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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Diário Político 33

Incursões, 30.11.06
Carta a um amigo que entra na 3ª idade

É sempre difícil escrever a alguém que se abeira dessa idade difícil que agora se convencionou chamar terceira. Pessoalmente quando me falam disso recordo sempre a antiga terceira classe dos comboios, os medonhos vagões feios e de madeira, cheios de correntes de ar e de fumo o que até era um alívio porque disfarçavam o cheiro miserável das retretes.
E provavelmente estarei mais perto da verdade do que esse coro safado de louvores a uma idade inútil, desprezada, a uma idade de sobrecarga para quem anda na vidinha e pensa que está a descontar para os malandros dos velhos. Eu aqui a fossar e eles na maior a jogar à sueca no jardim!... Ou: que este gajo anda para aqui a fazer, não quer ir para a reforma? Não vê que está a tirar o lugar aos novos?
Ser velho ou “idoso” que é mais politicamente correcto, é andar mais vagarosamente, rotinar os dias entre o café com a roda de amigos e uma ida à farmácia aviar uns remédios. Ser velho é não estar a par das novas tecnologias, das novas formas de “comunicar”, do “k” desabrido em vez do “que” trabalhoso, tá a ver como isto é tão simples?
Ser velho é ter direito ao “cartão dourado” dos comboios e do metro para viajar entre nenhures e sítio nenhum, para visitar outros fantasmas que enchem lares, dão trabalho e são enganados por vendedores de sonhos caros mas a prestações, fazer parte da fotografia do senhor presidente na festa a declarar pomposo que com ele a terceira idade é a primeira.
Ser velho é morrer aos pedaços abandonado num hospital pelo Verão, dividindo com cães e gatos, o esquecimento dos donos destes, dos filhos, dos sobrinhos, dos afilhados ou nem isso.
Ser velho também pode ter a sua utilidade: nada mais prático que uma avó para tomar conta das criancinhas enquanto os pais vão para o trabalho que é preciso pagar as prestações da casa, do carro, das férias na República Dominicana ou mais prosaicamente ali para Torremolinos onde a animação é permanente.
Dirás que esta é uma visão catastrofista de uma idade que já nem é um escândalo, de um grupo social que cada vez tem maior peso económico, que vota ou pode votar, que esconde as rugas com botox ou outra coisa do mesmo tipo, que o viagra eliminou barreiras e riscos, que enche as esplanadas dos cafés e fala alto (pudera! Estão surdos como portas!) e critica sem piedade os novos hábitos e as novas gerações.
Dirás até que a idade não tem importância, que o que é necessário é manter a juventude de espírito, como se isso não fosse a negação temível do melhor que a idade tem ou pode ter: a sageja, a experiência, a tolerância, a ironia da dúvida e a serenidade frente às proclamações dos que chegam e querem mais pressa, mais rapidez, mais profissionalismo, mais ambição, mais produtividade.
Vão começar a chover sobre ti propostas aliciantes desde a universidade para a terceira idade onde um cavalheiro pretensioso se propõe ensinar-te história pátria, literatura light ou jogos tradicionais. E música! E ginástica moderna à base de aparelhos que te poupam o andar pela rua de nariz ao vento, que ele há por aí tanta bactéria...
Ser idoso, como agora passas a ser, significará também que se apanhares com um carro em cima, dentro ou fora da passadeira, serás notícia sempre com a classificação etária à frente: sexagenário vítima de atropelamento numa artéria movimentada do centro ajudado por populares.
Eu sei que algum leitor mais sensato vai dizer que este que estas debita no computador está com um ataque de pessimismo que nem se veda e o melhor é concordar com esse leitor por muito que no íntimo o autor sinta que estas palavras são acaso as mais verdadeiras terríveis crueldades de que a canção tão justamente falava.
De todo o modo mandam as convenções que daqui te envie um abraço pelo primeiro dia do resto da tua vida. Cave diem!

A propósito do Metro do Porto

O meu olhar, 29.11.06
Ouvi na TSF pela primeira vez a notícia do relatório do Tribunal de Contas sobre o Metro do Porto. Da notícia, o que me chamou a atenção foi a questão das remunerações dos administradores ao nível dos prémios, nomeadamente no que respeita aos não executivos, e o facto de não estarem associados a objectivos. Todavia, deixei de ouvir falar desse aspecto, arrastada que foi a comunicação social pelas reacções de Narciso Miranda e de Valentim Loureiro. E em que tema é que estes últimos se centraram, cada um à sua maneira? Nos trocos.

E eis que todos em parada e em coro desataram a insurgirem-se contra os cartões de crédito atribuídos a administradores não executivos e respectivo montante.

Ora, do meu ponto de vista, o que aqui é central, é a questão das diferentes componentes da remuneração de administradores executivos e vogais de entidades públicas bem como da sua fundamentação.

Para ter a certeza que afinal não tinha ouvido mal quando tive o primeiro contacto com a notícia, fui ver o relatório ao site do Tribunal de Contas. Lá estava: os prémios anuais de gestão dos administradores da Metro do Porto não está associados a nenhum objectivo (mensurável, concreto) mas tão somente a um “ bom desempenho” (algo de muito vago). A isto respondem os responsáveis do Metro que o histórico desta entidade não permite ter resultados já que estão ainda numa fase de investimentos. A isto pergunta-se: só existe esse indicador para aferir de uma boa gestão? Sabemos que não.

O que é um facto, e está mencionado no relatório, é que, por exemplo o “prémio de gestão” do Metro do Porto em 2001, referente ao exercício de 2000, foi correspondente a nove salários mensais. O relatório refere ainda que, noutras empresas públicas, a média se situa entre quatro a cinco salários mensais. Precisando: em 2001, cada vogal do CA da Metro do Porto recebeu um prémio de gestão cinco vezes superior ao de um vogal da ANA ou CTT e três vezes superior ao de um vogal da ADP.

Claro que tudo isto seria minimamente sustentável se essas remunerações estivessem ligadas a objectivos concretos, que demonstrassem inequivocamente que da gestão dos elementos do CA resultavam ganhos evidentes para a Metro do Porto, fosse a que nível fosse.

A questão que se me coloca é como é que é possível que nestas entidades – empresas públicas, fundações e outras suportadas pelo orçamento de Estado - uma auto nomeada “comissão de vencimentos” tenha a liberdade de fixar as remunerações que bem entende, com critérios subjectivos que não são inelegíveis à luz do senso comum.

Outra questão, bem mais grave, é que depois deste fumo todo nada mudará e os administradores de todos os CA de entidades públicas, pagas em boa parte pelo dinheiro dos contribuintes, continuarão a auferir as remunerações que a sua “comissão de remunerações” entenda estabelecer, sem limite e sem critérios mensuráveis.

perguntas

Sílvia, 29.11.06

quantas terras habitam a terra,
perdidas no pensamento humano?
quantas a escapar
da que é ?

nelas cresce a perfeição
para a qual os olhos se voltam
nos devaneios.
nelas florescem as terras ideais,
moldadas pelo sonho.

quantos braços se movem
em busca daquelas terras?
quantos ouvidos se fecham
ou vozes se calam?
quantos corpos se negam
à terra que há,
mas nada fazem?
quantos se locupletam
na inércia alheia?


silvia chueire

Estes dias que passam (Cesariny)

d'oliveira, 27.11.06
Livre, poeta e amado
Não sei se os anos vindouros darão razão a este texto que, de resto, não aspira a glória eterna mas tão só pretende lembrar um poeta que iluminou os últimos sessenta anos.
Cesariny acaba de morrer cumulado de honrarias o que não deixa de ser irónico num surrealista mesmo português. Provavelmente os seus recentes admiradores terão entendido que oitenta e tal anos de vida excessiva mereciam os louros e a admiração da pátria agradecida.
Poder-se-á pensar que vai nisto uma crítica ao poeta (e talvez vá) mas de facto as homenagens tardias não apagam o uivo surrealista (se surrealista o que ainda está para averiguar) que ecoou naqueles tristíssimos anos quarenta.
E isso, esse estrondo, esse escândalo (e o regime de então bem que o compreendeu) influenciou muito mais do que eventualmente se regista por aí. Cesariny acaba por aparecer muito isolado mesmo se o associamos sempre ao restante grupo dos surrealistas (e não grupo surrealista que me parece nunca ter de facto existido a menos que a sua cisão prove isso mesmo).
Pessoalmente, se isso serve para alguma coisa, foi a leitura dos surrealistas, nos primeiros anos de sessenta, que me marcou a fronteira da juventude para a idade adulta. Creio que o mesmo se passou com muitos da minha geração que se tornaram sensíveis à trilogia amor liberdade poesia.
Mais: a lição poética de geração que Cesariny encabeçou mesmo que ele não se reconheça nesse papel de leader teve um forte prolongamento político na medida em que à esquerda, na esquerda e pela esquerda, provou que era possível uma resistência clara e irredutível ao regime autoritário e fascizante da época. O surrealismo, ou aquilo que entre nós se chamou surrealismo, libertou-me (libertou-nos) da obediência ao realismo socialista e ao cânone demasiado estreito que artisticamente propunha. E não deixa de ser curioso que ao contrario do que se esperaria a antologia “surrealismo/abjeccionismo” (1963) englobe alguns nomes do neo-realismo (Joaquim Namorado e Luís Veiga Leitão entre outros).
Morre Cesariny como anteontem morria a Anita O’ Day. O mundo fica um pouco mais pequeno mesmo se outros poetas e outras cantoras entretanto nascem. Morre um mundo que eu conhecia e não me consola o facto de haver outro que nasça certamente. Mesmo que esse mundo que desaparece fosse aquele do “pais no país onde os homens são só até ao joelho”. Cesariny escrevia isto e conseguia o milagre de ser homem da cabeça até aos pés. E isso que parece nada foi, nesses anos de formação, tudo.

26.11.06

Tudo a bombordo 4

d'oliveira, 25.11.06
A escolha das armas
Quem segue estes textos desde o início sabe que eles só se devem ao desafio de um par de leitores que entenderam cominar-me a explicar os ínvios caminhos da esquerda que percorri e onde me vou mantendo tant bien que mal. Também não é segredo para ninguém (e muito menos para mim) que esta viagem a um passado de mais de quarenta anos não está isenta de erros de apreciação, de falhas de memória e de “re-escrita” da história pessoal. Corro esse risco prevenindo os leitores e prometendo tentar limitá-lo tanto quanto possível.
Dito isto vamos às nossas encomendas. A terceira jornada desta navegação pelo meu passado deixou-me na Universidade em vésperas de 1962. E já que o título geral destas balivérnias o permite, vejo-me um pouco do que um grumete que tenta ganhar o galão (será assim que se diz?) de guarda-marinha. Era isso que me sentia: um jovem cooptado por uma tripulação bem mais experimentada para uma aventura que não teria as Índias como destino mas que seguramente não se ficava por um pais velho e triste. Cumpri portanto sem problemas, receios ou desconfiança as pequenas tarefas do aspirante a militante. Devo dizer, entretanto, que nesse período conheci, conversei e fiquei amigo de alguns dos melhores elementos da minha geração ao mesmo tempo que lhes fiquei devedor de autênticas lições de coragem, de vida, de honra e de camaradagem. Contudo e curiosamente isso não bastou para me convencer a engrossar os quadros universitários do partido comunista. Ou, melhor dizendo, a postular a minha candidatura. Sentia-me bem na posição de “compagnon de route”, e confesso que aprendi isso em mais um romance, um belíssimo romance (“Drôle de Jeu” de Vailland que em Portugal circulou sob o nome de “O jogo da Cabra Cega”), sobre a resistência francesa. Nesta idade já podemos confessar esses exercícios de imitação de que, de resto, não me envergonho e muito menos me arrependo.
Todavia, eu queria chegar ao ano de 62 que, para mim, terá começado ainda em 61 com a campanha eleitoral para a Assembleia Nacional. Pela primeira vez participei (como subalterno muito subalterno) na campanha e, glória absoluta, fiz parte do grupo organizador de uma e única manifestação de rua duramente reprimida pela polícia. Recordo como se fosse hoje, o grupo de rapazes que se reuniu no escritório do dr. Alberto Vilaça (que haveria anos depois de ser o meu primeiro patrono) onde se estabeleceram as linhas mestras da manifestação. No pega e foge que se seguiu apanhei algumas bordoadas o que já não era novidade para mim porque em 58 em Braga já sentira o peso dos cassetetes dos polícias. Os ânimos também já se tinham exaltado por ocasião do 1º convívio inter-academias, em Coimbra por ocasião da Tomada da Bastilha se não estou em erro onde tive oportunidade de ouvir pela primeira vez os grandes tenores da geração de dirigentes de 62. Datam daí as minhas relações com Jorge Sampaio e Eurico de Figueiredo oradores prodigiosos, combativos que meses mais tarde seriam os dirigentes mais conhecidos da greve académica de 62.
A greve de 1962, pela sua amplidão, pelo eco obtido nas três academias, pela simultaneidade com uma grande ofensiva política do PCP que não só conseguiu significativos movimentos fabris durante a primavera como também mobilizou fortemente o campo alentejano. Isto para não falar nas duas gigantescas manifestações de 1 e 8 de Maio em Lisboa. Ao mesmo tempo e fundamentalmente em Coimbra e Lisboa a mobilização estudantil atingia grandes dimensões, superiores mesmo à movimentação estudantil durante a campanha de Delgado em 1958.
Não vou fazer a história da crise de 62 muito embora deva referir que fui dela testemunha e participante do primeiro ao último dia. De facto fiz parte do grupo de estudantes de Coimbra que conseguiram chegar a Lisboa e que por isso mesmo participaram logo dos primeiros enfrentamentos com a polícia de choque. Posteriormente, tive, com Carlos Bravo, alguma responsabilidade na organização de contactos entre Coimbra e Lisboa. Uma aventura absoluta graças aos nossos camaradas de Lisboa, gente sobretudo ligada às secções de propaganda das associações de estudantes. Fiz obviamente parte do grupo que ocupou a Associação Académica de Coimbra quer da primeira quer da segunda vez, já em Maio. Nesta altura a polícia assaltou a AAC e prendeu todos os seus ocupantes. Tive a duvidosa honra de fazer parte do selecto grupo de 44 estudantes que foram detidos pela PIDE e enviados para Caxias. Num mês aprendi mais do que em anos. Não só porque boa parte dos meus companheiros eram militantes experimentados mas também porque nas celas vizinhas das nossas estavam camponeses alentejanos claramente organizados e muitos militares do golpe de Beja. Dos primeiros recebemos uma lição de dignidade que quarenta anos depois ainda me maravilha e me faz respeitar com humildade esses homens que connosco partilharam um punhado de cerejas e um par de modas alentejanas de que recordo todas e cada uma das palavras. Foi em Caxias que percebi totalmente pela voz desassombrada de Carlos Mac-Mahon a raiz dos acontecimentos de Angola.
Entre 60 e 62 a história acelerou brutalmente: o PCP não só se reorganizava espectacularmente, aumentando a sua influência em toda a parte, ungido pelas façanhas das fugas de Peniche e Caxias como ainda por cima Cunhal entrava pela porta grande e tornava-se o secretario geral indiscutido de um partido moralizado e internacionalmente reconhecido. Angola estava a ferro e fogo, na Índia a presença portuguesa desaparecia sem glória e com uns milhares de militares presos clandestinamente enviados para Portugal desonrados por um ditador que enlouquecia só e sem perceber o mundo que o rodeava. A partir de 1962 havia um cadáver em S. Bento apesar de ninguém saber, nem ele próprio. Um milhão de portugueses abandonava o país, enchia os bidonvilles de Paris e de mais um cento de cidades europeias e, com as suas remessas, com as “vacanças”, com o mau gosto das casa tipo maison e com o muito que aprenderam mudavam irremediavelmente uma terra e sobretudo um rapaz que vinha de Buarcos, de África, e que penosamente à força de livros, de gestos exagerados, tentava perceber em que mundo vivia.
A partir de 62, descobri que para se manter um mito, um ditador e os seus cúmplices estavam dispostos a mandar para a morte uns milhares de soldados para já não falar nos muitos mais civis de Goa Damão e Diu. Como essa lição não foi aprendida o sinistro slogan “para Angola e em força” mostrava que no Portugal do Minho a Timor ninguém compreendera os ventos da história nem sequer que isso não era uma graçola de mau gosto. E todavia, as primeiras tropas que desembarcaram em África depressa perceberam que os proclamados “cinco séculos de presença portuguesa” se tinham limitado a meia dúzia de pontos da costa e que a língua imortal de Camões não era falada senão por pequeníssimos grupos de negros e mestiços. Verificaram também, e nós com eles, que a esmagadora maioria dos “indígenas” careciam dos mais elementares direitos, viviam pobremente, estavam sujeitos a uma série de obrigações no que respeitava ao trabalho nos campos que parecia copiada para pior das antigas obrigações dos servos da gleba. E nem sequer era necessário chamar à colação a suprema infâmia do “contrato” que originava transferências de milhares de trabalhadores jovens entre zonas distantes com todos os custos que isso deixava adivinhar. O racismo campeava fora dos grandes centros e mesmo neles era visível a divisão entre brancos e negros. Estes habitavam onde acabava o alcatrão e a água corrente. Também não tinham electricidade ou saneamento básico. E nesta constatação antiga a que se juntava a leitura dos autores anticolonialistas e, sobretudo, dos grandes clássicos da antropologia, da etnologia e da história africanas, começou uma das minhas mais duráveis paixões. Curiosamente ou talvez não isso levou-me a ler autores portugueses especialistas de África, quase todos publicados na revista da antiga Agência Geral do Ultramar. E convenhamos que se é verdade que nenhum atingiu a grandeza de Jorge Dias, há pelo menos um certo número de autores respeitáveis que deixaram um espólio notável que não pode ser desprezado sequer por (falsas) razões políticas.
Estes anos foram igualmente aqueles em que terei levado a cabo a minha formação marxista. De facto, por diferentes razões, por meios diversos pude ler os chamados “grandes clássicos” nomeadamente Marx, Engels e Lenin. Ao mesmo tempo, e graças a pequenas colecções de bolso francesas, pude informar-me ainda que sumariamente sobre Proudhon, Bakunine, Blanc e mais uns quantos pensadores socialistas do século XIX. Daí fui derivando para clássicos tout court desde Voltaire ao Cavaleiro de Oliveira. Tinha tempo, disponibilidade e, sobretudo, curiosidade. E é altura de declarar aqui uma dívida a certas colecções francesas de livros com formato de bolso: “10-18”, “Garnier-Flamarion”, “que sais-je” ou “libertés” da Pauvert.
Tendo em linha de conta que a maior parte dos meus leitores não viveu os anos sessenta devo acrescentar que para uma pessoa curiosa havia ainda outra maneira de aprender. Efectivamente, e apesar da censura, existia uma série de revistas que conseguiam publicar-se, que viviam apenas dos seus leitores e assinantes e que mensalmente forneciam uma larga cópia de artigos de opinião, recensões críticas, informação cultural do estrangeiro que permitia ao leitor atento perceber o que se passava. Três delas acompanharam-me até ao seu desaparecimento (Seara Nova e O Tempo e o Modo) ou até ao fim dos anos setenta (Vértice). Nesta última fiz a minha aprendizagem de crítica literária e ao mesmo tempo de vítima da censura. Creio não andar longe da verdade se disser que terá escapado à censura pouco mais de 10% da minha produção. Duvido mesmo que mesmo nos textos publicados não tenha havido cortes parciais. E eu, apesar de tudo, tinha um certo cuidado mas pelos vistos não era o suficiente. Não se perdeu nada de grave, convém dizer.
Em resumo: nos primeiros anos da faculdade verifiquei que a actividade associativa (na Associação Académica e no CITAC), a intervenção cultural (Cineclube, Vértice, etc...) e a permanente disponibilidade política para, como “compagnon de route” integrar uma ampla frente oposicionista, me pareciam suficientes para me sentir de esquerda e actuante. O passo decisivo que seria militar no PC não oferecia mais “acção” antes tolheria ou dificultaria a aventura intelectual que eu prosseguia. E depois, mas isso fica para a próxima, acabava de descobrir o surrealismo.

Ex-juiz do T. Constitucional apela à desobediência civil

ex Kamikaze, 23.11.06
PARA QUE SERVEM OS IMPOSTOS?

A carga fiscal dos impostos, pesando todos os dias na bolsa dos cidadãos é um ónus indesmentível e irreversível no presente futuro, constituindo um dever universal e geral. Mas os cidadãos pagam os seus impostos pelo menos, aqueles que não fogem ao pagamento, através da evasão e da fraude fiscais, para que o Estado tenha receitas e cumpra as suas obrigações. Desde logo, os compromissos com os cidadãos, dando satisfação às necessidades colectivas da comunidade, a nível da saúde, educação, segurança, habitação social e meios de circulação (sem esquecer o acompanhamento dos deficientes e das pessoas idosas). São os compromissos de um Estado social, correspondendo às incumbências e tarefas que lhe estão constitucionalmente assinaladas.
Porém, o Estado acumula actualmente – e quer sempre mais – a arrecadação dos impostos com a exigência de taxas, que são preços dos serviços que presta, sejam taxas moderadoras ou equivalentes no SNS, sejam propinas na educação, sejam portagens nas auto-estradas.
Se um cidadão, por ano, fizesse as contas a todo esse universo de receitas estaduais, ficaria admirado com a percentagem, 40%, 50% ou 60%, reflectida na totalidade da remuneração auferida anualmente.Então, para que servem os impostos, se, na prática, todos os serviços estaduais, ou muito deles, cobram um preço aos cidadãos? Para onde o Estado destina as receitas desses impostos? São perguntas que o cidadão faz, mas não obtém uma resposta satisfatória do Estado. Se a r4esposta viesse e fosse lógica e aceitável, o cidadão certamente aceitaria a carga fiscal e evitar-se-ia a tentação de fugir aos impostos.
Assim, resta só aos cidadãos um direito de resistência, constitucionalmente consagrado no artigo 21º, pelo menos, no que toca àquelas taxas que são exigidas após a prestação dos serviços, consistindo esse direito no não pagamento dessas taxas. Os cidadãos obtêm os serviços, cobram-lhes as taxas e simplesmente ele não as paga. Depois, se verá…

Publicado por Guilherme Fonseca aqui

farmácia de serviço especial/pintura

d'oliveira, 23.11.06

Na galeria degrau arte (Rª Afonso Lopes Vieira,186 -isto é no Foco e no Porto) está patente uma exposição de desenhos de Jorge Pinheiro nome grande da nossa pintura e um dos elementos do antigo grupo "os quatro vintes". De boa vontade mostraria aqui um dos desenhos mas ainda me não chegou à mão. O que, sim, já cá canta é o excelente texto da Professora Doutora Fátima Pombo que amavelmente me permitiu reproduzir. com dupla alegria o faço. À uma Fátima Pombo escreve para ser entendida o que é prodigioso num meio em que a cifra parece ser a regra. Depois porque Jorge Pinheiro é um dos mais singulares e honrados percursos artísticos desta terra devotada aos filisteus. Finalmente porque a pequena galeria onde a exposição se mostra tem, também ela, uma prática expositiva nos antípodas do habitual. Ele há invejosos que murmuram entre dentes que "aquela gente tem a mania da cultura". É verdade. Com a publicação do texto a farmácia de serviço paga esse enorme contributo e homenageia de uma penada Marta Cristina de Araujo, poetisa e directora da galeria. Podem ir lá visitar a exposição porque vale a pena e ninguém vos robda à espera de um sinal para vos propor in actu uma compra. Primeiro é para ver. Depois, querendo, els também vendem.
Já me esquecia: a exposição está patente todas as tarde de segunda a sexta. aproveitem!


Desenhos

Para Jorge Pinheiro o desenho é um instrumento de conhecimento do mundo; um conhecimento finito, lento, continuado em cada esboço, em cada fragmento. O desenho expressa a minúcia de um pensador sobre a consciência da metamorfose do corpo e da metamorfose da alma. A velhice é um dos seus temas. Algumas das figuras estão estendidas no leito de morte, parecendo esperar, pacientes, sem desafiar o destino. A delicadeza do traço na mancha do papel deixa vastos momentos de vazio, que ficam assim, dados à contemplação, entre a figura encolhida, à espera da sua vez, e o branco onde tudo poderia começar. Jorge Pinheiro desenha mãos, desenha rostos, desenha corpos, desenha os panos e os véus que os cobrem. Eu penso que o artista quer testemunhar o tempo e o seu poder de orquestrar o esvaimento. As figuras prostradas já estão docilmente dentro da noite serena. O poeta deseja a eternidade da luz e do incessante pulsar do frenesim do dia. Do not go gentle into that good night,/ Old age should burn and rave at close of day;/ Rage, rage against the dying of the light. [Dylan Thomas]. (Não entres docilmente nessa noite serena,/ porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;/odeia, odeia a luz que começa a morrer). [trad. de Fernando Guimarães]. Eu diria que Jorge Pinheiro sabe que a luz se apaga e que não se pode pedir emprestada a luz das estrelas; mas também sabe que essa luz pode renovar-se. Ao lado de mãos gastas, aparecem mãos lisas, de crianças, gerações entrelaçadas ao ritmo da luz e da escuridão, da rapidez e da lentidão, do antes e do depois, do fim e da esperança.
Jorge Pinheiro, na mesma folha, ensaia um inventário possível da tal consciência da metamorfose, propondo a contemplação do sagrado do pormenor discreto. A imensidão do particular na existência humana e no mundo é tão irrepetível que nunca está completa. Os desenhos são exaustivas notas de pensamento sobre o sangue e os nervos da vida. É nesse exercício do desconhecido que não se pode tocar um trilo duas vezes da mesma maneira, nem escrever a mesma frase duas vezes da mesma maneira, nem desenhar a mesma coisa duas vezes da mesma maneira. Na persistência de continuar a tentar o que é insondável no tempo de uma existência, o artista propõe a contemplação do silêncio que emana dos traços. Lembro-me de Vermeer que para retratar o silêncio, pinta instrumentos musicais em cenários domésticos, pertencentes a figuras femininas plácidas e introspectivas.
A metáfora do pão pode ser, talvez, a metáfora da continuação do ciclo da natureza, indiferente ao silêncio, à metamorfose, à velhice, à morte… como se o que contasse fosse sempre o futuro, o sentido que as coisas têm amanhã, o amor que se pode encontrar ainda. O pão é a prova da simplicidade nessa crença e a expressão do seu significado concreto. O pão está do lado dos que não querem renunciar à vida, dos que não querem enfrentar o Inverno como a derradeira estação da alma, sabendo que é a derradeira estação do corpo.
Jorge Pinheiro não abandona as interrogações fundamentais da existência. Tem, certamente, não longe de si, os mandamentos do Oráculo de Delfos, aqueles que confluem para o conhecimento, a começar pelo de si mesmo…, sabendo que nesse conhecimento a margem de erro, de desilusão, de engano é muito grande.
O enigma dos mandamentos persiste, anda de roda do artista e ele dedica-lhe o seu tempo e o seu génio. Observemos a série de desenhos das freiras. Fiquei muito tempo a olhar para esses desenhos. São intrigantes, insólitos, misteriosos. São inspiradores de uma reflexão metafísica, mas também de uma narrativa literária. A série remete-nos para a cultura judaico-cristã, mas o universo iconográfico é feminino e especificamente representado por freiras, eventualmente de clausura. Estão muitas emoções e muitos sentimentos concentrados nesses desenhos. O olhar do artista remete-se para a ambiguidade: relata cenas de uma via da paixão de inesperadas personagens, sem mostrar bem qual o investimento de ironia, ou de misericórdia que coloca nesse relato. Jorge Pinheiro apresenta a metamorfose da alma no registo do esquecimento do corpo, escondido no hábito religioso. É impossível não pensar nas confissões poéticas e nas experiências místicas de Santa Teresa d’Ávila, participadas ao mundo como o encontro íntimo do belo e da consolação.
Jorge Pinheiro que sabe desenhar a sensação de tristeza depois da canção terminar, parece também sugerir que a tristeza não é eterna. Esse é possivelmente o canto que relança os dias.


Fátima Pombo
Porto, Outono de 2006

TEMAS OPORTUNOS

ex Kamikaze, 23.11.06
Amanhã, a partir das 11h e sábado de manhã decorrem, no Auditório da Faculdade de Direito de Lisboa, as conferências organizadas pelo Conselho Superior da Magistratura, sobre oportuníssimos temas (*) e com oradores de fazer augurar proveito a quem assistir/participar. foi solicitada a inscrição mas o acesso, havendo lugares no auditório, é livre.

(*) "
Funcionamento do sistema judicial e desenvolvimento económico”

“Sistema de recrutamento e formação de Magistrados

– balanço da experiência portuguesa e modelos alternativos"

ver o programa
aqui.

O tempo esse grande simplificador 4

d'oliveira, 22.11.06
De vez em quando a honra de um gesto sai-nos ao caminho
Reprodução de três cartas trocadas entre MBC e mcr

3. Marcelo,
Muito obrigado pelas tuas palavras e pela tua amizade. O texto é público e poderás fazer dele o que bem entenderes.
Um abraço do
MBC

2. Mário
Li com a atenção devida a carta que quiseste mostrar-me. Devo dizer que não me surpreendeu. Quem te conhece há mais de quarenta anos e tem testemunhado as tuas tomadas de posição desde essa altura lê esta tua carta com a confortante certeza que nem tudo está mal neste triste reino da Dinamarca.
E não fora dar-se o caso de serem cada vez mais raras as atitudes nobres nem sequer escreveria mais do que um sóbrio "recebi, um abraço de solidariedade."
Mas os tempos não estão assim tão fáceis pelo que o melhor é mesmo dizer alto e claro, muito claro, que ao ler o teu breve texto me assaltou uma sensação de regozijo (por ser teu amigo há tantos anos) e de renovada admiração e de orgulho.
Ia acrescentar "esperança" mas não me parece que o forno esteja assim para tantos bolos.
Caso me permitas gostaria de a publicar no blog ou pelo menos de ar eenviar a um par de amigos. Tu mandas.
Recebe, um forte abraço do
Marcelo

1 Exmo. Sr. Eng. POÇAS MARTINS
Comissão de Estruturação
CMPEA – Empresa de Águas do Município do Porto, EM
P.M.P.

M/referência: 3382/0058
V/referência: Provedor do Cliente e Conselho Geral da CMPEA
Ex.mo Senhor:
Na impossibilidade do desejado contacto pessoal em razão de diligências judiciais inadiáveis e não querendo deixar de cumprir o prazo acordado para a minha resposta, venho, por este meio, informar V.Exa. do seguinte:
a) agradeço, mais uma vez, o convite da Câmara Municipal do Porto para integrar o futuro Conselho Geral da CMPEA como seu Presidente;
b) ponderada a situação em todos os seus aspectos cheguei, porém, à conclusão de que não poderei, em coerência, aceitar tal convite pelas seguintes razões:
1. Ocupei durante 4 anos a função de Provedor do Cliente dos SMAS dentro de um espírito de serviço público que correspondia à minha filosofia pessoal de actuação profissional e cívica numa sociedade democrática e numa administração pública em fase de necessária desburocratização e reforma. Fui, para tal, convidado pelo Exmo. Conselho de Administração presidido pelo Eng. Rui Sá. Ao longo deste período - e apesar de algumas dúvidas que, por vezes, me assaltaram – acabei por concluir que a existência de uma Provedoria do Cliente dos SMAS/Porto constituiu uma solução inovadora, corajosa e com comprovados resultados positivos tanto para os mais de 152.000 clientes como para a própria empresa. Tal solução, aliás, inscreve-se num crescente movimento nacional e internacional de defesa do consumidor (especialmente em sede de contratos de massa) e de modernização constante da administração pública. Com efeito, cada vez mais surgem novas Provedorias quer dentro do nosso sector público central ou local quer junto das empresas privadas com gestão mais avançada e socialmente competitiva.
2. A decisão camarária que teve a amabilidade de me comunicar no sentido de a Provedoria deixar de existir na actual CMPEA não acolhe, assim, a minha concordância e não se revela consonante com a experiência concreta já obtida.
3. Por outro lado, analisados os estatutos da CMPEA e, em particular, os arts.11 e 12 referentes ao seu Conselho Geral, verifiquei que a solução agora adoptada – criação de um Conselho Geral - não corresponde à minha maneira de pensar e agir nem se adequa às razões que me levaram a limitar a minha normal actividade de advogado abraçando com entusiasmo uma função de Provedor do Cliente dos SMAS.
4. Nesta conformidade, não vejo que, pela minha parte, seja coerente poder aceitar participar de um tipo de órgão que a prática generalizada noutras instituições sempre demonstrou ser meramente formal, não independente e desprovida de qualquer utilidade prática. Igualmente me parece impossível participar (como se houvesse um qualquer tipo de concordância ou sentido de continuidade) na extinção da Provedoria do Cliente dos SMAS - na sua dupla vertente de defesa dos interesses dos clientes e apoio na modernização dos procedimentos – e sua aparente substituição por um Conselho Geral que prevejo inócuo.
b) peço, pois, a V.Exa. a amabilidade de informar quem de direito desta minha posição face ao convite efectuado.
c) termina deste modo a minha longa colaboração com os SMAS (iniciada em 1982) restando-me, apenas, preparar o encerramento da actividade do Gabinete e apresentar ao Exmo. Conselho de Administração o relatório final estatutariamente exigido.
d) o meu mandato termina em 30 do corrente mês e, atenta a anunciada extinção da função, não se mostra aplicável o disposto no art.6-2 dos Estatutos do Provedor do Cliente, pelo que nessa mesma data cessarão os meus compromissos com os SMAS/CMPEA.


Os meus cumprimentos.
Ao seu dispor,
Mário Brochado Coelho

Ainda que sejam inúteis quaisquer comentários convém esclarecer que Mário Brochado Coelho é advogado no Porto. Frequentou a Universidade de Coimbra quase até ao final do 5º ano, altura em que foi expulso da universidade devido ao seu forte envolvimento na crise académica de 1962. Licenciado por Lisboa advogou sempre no Porto e até 1974 interveio em numerosos processos políticos e sindicais.

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