening Orsted Pedersen. Numa das farmácias, a dedicada a África, lembrei o MJQ. Permitam que mais uma vez, a última, os refira, e deixe aqui uma pequena discografia muito pessoal (e só em cd): Echoes (Pablo, 3112-41), Dedicated to Connie (Atlantic, 7567-82763-2): é duplo; The artistry of MJQ (Prestige, FCD 60-016), Blues on Bach (7567 81393-2), The MJQ Scandinavia, April 1960 (giants of jazz CD 0234): baratinho!!!, The complete last concert (Atlantic, 781976-2) 2 horas e meia de música!!! e finalmente para a menina Amélia: No sun in Venice (Atlantic 1284-2).

Old musicians never die: they are in tour in distant galaxies!

Au Bonheur des Dames (de gôndola)

d'oliveira, 29.04.05

Guia de Veneza para principiantes
(modesta proposta para um guia de turismo cultural)


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1. Veneza não é Aveiro - faltam-lhe as enguias de escabeche, as salinas e a estátua de José Estêvão. Também não tem o Eng. Ângelo Correia e, "porca miséria", barricas de ovos moles.

2. Em Veneza não há mar que se veja. O Adriático é, em termos náuticos, um vago lava-pés perante a grandeza do Atlântico. Também é verdade que do Lido, em dias especialmente claros, olhando em frente pode ver-se a Dalmácia ou, com esforço a Albânia: de Aveiro, por mais que se queira não se avista Nova Iorque. Nem sequer a estátua da liberdade.

3. Veneza não tem estação da CP. Aveiro tem, como qualquer utente da linha norte decerto saberá: entre Coimbra e Porto, o foguete pára e ouve-se uma voz: "Aveiro, estação de Aveiro, previnem-se os senhores passageiros que esta composição parte dentro de um minuto".

4. Tanto Aveiro como Veneza têm, nos arrabaldes, fábricas que lhes dão o indispensável toque de progresso . A primeira possui uma odorífera fábrica de celulose enquanto a segunda apresenta, para quem goste, uma olorosa refinaria em Mestre.

5. Outra semelhança que nos apraz registar diz respeito à indústria de louças e afins. Se Veneza produz "Muranos", Aveiro tem a "Vista Alegre", esta bem mais útil e completa que aqueles, convém dizê-lo sem falsos pudores nacionalistas.

6. Em ambas as cidades há um festival de cinema mas não vamos discutir qual o mais interessante. Em arte os gostos não se discutem e, aliás, foi em Veneza que Manoel de Oliveira ganhou um "leão de ouro", o que prova à saciedade que os portugueses nada devem aos outros, mormente aos italianos.

7. Concede-se, todavia, que o carnaval de Veneza é mais vistosos que o de Ovar. Mas é muito menos divertido que o do Rio de Janeiro, agora, de resto, com sucursal em Viana.

8. Em matéria prisional, porém, Veneza goza de uma característica única: para se fugir dos "Piombi" era necessário trepar aos telhados e, de lá, tentar chegar a porto seguro. A honrada cadeia comarcã de Aveiro permite o recurso a técnicas mais experimentadas quais sejam a de cavar um túnel.

9. O sistema de transportes públicos veneziano assenta numas poucas linhas de "vaporetti" ou em gôndolas, métodos primitivos, demasiado aquáticos para meu gosto dada a possibilidade de cair ao canal ou de molhar a roupa. Isto para já não falar de enjoo ("mal di mare") de que muito boa gente se queixa.

10. Aveiro (masculino) tem uma ria. Veneza (indubitavelmente feminina) tem o Ri del Vin onde, surpreendentemente, só corre água pouco limpa. Aliás, quanto a águas Veneza está servida (águas correntes quentes e frias, "acqua alta" e "acqua piena di merda") mas Aveiro não deixa os seus créditos por mãos alheias (água do luso, colónia, da companhia, aguardente velha, ginjinha e amêndoa amarga - esta última só em casas rigorosamente seleccionadas).

11. Em Veneza há venezianas. Em Aveiro também mas em declínio; agora prefere-se persianas de plástico que duram mais. Aliás janelas com tabuinhas só para bordeis e outros estabelecimentos similares.

12. Veneza não tem personalidade própria. Em francês é Venise, em alemão Venedig e em inglês Venice. Inclusivamente em italiano não é Veneza é Venezia. Aveiro é, lusa e triunfantemente, Aveiro, cá, lá ou na Bechuanalândia.

13. Em Veneza só há casas velhas com a excepção de Casanova que, aliás, se chamava Giacomo de Seingault. Em Aveiro, Deus seja louvado, o progresso é vertiginoso e as casas são todas novas ou, pelo menos, muito arranjadinhas.

14. O doge de Veneza tinha hábitos sexuais bizarros para não dizer deletérios - casava-se com o mar. Como e com que consequências, desconheço. Em Aveiro os duques casavam-se com as duquesas, faziam-lhes filhos e, quando havia oportunidade, ainda fabricavam uns bastardos por mero desenfastio e para não perder o treino. Infelizmente o Marquês do Pombal matou o último duque e, desde esse momento, Aveiro foi uma cidade republicana como se prova pelos congressos que lá se faziam.


PS "C'est triste Venise
au temps des amours morts ...

"Em Aveiro
é tudo porreiro!

O texto como de costume tem anos. Acontece, porém, que o cronista parte para Veneza e, desta vez, vai de cicerone da mulher que se estreia em lides italianas. Como de costume deixa umas recomendações:


Discos: Vivaldi: sonates pour violoncelle (Alpha004) Concertos transcrits pour clavecin (Symphonia, SY00175. Monteverdi: il sesto libro de madrigali (Arcana A321) e Vepres (Raumklang RK9605)
Guias: o incontornável guide du routard para não se deixar lá a pele e o sumptuoso (e quase esgotado) Venise: guides Gallimard! Coisa fina!
Para terminar alguns livros: a impressionante “Civilta di Venezia” em três tomos, por G. Perocco e A. Salvadori (LOA Stamperia di Venezia, editrice) “Histoire de la republique de Venise” de Pierre Daru (Bouquins, Robert Laffont), “Marca de Água” de Joseph Brodsky e obviamente algunns policiais: os de donna Leon, americana expatriada na cidade lagunar e um belíssimo Fruttero & Lucentini (essa dupla maravilha). Há-de ter sido editado por cá com um tírulo deste género: “O amante sem domicílio fixo”. O cronista atreve-se a acrescentar um livro a sair brevemente, por si traduzido: “A Tempestade” de Juan Manuel de Prada, Âmbar.
Para os que vão à Gulbenkian, aos livros, ou e-mailam (atenção José): não percam de Paulo Quintela, as “Obras Completas” volumes 2, 3 e 4. São centenas de páginas de tradução de poesia. Da melhor: Goethe, Rilke, Brecht, Holderlin e Nietzche, entre outros.


A propósito, faz hoje anos que se libertou Dachau. Lembremo-nos disso: para que não se repita!

Seis medidas para descongestionar tribunais

Incursões, 29.04.05
O Governo apresentou, esta sexta-feira, seis medidas para descongestionar os tribunais. O anúncio foi feito pelo primeiro-ministro, José Sócrates, na abertura do debate mensal do Governo, em que a reforma do sector da Justiça é o tema central.
No próximo Conselho de Ministros o Executivo concretizará, através de uma proposta de lei, a redução das férias judiciais de Verão de dois meses para apenas um.
Ler mais na TSF e no Público.

Sindicato dos Magistrados do Ministério Público congratula-se com as seis medidas, diz o Público. Eu também. Quanto às férias, há que aguardar para ver como conseguirá o Governo compatibilizar essa redução com o direito dos magistrados e funcionários judiciais ao gozo dos dias de férias a que têm direito e com os serviços de turno.

REORGANIZAÇÃO DO MAPA JUDICIÁRIO - III

Incursões, 29.04.05
O investimento na Justiça poderá não significar um acréscimo no Orçamento do Estado: bastará racionalizar os meios já existentes.

A especialização poderá ser feita, fora das grandes cidades por Círculo Judicial. Tal especialização poderá trazer uma maior celeridade à resolução dos conflitos e uma melhor qualidade na aplicação da Justiça. Acontece em vários círculos Judiciais coexistirem Tribunais completamente “afundados” com mais de 3.000 processos enquanto a 30 ou 50 Km existem outros com 1.000. Todos a funcionarem em competência genérica, todos tribunais da mesma categoria, o que significa que dentro duma mesma comunidade urbana cidadãos que moram a uma curta distância (às vezes tão curta como a dos limites que separam um concelho de outro) podem uns esperar anos pela resolução dum conflito e outros ver o litígio dirimido dentro do prazo legal.

Ora, se dento dum determinado círculo judicial se determinasse que cada um dos tribunais funcionaria de forma especializada, sediando-se num o Tribunal do foro cível, noutro o Tribunal do foro penal, noutro o do Tribunal do foro executivo e noutros o Tribunal de família e o Tribunal de Instrução Criminal, podere-se-ía com o mesmo número de magistrados e de funcionários reorganizar de forma racional os recursos humanos bem como os meios logísticos para uma funcionalidade mais racional.

Tome-se por exemplo o Círculo Judicial de Caldas da Rainha: no tribunal sede de comarca existem três juízos. Cada um tem cerca de 3.500 processos, em competência genérica. O Tribunal de Peniche, que fica a cerca de 40 Km da sede do círculo tem dois juízos cada um dos quais com cerca 1000 processos por juízo. O tribunal do Rio Maio tem 2 juízos. Cada um deles tem cerca de 800 processos e por fim o Tribunal do Bombarral (este é o único considerado de ingresso) um único juízo com cerca de 1.200 processos. Sublinhe-se que o número de funcionários por secretaria é sensivelmente o mesmo. No Tribunal sede de Comarca existem 3 juizes auxiliares (um por cada juízo), dois juizes de círculo e um Juiz de Instrução Criminal. Existe ainda um Tribunal especializado: o de Trabalho, com um único juiz titular.

Ora, tendo em consideração o número total de juizes, de procuradores, de procuradores-adjuntos, de funcionários da magistratura judicial e do Ministério Público e o número total de processos no círculo, a especialização permitiria uma justa distribuição de processos por juiz, que naturalmente se especializaria também. Tal especialização seria um salto qualitativo na administração da Justiça.

Evidentemente que tal solução carecia de ser devidamente discutida com toda a comunidade forense, de forma a obter consensos e compromissos, porque a organização judiciária deve ser equacionada em função da individualização concreta da vida. “Compreende-se, e consequência, que um deficiente funcionamento dos tribunais, uma aplicação jurisdicional menos feliz ou inoportuna da lei seja reconduzível à injustiça. E aqui, sublinhe-se, a injustiça da solução concreta rapidamente é tomada como injustiça da ordem jurídica. E num crescente generalizar ascendente, como crise de justiça” .

Numa das suas monumentais obras, Alexandre Herculano afirmou: Querer é quase sempre poder; o que é excessivamente raro é querer.”

No início dum novo ciclo governativo impõe-se irrecusavelmente querer dar o qualitativo na apreciação das questões da Justiça, como forma de garantir a ordem social no Estado Democrático de Direito; mas a ordem social é uma ordem de liberdade; ela propõe-se à vontade colectiva e justifica-se pela sua racionalidade, não se impõe cegamente.

O Direito é um fenómeno humano e social, imprescindível a toda a sociedade, é um elemento essencial da comunidade. Logo inevitavelmente a todos nós afecta e a todos nós diz respeito. Um Direito Justo é a estrela polar de qualquer sistema jurídico.

Assumindo as diferenças que separam os diversos profissionais forenses é possível extrapolar a realidade existente e recriar uma nova realidade pela acção conjugada da imaginação e da razão. Ninguém por si só tem a fórmula mágica que porá fim à tão falada “Crise da Justiça”. Só o debate de ideias pode buscar as soluções “racionais” para uma realidade em transe, desordenada, se não mesmo em caos delirante. È de espírito aberto que se poderão buscar soluções úteis e consensuais.

André Mycho afirmou que o espírito “c’est l’enfant terrible de l’intelligence” , mas já o Estagirita foi considerado pelo Oráculo de Delfos o mais sábio de todos os homens por apenas saber que nada sabia. Por isso a sabedoria é um paradoxo. O homem que mais sabe é aquele que mais reconhece a vastidão da sua ignorância.

Uma viva inteligência de nada serve se não estiver ao serviço de um carácter justo. Mas um relógio não é perfeito quando trabalha rápido, mas sim quando trabalha certo.

Está na hora de acertarmos o nosso relógio, o relógio da JUSTIÇA!


ISABEL BATISTA

26 de Abril?!

José Carlos Pereira, 28.04.05
O Dr. Rui Rio, presidente da Câmara Municipal do Porto, resolveu imitar o seu correligionário da Madeira, Dr. Alberto João Jardim, ao comemorar o Dia da Liberdade em 26 de Abril. Como certamente se recordarão, durante muitos anos a Assembleia Legislativa Regional da Madeira assinalava o 25 de Abril no dia seguinte. Et pour cause!
Agora, Rui Rio resolveu seguir o pioneirismo madeirense, chamou os seus apaniguados, que vestiram os melhores fatos, distribuiu umas prebendas e avançou para a pré-campanha eleitoral. Ah… segundo os presentes, não se vislumbrou qualquer cravo vermelho pelo salão nobre dos Paços do Concelho. A bem da nação!

UM ARTIGO MENOS CONHECIDO

Incursões, 28.04.05
Do capítulo dos Recursos, do Código de Processo Civil
Artigo 720º
Defesa contra as demoras abusivas


1. Se ao relator parecer manifesto que a parte pretende, com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente, leverá o requerimento à conferência, podendo esta ordenar, sem prejuízo do disposto no artº 456º, que o respectivo incidente se processe em separado.

2. O disposto no número anterior é também aplicável aos casos em que a parte procura obstar ao trânsito em julgado da decisão, através da suscitação de incidentes, a ela posteriores, manifestamente infundados; neste caso, os autos prosseguirão os seus termos no tribunal recorrido, anulando-se o processado, se a decisão vier a ser modificada.

REORGANIZAÇÃO DO MAPA JUDICIÁRIO - II

Incursões, 28.04.05
Dispõe o artigo 202º da Constituição da República Portuguesa que “os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo”, incumbindo aos tribunais, na administração da justiça, “assegurar a defesa dos interesses e direitos legalmente dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados” . E o artigo 203º da Lei Fundamental afirma ainda independência dos Tribunais que apenas estão sujeitos à Lei. Conforme escrevia o professor Castro Mendes “cremos que a independência é, na verdade, uma característica dos juizes e não mais propriamente dos tribunais” . Assim se entende o nº 2 do artigo 4º da LOTJ .

A Constituição de 1976, (com as sucessivas revisões) não prescreveu para Portugal um sistema judicial unitário. E, para além disto, debruçou-se com atenção diversificada sobre a estrutura e regime próprios de cada uma das ordens dos tribunais que instituiu e cuja criação facultou.

A ordem jurídica portuguesa comporta, pois, diversos tribunais, sendo a medida de jurisdição de cada um a sua competência interna, e um dos factores delimitadores dessa competência é o território e outro a matéria da causa .

Para efeitos de organização judiciária comum a divisão ou circunscrição fundamental do país é a comarca, mas encontramos definidas na LOTJ divisões maiores como seja o distrito judicial e o círculo judicial.

A LOTJ prevê ainda que nos distritos e círculos judiciais pode haver tribunais de competência especializada ou genérica com jurisdição em todos ou algumas das comarcas a ela pertencente

Ensinava o insigne professor coimbrão Alberto dos Reis que “ a jurisdição significa o poder de julgar atribuído, em conjunto, a uma actividade do Estado ou a uma determinada espécie de tribunais; a competência designa o modo como a jurisdição se acha distribuída dentro da mesma actividade ou da mesma espécie de tribunais”

O poder jurisdicional é, no quadro da lei ordinária e no quadro da lei fundamental, um potestad, um poder-dever:” Pesa sobre o juiz o dever de jurisdição, o dever de administrar justiça às partes; e este dever não é senão contrapartida de um direito que a lei reconhece ao autor e a réu: o direito de acção e o direito de contradição.”

Como potestade dimanente da soberania do Estado, a jurisdição é necessariamente única ao contrário do que acontece com as competências. “Não obstante, alerta-se para o facto de se falar em jurisdição cível, jurisdição penal, jurisdição administrativa, jurisdição comum, e jurisdições especiais. Trata-se de um vício de linguagem nada técnica que provém de longa data (...) não existem várias jurisdições, mas várias manifestações de uma só jurisdição, esta a contracenante da acção. Ela é o dever geral de prestar justiça, em correspondência ao direito geral de acção que os particulares têm. Daí resulta que o juiz não possa abster-se de julgar (nº 1 do artigo 8º do Código Civil)”

Mas julgar nos tempos modernos é uma função jurisdicional que a sociedade civil quer actual, eficaz e rápida. Para isso é preciso especializar os tribunais,. As estruturas judiciais aperfeiçoam-se dificilmente porque as necessidades da Justiça superam as possibilidade dos meios disponibilizados pelo poder central.

A Justiça é uma aspiração profunda e uma sociedade é tanto melhor quanto os cidadãos possam obter mais celeremente a resolução dos seus litígios.

Urge que o poder político defina entre as diversas concepções de ordem política-social qual a mais apta a realizar os princípios constitucionais no que concerne à Justiça, supesando o interesse nacional de maneira racional e duradoira, sem preocupações das contigências e conjunturas populistas do momento, antes traçando uma política para o futuro.

“Pese embora a consciência generalizada, que aliás, muito tardiamente se instalou entre nós, de que o sistema de justiça que temos em Portugal não serve, continuam a ser raras as intervenções públicas em que se proponham soluções ou se defendam ideias com frontalidade e sem medo de enfrentar os interesses corporativos que vão sobrevivendo à sombra da inépcia do sistema”

É comummente aceite que urge rever o mapa judiciário. È fácil perceber que hodiernamente o caminho é a especialização dos tribunais, e consequentemente, dos juizes. Já Alberto dos Reis ao perguntar “Que fim se pretende atingir com a repartição da competência entre os tribunais especiais e o foro comum?” afirma: “Procura-se adaptar o órgão à função, procura-se assegurar a idoneidade do juiz; pretende-se que as causas sejam decididas por quem tenha uma formação jurídica adequada. Põe-se assim a matéria da causa em correlação com a preparação técnica do magistrado que a há-de julgar, de modo a obter-se um julgamento mais perfeito”

Claro que a especialização dos tribunais implica um investimento, não em sentido estrito mas em sentido amplo ; um investimento social de que a nação espera um acréscimo de rentabilidade na administração da Justiça. O investimento na Justiça representará, indubitavelmente, um progresso económico e social.

E esta afirmação não é de modo algum uma forma de impaciência respiratória que incita a roubar o oxigénio ao futuro, ou seja, não é uma utopia.

suplemento à farmacia nº10

d'oliveira, 27.04.05
quatrocentos anos e tanta juventude

Eu peço-vos desculpa humildemente, desculpas por vos vir bater à porta a desoras, desculpas pelo meu entusiasmo, pouco condizente, porventura com a minha idade, desculpas, como dizia não sei quem, por qualquer coisinha.
Mas o caso não é de somenos, amigos e companheiros, não é de somenos. Há quatrocentos anos publicava-se o D Quixote pela primeira vez. Ou, por extenso, El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha (compuesto por Miguel de Cervantes Saavedra, con privilegio en Madrid por Juan de la Cuesta, vendese en casa de Francisco Robles librero del Rey, nuestro Señor).

Tão extraordinário foi o acolhimento deste livro que em 1614, um falsário de nome Avellaneda dava à estampa uma apócrifa segunda parte que obrigou Cervantes a publicar a sua vera segunda parte, onde, com um espírito absolutamente novo, não só refere essa edição apócrifa como intra texto a refuta, fundando num mesmo momento, num verdadeiro big bang literário, o romance, tal qual hoje o conhecemos.
Impérios, nasceram e caíram, milhares, milhões de livros publicaram-se, tiveram o seu momento de glória e foram esquecidos. De alguns só se conhece uma referencia ao título. Outros foram presa das chamas odientas e na própria terra pisada pelo imortal cavaleiro e pelo não menos engenhoso Sancho, correu tanto sangue que parecia ser por isso, por uma predição do futuro, que Cervantes afirma não se querer sequer recordar do nome desse lugar da Mancha onde vivia o fidalgo.
Nessas terras adubadas de sangue e sofrimento a guerra cedeu o lugar a uma pacífica disputa entre pequeníssimas terras que se reclamam de berço duma simples figura literária.
E as pessoas, e não são tão poucas, antes pelo contrario, que conhecem o Quijote de cor e salteado, discutem-no como quem discute a última novela da tv ou o desafio de futebol de ontem. O livro faz parte das suas terras, das suas vidas, do modo como se sentem no mundo.

Entre nós, correm várias edições do livro ( as três primeiras são ainda de 1605!!!) e anunciam-se para breve mais duas, na “D. Quixote” e na “Relógio de Água”. Eu propor-vos-ia qualquer uma espanhola mas estou bem consciente que não é leitura fácil. Ao fim e ao cabo foi escrito há quatrocentos anos. Portanto, avante com uma edição na língua de Camões (e de Mendes Pinto... e de Vieira... acrescento). Contra o meu costume não irei aconselhar qualquer edição. Passei quase dois meses do Verão passado a ler e a rever, página a página, palavra a palavra, uma das novíssimas traduções e não quereria, como calculam, que sobre este tão sincero entusiasmo caísse a simples sombra de uma suspeita.
Assim sendo, por aqui me fico, desejando-vos a intensa, luminosa felicidade de ler este livro inicial e único.
Para leitores ousados, aqui fica uma proposta boa, barata e interessante: a edição do IV centenário proposta pelas academias de línguas de Espanha e dos países latino americanos. Custa menos de 10 €, tem anotações q.b. e letra decente.
Quem além disso quiser ler uma entusiasmante homenagem ao Quijote tem à disposição “Al morir don quijote” de Andrés Trapiello (o fidalgo morre e Sancho e o licenciado Carrasco vão à procura do autor que já os imortalizou: um regalo)

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