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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Diário Político 37

Incursões, 31.12.06
Noite tranquila em casa
Antes fosse em Clichy, para celebrar de uma penada o Miller, leitura obrigatória e grata, e um par de amigos parisienses. Há largos anos que não passava a noite de fim de ano em casa, num mano a mano com a Crazy Grazy, sozinhos e descansados enquanto lá fora faz um grisu horrível. Mas aconteceu e está a ser bom. A C.G. andou a fazer uns exames complicados aos interiores e não estava para grandes saídas. Ai eu, quero é descanso anunciou, e foi fazer arroz doce. A Luísa Feijó ainda telefonou a sugerir um jantarinho com com a Teresa e o Rui (Feijós) e a Manuela Bacelar, mas nada demoveu a CG. De casa não saio! Pronto, pronto, não há crise, ficamos chez nous, qual é problema? E ficámos. A CG entretanto sempre por via das sequelas dos exames médicos já feitos, avisou que se eu queria jantar que me amanhasse. Isto em tom de desafio mas o que ela sabe já a mim me esqueceu...
Há dias, temendo um fim de ano difícil, tinha comprado uma tábua de patés e outra de queijos para o que desse e viesse. Se lhes juntássemos pão fresco e um Porca de Murça, reserva de 2001, tinhamos um jantarinho vagamente parisiense sobretudo se o fizéssemos diante de um programa de variedades da TV5. Nós nunca comemos de televisão acesa, mas isto era mais um picnic do que um jantar de festa pelo que a televisão foi convidada.
Querem saber que se comeu bem? Pois comeu-se muito bem, os queijos eram decentes, um deles mesmo excelente e os patés na proporção de 2 para um eram dignos de qualquer mesa.
E o arroz doce, ai o arroz doce...
Duas pessoas que gostam uma da outra são uma companhia enorme. E é por isso que o meu postal de fim de ano é este: a dois também se passa bem a noite.
Que para todos vós isto seja igualmente verdadeiro, no ano que daqui a momentos vai começar. A dois, o mundo é nosso e a vida também.

Au Bonheur des Dames 45

d'oliveira, 31.12.06
A escalada do Carmo e do Chiado maila rua da Misericórdia
por duas velhas senhoras cheias de apetite

A gula é um feio pecado, ou pelo menos era isso o que dizia o monsenhor Palrinhas padre titular da Igreja de S. Julião, ali para as bandas da Figueira da Foz, igreja antiga mas que não conserva traços dos séculos obscuros em que terá sido erguida. Este monsenhor Palrinhas palrava que se fartava tinha sermões mais compridos que a espada de D Afonso Henriques e mais chatos do que o Nanaia. Convém não avançar mais um passo sem explicar aos que não tiveram a sorte de nascer entre a foz do Mondego e a serra da Boa Viagem quem é este Nanaia que já várias vezes terei citado. Ora bem: a falar verdade não sei bem. A expressão é figueirense, claro e referiria um cavalheiro chato, chatíssimo, digno de figurar no “Tratado Geral dos Chatos” (Guilherme de Figueiredo, Ed. Civilização Brasileira, s.a., 1963, 3ª ed., 1963 exemplar 1679!) e pelo que me foi dado saber deveria caber na categoria chato agressivo polémico (pp. 66 op. cit). Na Figueira terra de prodígios ainda que não tão abundantes como em Buarcos, os chatos há anos que tentam bater este record e conseguir que o seu nome sirva de medida e termo de comparação mas a verdade é que o Nanaia permanece impertérrito!
Portanto, monsenhor Palrinhas e a sua loooonga looonguissimaaa condenação dos sete pecados capitais, de todos os veniais, das virtude teologais e de outras coisas que tais. A gula, o simples apetite, porventura, assumiam a seus olhos foros de escândalo imenso.
As duas velhas senhoras invocadas no título são a Mãe e a tia Néné que agora, depois dos oitenta, atingiram a honra de serem referidas no melhor inglês que a prima Maria Manuel (licenciada em românicas....) conseguiu: as “old ladies”!
Em tempos que lá vão eram duas belas mulheres que atraíram muito e cobiçoso olhar no “Casino Peninsular”, elegantes e magras, coisa que o tempo modificou: agora têm charme e encanto das coisas antigas. A tia Néné ainda é mais magra, enquanto a Mãe, porventura mais conhecedora da vida, engordou uns quilos e nos intervalos de uma extraordinária dieta que ela segue por motivos de saúde (ou melhor pelo que ela entende como motivos de saúde) come-lhe bem, para castigar a carne, fazer baixar os humores fleumáticos, abater os biliosos e os coléricos, e melhorar os outros cujo nome ignoro.
Ora, para festejar a época natalícia, entendeu esta sábia senhora, aproveitar uma das minhas idas a Lisboa para ir conhecer de visu o restaurante Tavares na sua renovada forma. Melhor dizendo, numa das suas extensas leituras (ela lê tudo o que apanha ao alcance...) deu com um artigo que louvava a excelências da sala de cima do Tavares onde se comeriam uns mimos por preços não excessivamente excessivos. A descrição de algumas iguarias lá lhe despertou o palato e resolveu, em consequência, abrir uma das suas habituais e semanais excepções à dieta, para ir conhecer esse prodígio da gastronomia. E já agora leva-se a magra, disse-me, referindo-se à irmã mais nova e o Quim, outro irmão mais novo ainda. E a Maria Manuel. acrescentei Claro, respondeu-me a excelente senhora e até pode trazer o Eduardo, parece que está doente, deve comer pouco e como não bebe, nem pesa na conta. Admirei, ao mesmo tempo, a generosidade da mater famílias e o seu sempre presente sentido da economia.
Decidimos (isto é ela decidiu e eu ouvi), em consequência, atacar o Tavares num sábado, aliás no sábado véspera de Natal. Alertaram-se os parentes, combinou-se encontro na Suíça (em tempos já não muito recentes, a Mãe tinha uma espécie de base numa outra pastelaria da baixa, mesmo ao lado do elevador de Santa Justa. Entretanto os novos tempos suscitaram nos antigos proprietários o desejo louco de enriquecer pelo que de velha e esplêndida sala de chá aquilo transformou-se numa coisa horrenda de pronto a comer e o bando de velhas, velhíssimas mães e tias foi enxotado para outras paragens.
A reunião familiar iniciou-se bastante cedo porque a tia Nené e a Mãe teriam muito que falar enquanto nós (o tio quim a prima Maria Manuel e o escriba) iriam dar uma volta pelas livrarias e mesmo pela feira de alfarrabistas da rua Anchieta.
Quando regressámos à base, as duas old ladies apresentavam já vagos sinais de impaciência para não dizer fome. Vou buscar o carro, declarei, um pouco para me safar e muito por achar que Carmo, Chiado e meia rua da Misericórdia era subida demasiada para duas anciãs que somam mais de 160 anos. Que não, ripostaram as duas atletas! Que isso até lhes dava oportunidade para criar apetite. Que elas, a rua do Carmo, o Chiado e a Misericórdia era terra conhecida e batida... A prima Maria Manuel abundava no mesmo sentido: que viera a pedibus calcantibus desde as alturas da Graça com a mãe, a tia Néné, e que aquilo tinha sido uma corridinha... O tio Quim, esse, pensava mais no que iria comer e beber no Tavares, do que nas pernas das manas, isto de ser irmão mais novo, tem destas coisas, ai elas aguentam-se, estão ali para as curvas etc e tal.
E começou a escalada. Para meu espanto, as duas Senhoras treparam o Carmo enquanto o diabo esfregou o olho esquerdo. Animosas e decididas ainda tiveram tempo para deplorar o fim de grandes lojas tradicionais, ai o Martins & Costa, murmurou a Mãe, e neste ai ia um desgosto infinito pelo menos igual ao da recordação das ostras que eu comprava parta levar para cadsa do Zé Campelo e da Alda Rodrigues, e a luvaria disse a tia Néné estará igual? E nesta desconfiança da requintada tia que em luvas foi sempre inflexível, era todo um século que espreitava. E o David & Monteiro, resmunguei eu, raios parta a má sorte!. E arribámos ao Chiado, onde sempre choro pela leitaria Garrett, minha e do Vitorino ou vice-versa, que mal faz, somos amigos há tantos anos... arrisquei uma mirada para as duas old ladies mas fiquei espantado e tranquilo: subiam a ladeira com ar decidido. Corria-lhes nas veias sangue antigo, sangue de quem há oitocentos anos conquistara Lisboa aos pobres mouros que não estavam definitivamente preparados para mulheres que prefiguravam a padeira de Aljubarrota. E entrámos em acelerado na rua da Misericórdia, à vista do Tavares, do meu contentamento de tantos anos, que saudades do Fernando, magnífico restaurateur e do Miguel Magalhães ou do Zé Luís Nunes companheiros e comensais de tantos anos. Prometi-lhes, in immo pectore, que comeria pelos três, ainda por cima era a mater augusta quem corria com os maravedis!
Tavares, uma da tarde, 24 de Dezembro: fechado, definitivamente fechado, sab e-se lá porquê, se calhar pensam que a manhã de 24 é para ir à missa, fazer jejum e cobrir a cabeça de cinza, fortes sacanas! E pela rua acima era um rosário de casa fechadas, feias e inamistosas. Raios parta a sorte. Logo hoje que a Mãe estava com disposição de abrir os cordões à bolsa.
Acabamos na adega de S Roque onde nem se comeu mal mas definitivamente tristes. As duas senhoras que tinham escalado o Himalaia na esperança de um entrecot a la bordelaise a la sauce de chalottes contentaram-se com joaquinzinhos com arroz de feijão e exigiram para o regresso transporte motorizado sem sequer atyenderem ao argumento de que agora era só a descer.
Salvou-se apenas a frase memorável da Mãe: não foi desta será da próxima!
E com esta sentença digna de menção em qualquer manual de história pátria, aviso e comentário seco sobre as vicissitudes do horário dos restaurantes, termina esta crónica que vai toda para dois descobertos leitores que muito me honram como, aliás todos os outros que me aturam. Refiro com um forte abraço o Rui Namorado e o Manuel António Pina. Eles sabem que os li, leio e lerei sempre com prazer e inveja. Ao desejar-lhes um bom 2007 faço-os portadores do mesmo voto para todas e todos quantos me aturam.

O bonheur 44 segue-se ao 45. Afinal, o que é um número perguntaria Shakespeare numa outra versão do Romeu e Julieta? Uma convenção, caríssimo Bill, uma mera convenção. Um erro detectado pelo Manuel Sousa Pereira que agora tento remediar. O próximo “bonheur” terá o número 46 e tudo entrará na ordem. Aliás esta desordem numérica, anárquica atrever-me-ia, dá um certo sal a estas descosidas prosas.

Au Bonheur des Dames 44

d'oliveira, 29.12.06
Canção de embalar para o Pedro acabado de nascer

Isto, Pedro, em boa verdade, havia de ser em verso, pronto a cantar mas, que queres?, não me sai pelo que terás de te contentar com uma prosa pobre mas sincera e fingir que a ouves como uma cantiga. O teu avô, dúbia personagem que irás aprender a conhecer, telefonou-me há pouco contente como nem calculas, ultrapassando a tua avó que tentava apanhar a Doris mas que perdeu nessa corrida por uma miserável meia cabeça. Se eu fosse simpático diria que eles empataram mas, como diziam uns cavalheiros antigos e romanos “amicus Cato sed veritas” ou seja amigo de Catão mas mais ainda da verdade. Portanto o teu avô ganhou a batalha da informação coisa que irá pagar amargamente durante as próximas semanas. Aprende, meu querido, esta primeira lição: com as mulheres perde-se sempre ou, pelo menos, deve fazer-se por isso.
Dirás que com um simples dia de idade (e nem um dia é...) talvez seja cedo para receberes uma carta. É verdade mas isto tem uma explicação: há muitos anos, escrevi uma carta ao David primeiro filho da prima Maria Manuel quando ele teria quinze dias três semanas, vá lá um mês... O Manuelzinho, teu avô ficou de monco caído porque eu nunca tinha escrito ao teu pai. Prometi-lhe com a solenidade que meia dúzia de cervejas dá que alguma vez repararia tal falta. Esta é a razão primeira (mas não a única) desta carta. Porque há outras, Pedro, e muitas. À uma eu sou amigo do teu Pai. Vi-o nascer, quase que o vi ser concebido (Jesus que festim bárbaro!) vi-o crescer, dei-lhe carolos e um canivete suíço quando tinha sete anos (e a tua avó num susto, ai que o menino se corta. Qual corta qual quê, respondi-lhe e expliquei-lhe que com o canivete e os sete anos ele passava de menino a rapaz e que um rapaz não se corta. E não se cortou! O que prova a bondade da minha tese e a profundidade da minha ciência educativa.), ensinei-o a jogar poker de dados, a dizer alguns palavrões decentes, a mergulhar de cabeça no rio e mais um par de coisas que a seu tempo (se as Parcas me permitirem) te direi.
Não tenciono ir visitar-te ao hospital. As crianças, Pedro, quando nascem parecem-se, para pior, com os frangos de aviário expostos nos supermercados. Já sei que a tua avó e o teu avô te acham a criança mais linda da criação mas els são avós e ceguinhos pelo que se lhes perdoa o exagero. Vou deixar que cresças, tomes corpo e cor para te poder pegar como se pega num bebé.
Agora que estamos conversados quanto ao social, vamos ao que interessa. Acabas de herdar (do teu Pai) o lugar direito traseiro do meu carro. Poderás, querendo, trazer os teus pais que no entanto viajarão sempre classificados como bagagem não acompanhada. O tu avô irá pelos seus próprios meios ou de skate atado ao carro. Dentro não há espaço como verás logo que puderes ver. O homem é imenso, gordo, redondo como um tamanco, não cabe em sítio nenhum. Só de reboque. E é uma sorte.
Quando tiveres a idade adequada, e se eu viver, ensinar-te-ei um par de coisas. Quando souberes ler emprestar-te-ei com muito gosto a minha colecção de banda desenhada especial (a quem alguns espíritos mal informados chamam erótica. O teu pai leu-a e está aí que se pode ver: um magistrado de primeira, sem traumas, sem pecados escondidos, olhando a vida sem medo, sem vergonha e sem pecado. O que é bom para o pai há-de ser bom para o filho.)
Nasces precipitadamente em 2006 quando só te esperávamos lá mais para Janeiro. Compreendo a pressa mas desculparás que te diga que meteste o pé na argola. Nascer a poucos dias do Natal significará confusão de prendas de Natal e anos. Mau negócio, Pedro! Precipitação, filho, muita precipitação. De todo o modo vens em boa altura, pelo menos para mim que acabo de perder dois amigos velhos de quarenta anos, provavelmente já meios imprestáveis mas de quem eu gostava bastante. Vens pois substituí-los o que é, já te digo, uma forte responsabilidade. Mas acho que estarás à altura. Vens de boa cepa, tiveste um bisavô guerrilheiro em Espanha, uma avó passadora de clandestinos pela fronteira, outro bisavô jogador de poker aberto e apreciador do belo sexo, enfim, tens à volta do teu berço um par de jarretas, vários até, desde o Álvaro caçador de perdizes ao Manuel Sousa Pereira impenitente escultor e mulherengo até dizer basta (se é que ele ouve tal coisa, surdo como está e vicioso como sempre foi), o Carlinhos Cal Brandão (cala-te boca!) e mais meia dúzia de babados adult(er)os que espero te ensinarão o que a mim já me esqueceu.
Desejo-te portanto a aventura, o risco, o trapézio sem rede, o amor louco (e que não seja pouco!), a alegria, a fruta roubada verde na árvore, a gargalhada forte numa rua de Paris, as raparigas saudáveis e loiras de Berlin e Amsterdão e o pecado sofisticado de Roma.
Entra, meu filho, na casa dos homens, com as suas grandezas e as suas misérias, sê bem-vindo e vê se aprendes a jogar bridge que há grande falta de parceiros.
Teu amigo,
Marcelo
PS a Joana e o João Simas estão de parabens. O mesmo se diga dos avós Laurinda e Manel. E dos amigos de há tantos anos que esperam agora um banquete celebrativo para apresentar o recém vindo à sociedade. Sem banquete não há criança mas apenas uma suspeita. Desaperta os cordões à bolsa, Manekas. Um neto é um neto, um neto, um neto.

estes dias que passam (Zé Bandeira)

d'oliveira, 28.12.06
E agora o Zé Bandeira…

O nome dirá pouco á maioria dos leitores. José Gomes Bandeira. Jornalista. Reformado. 69 anos e tantas coisas para fazer. Coisas que já não fará. Como o livro que se preparava para escrever depois de anos de pesquisa. E de provas, acrescentarei. Um livro sobre vinhos. Melhor sobre o vinho. Com a minúcia excessiva, a meticulosidade que ele punha em tudo que fazia. Que fazia bem, convém acrescentar.
O Zé Bandeira era muito nosso, muito deste velho grupo de raparigas e rapazes que envelheceram comigo, que estiveram em todas comigo. Por isso esta “furtiva lágrima”, este olhar espantado, este remorso de continuar vivo. Como se o facto de estarmos vivos lhe fosse, a ele, ao Zé, algo de monstruoso. Nada disso! O que de certeza o Zé não quereria era este sentimento. O Zé fazia parte desse grupo de pessoas que não quer que a morte doa aos outros mais do que o necessário. E que esse necessário seja pouco. Parco. Como ele era consigo próprio: ensimesmado, secretamente habitado por amores que raramente irrompiam para lá daquele olhar doce, daquele meio sorriso que o iluminava, daquele “sócio” que ele chamava a torto e a direito aos amigos, às mulheres que amou, eventualmente à filha, sei lá.
Eu não quero fazer aqui a apologia da minha geração. Bastos erros carregamos às costas para de momento converter tudo isso num fogo de artifício que no breve instante em que sulcam a noite nos faça melhores ou maiores do fomos e somos. Todavia, também não posso deixar de “olhar para trás angustiosamente” e esquecer um percurso marcado pelo entusiasmo, pelas causas em que acreditámos, pelos combates que travámos. E o Zé Bandeira, até onde me lembro, esteve em todas. Começou por apanhar com guerra a dobrar, anos de sobrevivência no capim alto, nas colunas emboscadas, na morte repentina, no tiro furtivo do guerrilheiro. Regressou a Coimbra para retomar o curso de direito e reaprender a viver. E reaprendeu a nosso lado, fraterno, enquanto ia fazendo as cadeiras que lhe faltavam naquele especial sistema de exames a que anos de(masiados) guerra lhe davam direito. Pelo meio enchia-se de cinema, paixão e devoção de que daria provas mais tarde como jornalista e como critico de cinema. Quando foi preciso, naturalmente que apareceu, conspirou, aconselhou e viveu as loucas esperanças dos anos de crise académica.
Foi do grupo inicial da “Centelha”, editora com a qual quisemos “incendiar toda a pradaria”. Fez parte do “conge” palavra esquisita para significar o alargado grupo que dirigiu a crise de 69 e os dias subsequentes em Coimbra. E que, mesmo depois de formados e dispersos por esse país nosso que nos doía, continuou. O Zé veio para o Porto, claro, como muitos dessa geração, e aqui começou a trabalhar como jornalista. O Direito dizia-lhe pouco e o diploma deve ter sido para ele uma inutilidade que se carrega porque é um presente da família. O Zé gostava de escrever, era curioso, culto e por isso mesmo um bom jornalista. Escreveu milhares de páginas, como devia, mas para nós, que o líamos, percebia-se que, por ele, nunca teria saído da temática cultural. Do cinema, sobretudo. Com tudo isso é evidente que andou pelos cineclubes a pregar a boa palavra, o gosto pelo cinema, a análise limpa e clara de quem não precisava de usar palavras esquisitas para dizer se uma fita era boa ou má. Nos preâmbulos do 25 de Abril aí estava ele. Primeiro balcão para não dizer que também dava uma perninha àquele filme de que fomos não direi actores mas seguramente figurantes. Figurantes que tinham lido o argumento e o tinham achado interessante ao ponto de se oferecerem para o que fosse preciso. Depois como quase todo o nosso grupo, entrou no MES do Porto, discutiu, conspirou e saiu como nós. Pela esquerda baixa e cabisbaixos. E continuou, com a sua gente, a sua tribo, os seus camaradas a que ele chamava sócios, sibilando um pouco como bom beirão que era. Envelheceu como nós todos, sem surpresa nem arrependimento. Melancolicamente, talvez, mas isso vinha-lhe de nascença, como o meio sorriso e o olhar míope e doce. E a teimosia que sempre o habitou. E o nervoso miudinho que nem sequer disfarçava. Até hoje. Até um AVC extenso como um filme de Syberberg o liquidar em meia dúzia de horas. The end.
Para trás ficam umas dúzias de amigos de toda a vida, a Lionida, uma filha que era o orgulho dele, um livro por acabar. E milhares de páginas narrando o efémero, perdidas numa qualquer hemeroteca onde alguém habitado pelo fogo do cinema as irá desencantar para escrever a história do modo como víamos cinema nos anos da cólera.
Ponhamos que o Zé não morreu, simplesmente entrou pelo ecrã de um qualquer cinema de bairro e tomou a yellow brick road no fim da qual entre fundidos e encadeados encontrará Fellini, Renoir, Ford, Murnau, Griffith e os outros. Adorava saber o que ele lhes vai dizer!

Vai esta para os amigos e companheiros de uma jornada começada em Coimbra nos anos sessenta e continuada até hoje mesmo que estejamos demasiadamente espalhados. Ó malta temos que nos encontrar mais vezes sem ter que ir a um cemitério.

Estes dias que passam (Zé Loureiro)

d'oliveira, 26.12.06
Zé Loureiro
Faz mais de quarenta e dois anos! Uma vida. Ou quase. No caso presente é uma vida mesmo. Pela simples e definitiva razão que encontrou a morte.
Foi há minutos que a Maria Manuel me interrompeu uma conversa telefónica com a minha mãe. Para me dizer que o Zé Leal Loureiro morrera. O Eduardo, depois, deu-me mais alguns pormenores. Morrera com um ataque de coração enquanto dormia a sesta. Valha-nos isso, pelo menos. Morte súbita, sem anúncio nem sofrimento.
Por um momento, um largo momento, nem soube o que dizer. A gente agora via-se pouco, muito pouco mesmo. Direi que a última vez foi quando se anunciou que ele ia tomar conta da “Buchholz”... Ou seja dois anos bem contados. Curiosamente só nos encontrámos porque eu ouvi uma voz conhecida: a dele. Resmungava ao telefone porque não conseguia encontrar um quiosque aberto na zona onde vivo. Domingo portanto. Procurei o dono da voz e, claro, era ele.
Isto com o Zé Leal era já tradição. Um dia, aliás o dia 1 de Outubro de 1971, a João e eu saímos do Goethe Institut de Berlim onde tínhamos acabado de confirmar a matrícula. Descemos uns metros da Knesebeckstr. E entrámos na Kurfurstendamm em direcção a um pequeno hotel onde tínhamos dormido a primeira noite da nossa estadia em Berlin.
A meio caminho, vimos, e isto não é uma imagem nem sequer um truque, vir um jornal “le monde” aberto com umas pernas e as pontas de um cachecol de lado.
Não sou pessoa de pressentimentos, sequer propensa a adivinhar mas naquele dia, virei-me para a João e disse-lhe que se não soubéssemos que o Zé vivia em Paris, aquela pessoa de que só se viam as pernas poderia ser ele. Porquê? Não sei agora como não sabia daquela vez. Mas era o Zé, diabos me levem. Acabara um período no Goethe e ainda se demoraria em Berlin por mais umas duas ou três semanas.
Aquele encontro foi precioso. Nesse mesmo dia conhecemos várias pessoas amigas do Zé, ficámos com dicas óptimas sobre a cidade, sobre o nosso “Studentenheim” que uma das namoradas do Zé (ele tinha duas, irmãs ainda por cima e desconhecendo a relação do Zé com a outra, claro) qualificava de “Gefängnis” e sobre um par de restaurantes baratos, bons e servindo comida abundante.
O Zé de facto era vizinho da João, desde pequeno. E apesar de mais novo ia muito lá a casa, podendo mesmo dizer-se que as suas primeiras leituras proibidas ocorreram na hospitaleira casa da Alcinda e do Jorge Delgado. Não se pode dizer que o Zé tenha tido um mau professor na pessoa do Jorge Delgado. Antes pelo contrário. E foi aí que em 64 o conheci. Um miúdo inteligente, extremamente curioso e desesperado por ainda andar no liceu.
Depois fomo-nos cruzando por aí. Até que ele decidiu ir para Paris. Onde, claro, o encontrámos embora de modo menos romântico do que em Berlin. Nessa altura descobri, espantado e divertido uma livraria que o Zé frequentava na rue de Medicis, “L’Impensé Radical”. Nessa altura finais de 60 e princípios de 70, a livraria dedicava-se a literatura sobre jogos, a Freud e a mais um par de coisas relativamente fora do vulgar. De lá trouxe os meus jogos desde o “Go” e respectiva literatura toda editada pelo “impensé...” até ao “Djambi” e ao “jogo dos três reinos”. De há muito a esta parte que deixei de ter parceiros. A livraria também já não existe (acho que em seu lugar há uma livraria espírita) e o livreiro e editor, um grego exilado e culto também há muito que desapareceu. Terá voltado ao pais natal agora que está sem coronéis.
Depois durante a segunda metade dos anos setenta fui encontrando o Zé já instalado em Lisboa e dedicado à edição. E havemos de convir que sabia escolher livros. Mesmo que no capítulo negócios tivesse sempre apostado mal. Mas agora, que interessa?
Depois fomo-nos encontrando por aí. Uma das vezes apareceu-me na delegação do ministério da cultura por causa de um prémio de arquitectura que uma empresa que ele representava resolvera atribuir. Se não estou em erro foi por causa de um edifício do Eduardo Souto de Moura que nós (o Rui Feijó e eu) tínhamos conseguido convencer as autoridades a fazer depois de o projecto ter ganho limpamente o concurso. Anos de guerra, de propostas, de empenhos, de argumentos, de insistências. Até que Coimbra Martins pronunciou o fatal sim. Depois como é costume foi outro a inaugurá-lo. Demorou anos mas aí está: é a Casa das Artes (nome imbecil!) e foi o primeiro edifício significativo do seu autor. A empresa que o Zé representava (seria a Secil?) atribuiu o prémio a essa casa.
Nessa altura o Zé já tinha um bojo impressionante bem diferente do rapazinho entusiasta de quinze anos antes. Mas conservava o gosto seguro e a mim recordava-me anos felizes e aventurosos.
Agora acabou-se. Durante o sono, o coração traiçoeiro desforrou-se de anos de maus tratos. Agora já não discutiremos de novo quando nos encontrarmos. Eu não lhe direi algumas violências e ele não me chamará idealista envelhecido e petrificado. A revolução que ambos amámos também não parece de boa saúde. Como o coração do Zé. O coração que parou à tardinha durante a sesta.


Erbarmt euch des Todes
Menschen erbarmt euch
Rettet die Chance euch zu sterben
zumindest.

Nota: final de um poema de Wolf Biermann in Die Drahtharfe (tenham piedade da morte, homens tenham piedade da morte. Salvem pelo menos a possibilidade de morrer.

O Natal, por António Gedeão

ex Kamikaze, 24.12.06
Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.


António Gedeão

(in "Máquina de Fogo", 1961; "Poesias Completas", 1968)

Boas Festas

José Carlos Pereira, 22.12.06
Este que se assina e que tem andado ausente destas paragens - mas isso em Janeiro há-de melhorar - não podia deixar de vir aqui assinalar que amanhã, dia 23 de Dezembro, se completam dois anos de convivência aqui no Incursões. Um tempo que me permitiu conhecer pessoas muito interessantes, fazer novos amigos e com eles aprender.

Aproveito o ensejo para fazer votos de Feliz Natal e desejar um Grande 2007 a todos.

Diário Político 36

Incursões, 22.12.06
Natal de emigrantes com sol e coqueiros


Em 1954 o Natal passou-se numa terra estranha onde chegáramos há cerca de nove meses. Pior ainda: fazia um calor de verão africano, entremeado pelas súbitas e torrenciais chuvas que deixam depois um ar muito limpo e novo e um cheiro intenso à terra molhada e primeva. À terra pisada pela Lucy (in the sky with diamonds? Vá-se lá saber...), à terra do Tarzan, à terra de Kurtz, essa terra que o Veloso amigo pisou em desatada correria.
Chegáramos, disse, os quatro, o pai, a mãe e o mano Octávio. E como a casa que nos estava destinada ainda não estava pronta, estivemos vários meses acampados, é um modo de dizer, na pensão Estoril ali à 24 de Julho. E coincidência, daí só saímos em vésperas de Natal. Terra nova, casa nova, mundo novo. E nós despaísados, perdidos sem a referencia dos frios, da família numerosa, cordial e quentinha, nós para ali (eu ia escrever práli que me parecia mais compatível mas já basta o keres em vez de queres, nov-lingua bastarda que deita fora o q de cauda tão bonitinho, quase um g mas sem o dengue da voltinha, de modo que honrada mas melancolicamente escrevi certinho. Ah o gramaticalmente correcto às vezes é mais chato do que o Nanaia...) naufragados no sufoco da contra-costa, sem ainda conhecer os cantos à casa e o novo bairro que íamos habitar nem os vizinhos todos ainda praticamente desconhecidos.
Imagine-se pois, o dia de Natal assim, tão despido de memórias e afectos, longe de tudo e perto de coisa nenhuma. Todavia fizemos das fraquezas forças que era tudo gente nova (a mãe andaria pelos 35 e o pai pelos 42, vejam bem (veja eu que lhes levo bem mais de vinte anos à melhor...).
No dia de Natal, no dia 25, faz favor, que era esse o nosso dia das prendas, lá nos juntámos para o ritual de abrir os pequenos embrulhos enquanto lá fora o sol alto prometia um intenso dia de praia e de caril, feito pela dona Rosa, especialista nesses segredos da grande cozinha tropical. E iria ser no pavilhão da praia, hoje destruído pela incúria e pela burrice colonial e anti-colonial, junto da praia protegida por um aramado onde não entrava tubarão.
E desses presentes só recordo um: um livro que o pai comprou para lermos em conjunto: “Três homens num bote sem falar no cão” de Jerome K Jerome. Quem não leu este livro não sabe o que é o grande humor, a auto-derisão. E não sabe sobretudo o poder da gargalhada franca, até às lágrimas, que nos acometeu a todos nessa noite em que os quatro nos revezávamos rindo e chorando com as aventuras impossíveis de três cidadãos pacífic os que subiam o Tamisa com um cão num bote. E lemos o livro até ao fim, num esforço que seria penoso pelas gargalhadas, mas que subitamente nos libertou desse mal tão português da saudade, da lembrança do natal frio, do peru e do bacalhau e nos converteu ou reconverteu naquilo que de facto éramos: uma família trivial, vulgar, que se descobre e inventa a cada passo, que vence as dificuldades da terra alheia convertendo-a em sua pelo milagre do riso, da leitura partilhada. Foi um belo natal. Numa bela terra. Com a melhor família possível.
Obrigado pai, onde quer que estejas.

A todos os leitores e amigos desejo um bom natal. Aproveitem e façam por deixar dele uma boa recordação para os mais novos.

Au Bonheur des Dames 43

d'oliveira, 21.12.06
De regresso a casa, à sombra das tamargueiras que já não são....

Começo a estar velho para este bulício todo, para a confusão das últimas compras, para as malas que se têm de fazer, enfim um saco, também não é assim tanta coisa, por quatro ou cinco dias no máximo. Dantes, sim, dantes ia-se com tempo para essa velha casa de família, para estar com todos com os vagares que convêm ao inverno, às longas noites de lareira, o frio lá fora e um luar de pasmar mortos e vivos, como se subitamente regressássemos a um tempo mais puro, mais inocente, mais próximo desses outros povos que a estultícia ocidental ousou chamar primitivos, como se o cultos do antepassados fosse menos digno do que outros mais modernos e mais distantes do que somos, do que vimos e para onde vamos. A velha polis grega só começou a sê-lo verdadeiramente quando houve a consciência de um espaço habitado por gente que rendia preito aos mesmos deuses e aos mesmos antepassados comuns. O resto, irmãos, companheiros e amigos, é paleio de encher, auto-engano, renúncia ao que somos.
E nesta chamada aos que foram estou a incluir um par de serviçais velhas que faziam parte da família, mais do que muito familiar. No caso em apreço, o nosso, est(ar)ão à mesa a Maria “costureira”, as Berlanjas todas, mulherões de levar tudo à frente delas, a Joaquina, a Clarisse e a Deolinda, a Maria do Rão e, porque não, os fidelíssimos criados negros que durante dezoito anos serviram em nossa casa, em Nampula, comandados pelo senhor Tesoura, cozinheiro de mão cheia que a minha mãe achava que fumava maconha, o mainato, muçulmano convicto que dava cabo do juízo ao Mário, o “moleque” que era da nossa idade quando começou a trabalhar lá em casa e se transformou num bêbado impenitente. Quando a minha mãe o ameaçava de despedimento pelas borracheiras tremendas com que aparecia, ele dizia-lhe com um despudor absoluto: Senhora não pode. Mário é irmão dos meninos.
E era!
Tudo isto, toda esta cada vez mais imprecisa memória de África, agora mais cores e cheiros que factos precisos, que faces nítidas, mistura-se com o natal de Buarcos, quando vinham os avós paternos e na casa se armava uma árvore de natal com enfeites antigos, do tempo de menino do meu pai ou até de antes, sei lá. E nesses natais recebemos parcimoniosamente, ano pós ano, juntamente com alguns, não demasiados, presentes modernos, os antigos brinquedos do pai, um carrinho de pedais vermelho que o Alfredo Esteves haveria de estragar metendo o corpanzil gordo e volumoso lá dentro, um canhão que disparava balas de borracha, indústria alemã garantida, muitos livros, alguns brasileiros oferecidos ao pai pela bisavó Ubalda Heinzelmann, e entre eles os Vernes. Ah os Vernes, que encantamento. Ainda recordo um entre todos, “Robur o conquistador” lido numa tarde. Quando pedi outro porque aquele já estava aviado, a família com ar grave entendeu não acreditar. E mandaram-me contar a história: quando lhes disse toda a primeira página, enfim grande parte dela, que há algum tempo voltei a recitar à vendedora de mais uma edição quase nos mesmos termos, caíram das nuvens. Que memória!, dizia o avô Alcino, que memória repetia orgulhoso o pai Marcelo. Eu bem que tentava explicar que só tinha memória para o que gostava mas eles nada. Quem tem memória e não é burro de ferrar, tem de ser bom aluno. Ai o que penei por via do Robur o conquistador e da teoria do voo dos veículos mais pesados do que o ar...
O Natal representava forte actividade lá em casa, comidas que se faziam, peru que se embebedava, rabanadas cuja confecção o avô Alcino comandava, com um espantoso avental e dois instrumentos apropriados para as tirar da sertã e que tinham vindo de Inglaterra. Ainda os temos, esses instrumentos extraordinários que já por várias vezes usámos cá em casa. E são de tal forma curiosos que a “Dóris Ibarruri” não deixa o seu uso a ninguém. Só ela sabe, o diabo da adventícia... Pretenciosa!... Por razões que desconheço havia um par desses instrumentos de forma esquisita de modo que é um para cada irmão, bom princípio de partilha que a minha Mãe impôs.
Estes natais vieram aliás depois doutros, passados em casa dos avós maternos, no meio de uma alegre confusão em que dois netos pequeníssimos, eu e o meu irmão, eram alvo das atenções do avô Manuel, militar e severo que se desfazia com os pequenos. Contam que ele passava a vida com um de nós ao colo e outro pela mão. Os meus tios mais novos, por seus turno, tentavam roubar filhozes e balhoses guardadas (está quieto ó mau!) no quarto do avô. Rastejavam como índios para não ser avistados da cama onde o pater famílias repousava dos afazeres da reforma. A avó Aldina tinha mão doceira e era gulosa. E nunca deixou definitivamente de o ser mesmo quando, obtido o estatuto de a mais velha, coisa que lhe aconteceu quando terá feito os oitenta anos e lhe ofereceram um bengala. Tornou-se imponente e bisavó por essa altura, argumentos suficientes para eu e a prima Maria Manuel lhe outorgarmos o título de “Velha Senhora” que ostentou até aos 97 anos, morrendo trisavó e, aliás, numa véspera de natal. Mas deixou na nossa memória tribal um tal rasto de energia e de alegria que não foi por isso que os natais perderam perfume. Faz mais falta, é mais sentida a ausência, o meu pai que sentia o natal como algo muito seu. Quando nasceu o segundo neto, um rapaz, o meu sobrinho Manuel, eis que o orgulhoso avô comprou imediatamente um complicado comboio eléctrico que o neto só poderia apreciar anos depois. Bem, eu tentei, na mesma altura, comprar para um bebé de dias um “mecanno”, brinquedo que me tinha encantado pelos sete, oito anos. Azar dos azares, quando cheguei à loja onde o vira, por um preço esdrúxulo, já tinha sido vendido. Outro tio babado, de certeza!
Isto, como de costume, está a sair de bica aberta, raio de mania, de modo que me esqueci de assinalar que nos natais da casa de Buarcos a tarefa dos dois meninos era a de partir as nozes. Íamos com o saco das nozes, um martelo e um prato para umas escadas exteriores e partíamos conscienciosamente os frutos secos. Volta e meia esborrachávamos uma que, por imprestável, poderia ser consumida rapidamente. Quando a tarefa terminava apresentávamos o fruto do nosso labor, nozes esborrachadas num canto e era-nos concedida licença para as comermos. Depois íamos para perto da mãe para assistir à confecção de vários bolos. Uma vez feita a massa e retirada para o tabuleiro de ir ao forno concedia-se aos anjinhos do lar o direito de rapar o recipiente. Ai meus Deus... nunca me hei-de esquecer daquele gosto. E do outro ainda mais especial que era o de atirar um dedo à massa logo que a mãe olhava para o lado. Corria-se o risco de apanhar um carolo mas a tentação era mais forte.
Haverá melhor natal do que este, com meninos lambuzados de massa crua de bolo roubada com risco das próprias vidas, enfim das cabeças, uma aventura, toda uma aventura?...
Anos depois, tantos, eram os dois sobrinhos mais velhos, a Sara e o Manuel, muito pequenos e igualmente guerrilheiros que havia que conter. Cá em casa, deste escritório de onde escrevo, tive uma vez que telefonar para o telefone da sala para o meu sobrinho, ameaçando-o de severíssimas punições caso ele não deixasse de fazer tropelias extraordinárias. Durante um ano ele acreditou, na inocência dos seus três anos, que era o pai natal que lhe telefonara. Entretanto a Sara, mais velha e mais prudente (apenas nesta quadra, convém esclarecer), portava-se como um anjo. De tal modo que no dia 25, pela manhã, dia das prendas, esperava a tremer de frio, descalça e com uma camisita de dormir, desde as sete ou sete e meia da manhã pelo primeiro adulto que acordasse e lhe abrisse a porta da sala onde as prendas dormiam sob a árvore.
Agora que os meninos cresceram desmesuradamente, que excepção feita da Margarida que só tem dezoito anos, já são adultos e trabalham, o Natal perdeu o gozo. O Natal sem crianças que roubem nozes, figos, passas de uva, massa de bolo, pintem a manta ou tiritem de frio à espera de um presente, é apenas um dia em que a sombra dos que foram se espessa, uma ténue angústia nos invade, um cansaço, uma saudade, alguma impaciência.
Este ano será celebrado sob o signo de uma próxima visita a Buarcos para ver o “Nélito” Pinguel, amigo de há quase sessenta anos que me pediu para lembrar a fiel Joaquina, hoje, doente da Marta sua mulher. O que se faz com prazer. E com um recado: Nélito, prepara-te que os manos Correia Ribeiro não perdem uma hipótese de almoçar contigo.
Bom Natal, amigos, companheiros, leitores, gente da blog-esfera. E lembrem-se: nessa noite que celebra também o solstício do Inverno, à mesa há muito mais gente do que a que se vê. Ponham-lhes um pratinho com pequenos doces simples e um copo, um cálice de “porto”. Numa época em que poucas crenças subsistem, façam por pensar que somos tão só um elo entre os que partiram e os que estão a chegar.

Nota: por erro diz-se que visitaremos Buarcos. Nada mais falso. Não se visita o lugar a que se pertence e que nos fez: somos filhos do mar e da praia, não há volta a dar-lhe. E do vento Norte, da “nortada” que sopra em Agosto e abranda os ardores estivais.


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