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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Estes dias que passam 46

d'oliveira, 31.01.07
37, 3 pela tarde

Eu sou um leitor de jornais assaz complicado. Detesto ler os casos de polícia menos ainda os ecos do jet set. Uma excelente (e bonita!) amiga atribuía esta minha incapacidade a um imenso super-ego que me levaria a só considerar o meu umbigo desdenhando os alheios mesmo incluindo partes pudendas. Aqui para nós, ela considerava-me um snob rematado e trazia à colação a minha ojeriza a grandes ajuntamentos, o meu princípio de comparecer nas festas e jantaradas com o meu carro (“para te poderes pirar quando quisesses sem dar cavaco à maralha...”) e a minha fraca propensão para contar amores e desamores (“que não contes aos teus amigos do peito, percebo perfeitamente, são uns fuxiqueiros e sobretudo os homens adoram gabar-se, dizia-me pesarosa, mas a uma amiga é diferente. Nós mulheres sabemos ouvir e tomamos normalmente o partido dos nossos confidentes”). Eu bem lhe dizia que a minha vida sentimental era quase tão chata quanto a descrição geográfica da Bélgica, mas ela não desamparava a loja. A certa altura desisti de refutar-lhe os argumentos. Pior a emenda que o soneto. Se até ali eu era o que era a partir daquele momento passei a ser uma versão pequeno burguesa do Sacher Masoch, versão lusitana.
Foi pelas razões acima aduzidas que tenho mantido silêncio sobre o estridente caso do sargento pai adoptivo e respectivo oponente. Primeiro, sabendo pouco ou nada do caso, achei que o sargento era um herói. Vejamos:
1. uma infeliz mãe solteira, vendo o fruto do seu pecado repudiado pelo presumível pai, entrega a criança para adopção
2. obrigado pelo MP a reconhecer a criatura, o pai biológico perfilha a criatura e
3. jura vingança. Assim
4. reivindica a criança
5. arrancando-a aos cuidados estremosos do casal que a queria adoptar.
6. o dito casal resolve num imenso acto de amor não entregar a criança.
7 . a mulher esconde-se com a criancinha e o homem arrosta sereno e altivo a prisão.
Contado assim, e foi assim que a imprensa contou o caso, eu, como a Dr.ª Maria Barroso, umas senhoras juristas e uns milhares de cidadãos conspurcámos o nome dos juízes que tinham decidido a favor de um pai biológico ausente e desinteressado.
Todavia, um amigo meu, zangado e vindicativo, veio informar-me que as coisas eram diferentes.
a. o pai biológico antes mesmo de ser convencido da paternidade, anunciou que assumiria integralmente o seu papel de pai no caso de se provar que a criança era filha dele
b. e de facto, no exacto momento, em que viu provada a sua paternidade imediatamente perfilhou a criatura
c. entretanto o casal “adoptante” que se fora “esquecendo” de desencadear o processo de adopção, logo que a vê perfilhada avança com o seu pedido, notoriamente inepto visto que havia pai, perfilhante e garante da educação da criança
d. tudo isto se passa durante o primeiro ano da criança
e. o que significa que se esta tivesse sido como se ordenava no primeiro de vários processos desencadeados pelo pai biológico entregue a este nada de grave ocorreria para o equilíbrio psicológico da bebé.
f. todavia os “adoptantes” recusaram entregar a criança e criaram toda a espécie de dificuldades ao pai biológico que nem sequer pode ver a criatura
g. o caso arrastou-se durante 3 ou 4 penosos anos e terminaram
h. com a condenação do sargento Gomes a um largo par de anos por sequestro.
Ponhamos que esta segunda versão é a mais conforme com a verdade. Estaríamos, assim, perante uma campanha histérica e imbecil, outra mais, contra a Justiça. Pior, estaríamos perante a manipulação descarada da opinião pública, coisa que poderia ser mesmo criminalizada se se verificasse ser comanditada pelo advogado do réu, por personalidades ligadas à protecção de menores e similares. Porque esses sabem bem o que passa.
Sempre esperando que o caso seja assim, a que vem agora um encontro entre as partes promovido pelo Ministério Público para transferência “gradual” da posse da criança? A que vem, se é que é verdade, a promessa de excarcerar o individuo justamente preso por sequestro? Que é que se prepara? Voltaremos a ver juízes contra procuradoria disputando por interpostos pais biológico e “pseudo-adoptante” a carninha frágil de uma criança de cinco anos? Pretender-se-á transformar uma sentença clara numa mascarada que, traduzindo em miúdos, devolva a propriedade da criaturinha aos pseudo-adoptantes fortalecidos por um apoio mediático e histérico que acabará por premiar o sequestro e desfavorecer o pai biológico, que tem contra ele a terra, o facto de ser pobre, de ser mulherengo e não sei que mais?
Sempre dentro da mesma ideia, que os factos relatados no acordão do tribunal são verdadeiros, parece-me meridiano de que foi a teimosia dos pseudo adoptantes que levou a este estúpido e trágico desfecho que não acaba na prisão do sargento mas continua na saga tonta de uma clandestinidade de mãe adoptante e criança que qualquer cabo de esquadra resolveria num par de horas, na reviravolta da mãe biológica que afinal também quer entrar na fotografia e na exposição canalha que se faz do pai biológico que, queira ou não, está definitivamente convertido num ogro se calhar pedófilo.
As leitoras terão verificado que ainda não me pronunciei sobre o aborto. São várias as minhas razões. E uma delas está já nesta história. Uma mulher engravidou. Engravidou sem possibilidades de criar a nova vida que trazia na barriga. Porque era muito religiosa manteve a gravidez. Talvez houvesse alguma alma caridosa que tomasse conta da criança. Depois foi o que se viu. Para a entregar mentiu sobre a paternidade. Os adoptantes foram-se distraindo e só deram o passo decisivo quando apareceu um pai. Ou quando acharam que a criança era perfeitinha e adoptável...
As razões seguintes basta ver o que a campanha vai trazendo ao de cima. Estas famosas questões fracturantes herdadas da falecida juventude socialista distinguiram-se pela estridência e pelo facto comezinho de com o barulho das luzes se evitarem temas bem mais graves e urgentes. Depois ainda não houve uma alminha gentil que me explicasse porque é que um tema deste género não foi debatido no seu local: o parlamento. Transferir a discussão para a população através do expediente do referendo é não só amesquinhar os pais da pátria mas sobretudo permitir que o populismo mais canalha, a argumentação mais miserável apareçam sob a luz forte da verdade sem sequer a protecção de um diáfano manto de inteligência. A única virtude, triste consolação, é mostrar, urbi et orbe, a nossa verdadeira face.
Como de certeza vou apanhar nas orelhas pelo meu tom tristonho convém dizer em minha defesa que ando com um pertinaz resfriado, alguns momentos de febre, a boca a saber a papel de música, dores no corpo, e a restante parafrenália própria da época. A culpa deste longo estádio semi-febril deve-se ao facto de ter interrompido a convalescença do primeiro resfriado para com mais uma centena de amigos celebrar os primeiros cinquenta anos da Regina Valente. Valeu a pena, apesar de tudo. Rever amigos de que não tinha notícias há dez ou quinze anos (e vivemos todos na mesma pequena cidade). Olhem companheiras e companheiros, podíamos todos estar bem pior. Atrevo-me mesmo a dizer que estamos muito melhor do que esperava. Então o mulherio está que ferve!
A latere: depois do último boletim sobre o meu peso, tenho a grata notícia de relatar que com o resfriado e respectiva dieta perdi mais dois quilos. Ou seja: faltam quatro quilos para me converter num modelo.
A latere de novo: O Público apresenta a história do blues. Oito dvd imperdíveis que há mais de um ano a farmácia de serviço noticiava em primeira mão. Demorou a chegar a um preço popular mas a partir de agora não há desculpas.

Tudo a bombordo 5

d'oliveira, 30.01.07
Mudar a vida ou mudar o mundo? Mudar a vida e o Mundo!

Mortos vamos e expulsos e incriados
mas é em nós que os planetas e os mais corpos do
espaço
molham as mãos
e esmagam a cabeça

Mário Cesariny Planisfério e outros poemas, 1961

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite

Herberto Hélder A colher na boca, 1961

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento digo-te adeus
e como um adolescente
ropeço de ternura
por ti

Alexandre O’Neil No reino da Dinamarca, 1958


Ainda nem comecei este texto e já gastei uma página! Tentei desesperadamente reduzir as citações mas, como já disse, e agora repito, eu sou cão que conhece dono e pago com pontualidade as minhas dívidas. E se me abrigo à sombra luminosa de três grandes poetas é porque lhes devo muito, muito mais do que sou aqui capaz de exprimir. Tempos houve em que era capaz de recitar de cor centos de versos deles, coisa a que hoje já não me atreveria. Não que lhes tenha perdido o gosto, a música, a respiração mas apenas porque, provavelmente eles já são tão parte de mim que me permitem ir tentando ler outros e apropriar-me de outros. Mas basta que me passe ao alcance um dos livros que citei e mais um quarteirão de outros e eis que regressa intacta a esperança, a alegria e a permanente novidade do poema.
Acabei o meu texto anterior (publicado aqui em Dezembro do ano passado) dizendo que aos meus 19, 20 anos de idade me cruzara com o surrealismo. Deveria ter escrito, apanhei com o surrealismo em cima porque foi isso mesmo o que me sucedeu. Apanhei com ele e foi como se de repente, descobrisse um outro mundo e uma outra sensibilidade, e uma outra maneira de ver, fazer, viver, agir política.
Os meus leitores que me desculpem. Eu, canhoto de pata e de coração, não passava de um perdido rapazote, de origem burguesa, com uns fumos de intelectual. Em casa, trabalhadores manuais não havia. Na família também não. Nos meios que frequentava idem, aspas, aspas. Claro que na meninice os meus colegas de escola eram filhos de pescadores, que eu frequentei, deus seja louvado, a escola oficial. Depois, aqui e ali, encontrei pessoas que de perto ou de longe pertenciam ao mítico mundo do trabalho mas não exerceram sobre mim influência que se visse ou que eu recorde. Os poucos comunistas que entretanto terei conhecido (e nesse tempo, não havia ninguém que se confessasse comunista a um rapazola deslumbrado e papalvo) eram intelectuais. Como eu começava a ser, queria ser e acabaria por ser. Portanto as imagens do mundo do proletariado que me chegavam eram todas via romance ou ensaio.
E é bem sabido que os burgueses passados ao campo da revolução dão na maioria das vezes em pernósticos. São duros, implacáveis e exigentes. A moral bolchevique beberam-na com tal ânsia que ficam permanentemente bêbados de verdade de linha justa, de posições correctas, tudo muito enfeitado de citações, penosamente tiradas de livros que, as mais das vezes, tiveram a sua época e foram brandidos mais como arma de arremesso ocasional do que como tratados de ciência política e social. Isso que agora parece tão claro, era nos tempos obscuros, difícil de perceber. E como não tínhamos o viático da origem proletária obrigavamo-nos a brandir os pequenos catecismos como verdades eternas.
É sobre este espesso pano de fundo que a fogachada surrealista fez efeito. Ponhamos que a leitura dos primeiros livros surrealistas e julgo que os três citados terão sido de facto os primeiros, me “tirou do sério”. Que, a derisão por um lado, e a fundura deslumbrante me permitiram adivinhar que era possível ser de esquerda sem ser infeliz, sem ter remorsos de calçar sapatos, sem sequer me obrigar a jejuar por nunca ter tido fome.
Por outro lado, a primeira, e pouco significativa, prisão sofrida permitiu-me começar a ser capaz de saber que poderia levar a cabo acções revolucionárias sem receio de mais tarde, uma vez preso, delatar companheiros, camaradas e amigos. E que o campo da acção revolucionária era de tal modo amplo que não era obrigatório ser do pc para estar nele. E mais: que se podia estar nele, de igual para igual com os militantes comunistas. Com uma diferença: os “compagnons de route” nunca teriam, nunca tiveram, por trás deles e ao lado deles a fabulosa máquina de auxilio aos presos políticos que o PC proporcionava aos seus militantes. Mas isso, mesmo nessa altura, não parecia ser demasiadamente grave ou importante. E, mesmo que eventualmente esteja a ser injusto, permitia a muito boa gente também não ser arrastada pelas sucessivas vagas de prisões que de 62 a 65 varreram organizações inteiras do pc que caíram por traição interna, falta de coragem na polícia, imprudência manifesta, provocação policial etc... Porque a história exemplar de heroísmo dos comunistas não pode ocultar a acção de responsáveis políticos do partido (e no campo universitário não foram assim tão poucos...) que entregaram à polícia dezenas e dezenas de militantes. Nem pode ocultar que quando se tratava de combater dissidentes, o partido e os seus órgãos de informação não se coibiram de denunciar os seus ex-militantes. Como exemplo bastará citar a denúncia contra João Pulido Valente, Rui de Espiney e Francisco Martins Rodrigues, fundadores do “comité marxista leninista português” e da sua organização de massas, a FAP (Frente de Acção Popular). Retrospectivamente nada justifica a campanha levada a cabo pelo PC, que de resto se virou contra o partido. Convém lembrar que o clima intelectual dos primeiros anos sessenta estava moldado pela revolução cubana que despertara um enorme entusiasmo pelas primeiras independências africanas e, porque não, pelos anos Kennedy. A União Soviética aparecia nesta fotografia sob duas imagens: a do senhor Nikita Krutchov que lançara a guerra ao culto da personalidade, que pusera um satélite no ar, que repetira a proeza enviando o primeiro homem para o espaço e a dos seus imediatos sucessores que voltaram a fechar o país. Por outro lado a China emergia como o pais do grande salto para a frente, dos revolucionários de pés nus, do poeta Mao Tse Tung, enfim do pais que apoiara a Coreia do Norte e o Vietnam onde mais uma vez começava outra guerra. Tudo isto, esta multiplicidade de referentes político-sociais, esta (para nós) generosa e anárquica divisão do bloco progressista em diferentes centros de poder, permitia ser de esquerda sem ser “revisionista”, permitia voltar a ouvir falar dos velhos trotskistas, dos países rebeldes a Moscovo, sobretudo (e só, aliás) a Jugoslávia. A nova ideologia, um pouco fourre-tout dava direito a uma dose de Cuba, outra de guevarismo, uma pitada de anti-racismo com molho universitário estado-unidense, algum terceiro mundismo. E nesses novos “horizontes vermelhos” a cartilha soviética e stalinista perdia terreno para fórmulas mais ousadas e mais liberais. A espessa armadura ideológica dos anos 30 e 40 desfazia-se com as novas ideias. O capitalismo popular em que o Ocidente europeu entrou em cheio em finais de cinquenta tornava mais sinistra a fotografia a preto e branco do leste. Parafraseando um título célebre de Remarque, “a oeste havia algo de novo”.
Éramos jovens, sabíamo-lo, não tínhamos patrões ideológicos e isso era também alimentado pela nova literatura (nova de vinte trinta anos!) pela nova música (e aqui a irrupção do rock e derivados foi fatal) pela nova arte (Picasso é agora admirado por milhões) e pelo cinema. A televisão traz o mundo para dentro de casa e será a melhor arma dos vietnamitas. O turismo de massa arrasa Espanha e Portugal varrendo com leis imemoriais de decência nas praias, trazendo para o convívio dos iberos a liberdade, o sexo e as nórdicas, mesmo que isso fosse as mais das vezes um exagero. A democracia passou a ser um referente de vida. Mesmo a direita portuguesa estava acossada, embiocada no seu canto, aparvalhada com os biquínis nas praias e uso de calças pelas mulheres. A guerra colonial obriga as mulheres a entrar no mercado de trabalho. A emigração torna ainda maior essa necessidade de recorrer à mão de obra feminina. E uma mulher que trabalha é algo que deixa de ser dócil, de fazer fretes de andar às ordens do senhor prior da freguesia. Em meados de sessenta o mundo bisonho e português já não era. Ou melhor era um cadáver a quem ninguém passava o atestado de óbito. E isto que era muito, talvez não se visse com a precisão que aqui resumo mas via-se, e de que maneira, com os óculos surrealistas que alguns de nós tínhamos espetado no nariz. Podíamos mudar a merda do mundo e, de passo, a merda da vida.
Pela parte que me tocava, era um programa de acção e peras.


Nota: nunca pensei que ao responder a um desafio de alguns leitores deste blogue sob a minha viagem pelas ideias e emoções de uma vida desse tanto pano para mangas. Disso me desculpo mas o que isto deve ter de longo, chato e repetitivo, só sairia se eu me levasse muito a sério e me corrigisse, apagasse, reescrevesse e mais não sei quantas coisas. Assim optei por indo pondo estes ovos de avestruz, que devem dar uma omeleta desenxabida deixando-os tal e qual saem do dedinho teclador. Têm a humilde vantagem de serem frescos. O que por si só não é qualidade mas isso, como dizia no final do texto 4, é outro falar.

imprevisto

Sílvia, 29.01.07

nada me disseram sobre a adrenalina
a escalar-me o peito
quando te visse,
a tornar-me a garganta, deserto.

o teu cansaço nunca foi previsto
enquanto sonhávamos os mais altos sonhos;

não foi previsto o teu silêncio
na felicidade a me abraçar todas as manhãs.

calo a minha voz
nesta noite infindável.
só os meus olhos falam de ti,
mergulhados num lago.


silvia chueire

Farmácia de serviço nº 29

d'oliveira, 27.01.07
Interactiva até dizer chega!
Antes mesmo de avançar com as receitas dediquemo-nos por um breve instante no uso de expressões como a do título. Eu venho de uma família de contadores de histórias, de faladores contumazes e de, milagre!, de gente que se escrevia longas cartas. Então a minha Avó, a “Velha Senhora” era um ver se te avias. Dia com menos de três cartinhas enviadas e outras tantas recebidas não era dia que prestasse. A coisa era de tal modo que, neto mais velho (entre dezasseis!) tive de lhe declarar que o tempo não me sobrava senão para um bilhete e de longe em longe. Nem isso a desanimou: volta que não volta aí estava uma carta da antepassada, uma folha grande preenchida em todos os sentidos porque a excelente senhora se era pródiga na escrita era de uma assustadora sovinice quanto ao papel. Lê-la era um vero percurso de obstáculos. Aparte esse dificultoso zigzaguear literário a avó tinha o hábito de usar expressões que só eram perceptíveis ao estrito círculo familiar, coisa que a minha mãe também herdou. Não só punha alcunhas espantosas e brilhantemente cruéis a quase todos os conhecidos como deformava até à exaustão o português corrente para dar significados delirantes a certas palavras. Sobretudo isso, ela conseguia tornar-se perceptível a qualquer criatura com quem privasse. Portanto está o título desculpado. Até dizer basta, até vir o Guedes, querem dizer exactamente a mesma coisa e não perguntem porquê.
Perguntarão sim, e isso já se aceita, o porquê do interactivo. Ora nada mais simples: três leitores, três, a bem dizer duas leitoras gentis e o camafeu do Manel Sousa Pereira, mandaram-me dicas para uma “farmácia de serviço”. Ora aqui está o que se chama uma boa coisa. Eu a dar às meninges que nem um doido, para me lembrar de qualquer coisinha e elas e ele a mandarem dicas que chegam e sobram para as nossas encomendas. ‘brigados, muit’ obrigadinhos” leitoras Zita e Inês e o referido Pereira. Então aí vai disto:
:Pereiremos para começar:
“Atrevo-me a mandar-te esta sugestão para pores na tua "Farmácia de Serviço"; Trata-se de uma edição da "Livros de Papel" -

"Foster e Val - Os Trabalhos e os dias do criador de Prince Valiant" e não só, claro, também do melhor desenho (BD) do Tarzan do E. R. Burroughs, que ao que parece o nosso Hal Foster desenhava só para ganhar algum e dar de comer à família ao tempo do colapso bolsista dos finais de 20.

O livro com formato de álbum é uma belíssima biografia de Harold Foster da autoria de Manuel Caldas que pretende, além de tudo o mais, assinalar os 70 anos do inicio da publicação desse extraordinário "Prince Valiant in the Days of King Arthur" que para nós, catraios dos finais de 40 princípios de 50, era o "Príncipe Valente na Corte do Rei Artur" que saia aos Domingos no "Primeiro de Janeiro" e só já nos finais de 60, se não estou em erro, apareceu em Álbum.
Esta edição tem ilustrações muito boas e um texto muito bem escrito !!! A não perder por 22,50 euros (na FNAC). Creio, mesmo que o deveríamos comprar para oferecer ao nosso "sobrinho neto" Pedro Simas Santos antes que o Avô o encha de Manaras e coisas do género.
Um abraço Manel S.P. “
Pronto, MSP, pronto, já está. Boa ideia, mano, óptima, mesmo. Então a malta pode lá esquecer-se do Príncipe Valente? E não havemos de contribuir para a educação do “nosso sobrinho neto” Pedro?
Apesar, de pensar, que alguns Manaras também lhe não farão mal. E já agora uma dose de Crepax e ... por aí fora... se é que estás a ver o fio à meada.
A leitora Zita escreve um testamento e só no fim é que me increpa: “E não se esqueça de falar na biografia do O’Neil.” Claro que não Zitinha, então logo eu, que sou do mais O’ Neil que há. Fique sabendo que tenho tudo, ou quase. De facto falta-me uma primeira edição da “ampola miraculosa” mas dou de barata essa falha porque tenha uma edição facsimilada. Com a vantagem de custar cem vezes menos. Eu sou um leitor e não um bibliófilo. E não era o filho da minha mãe que ia estender sessenta ou setenta milhardas das antigas para ter uma primeira edição. Credo! Abrenúncio!
A leitora Inês (eu diria a desassossegada leitora mas, se calhar, ela levava a mal) também enche uma boa folha, discutindo pontos de vista com um belo humor e muita, demasiada, simpatia. Non sum dignus! Inês. Nom sum dignus!. E termina –isto deve ser uma nova moda feminina – com esta pequena violência: “E pode falar dessa sua prima Maria Manuel se é que é a mesma que se anuncia no Mil folhas do Público com um livro escrito a meias com Ana BenaventeDamas, Ases e Valetes”! E continua a sofisticada Inês posta no seu desassossego: “mesmo que a tal Benavente seja a mesma do eduquês!” Ora toma que já almoçaste! Eu não tenho a certeza certíssima da Ana ser uma adepta do “eduquês”. A Ana Benavente que conheci e conheço, era uma porreirinha que se podia convidar para um bom almoço de cozido à portuguesa, se é que me faço entender. Claro que isso (que é forte virtude) pode viver a meias com o tal “eduquês”. Às vezes esta malta estrangeirada (outra virtude!) tem manias deste estilo. Querem salvar a pátria com doses de coisas muito novas cá e demasiado velhas lá. Dito isto, eu estava a guardar a prima Maria Manuel lá mais para o Verão. Digamos para as “correntes de escrita” da Póvoa. Claro que já li uma versão das “Damas, ases e valetes” uma variação memorialista e simpática dos anos de chumbo. E que dizer disso, sem cair na louvaminha familiar ou na hiper-critica? Ora que não sendo o “retrato da ricardina”, também não é o que resumimos, os jogadores de cartas, “só me saem duques!”. Traduzindo para os não aficionados da cartolina e para a minha amiga Sílvia: não é uma obra imortal mas também não envergonha ninguém. Ou seja está dentro do “corriente, moliente” do que se lê bem e se promete voltar a nova incursão literária das autoras se eles persistirem.

retrato da ricardina”: no jogo da lerpa o conjunto das 3 cartas máximas de trunfo: ás, manilha e rei. Ou seja: todos os restantes jogadores perdem e depositam na mesa uma soma igual ao somatório das apostas anteriores.
Só me saem duques”: expressão de profundo desânimo em jogos de azar e que significa que se obtém sistematicamente as cartas menos valiosas.

Diário Político 40

Incursões, 25.01.07
Est modus in rebus!

Parece que o senhor Primeiro Ministro que nos foi dado ter neste invernoso Janeiro de 2007 entendeu brindar o Parlamento e o País com um vibrante exemplo do seu estilo oratório. S.ª Ex.ª terá uma vez mais mostrado que não tem medo das palavras e muito menos dos que dela (Sexa) se atrevem a discordar. Já uma vez dera mostras do seu robusto talento e refinada educação ao dirigir-se desabridamente ao Chefe da Oposição. Agora para provar que, para si, não há diferença entre filhos e afilhados entendeu qualificar uma proposta do Engenheiro João Cravinho, deputado do PS. “Asneira” assim qualificou S.ª Ex.ª uma proposta do deputado. “Asneira” repetiu uma vez mais não fosse haver algum surdo no distinto areópago ou perder-se esta pérola de delicada oratória na geral desatenção parlamentar.
Se S. Bento fosse um campo de futebol e o Senhor Primeiro Ministro um comentador desportivo de algum jornal de províncias, ainda se perceberia a rude elegância da apóstrofe. O futebol, quando não chafurda no escândalo continuado da compra de árbitros e na especulação de jogadores, tem direito a tiradas deste género, qualificado de “viril” por quem desculpa alguma jogada mais violenta, uma carga num adversário perigoso, um empurrão e meiguices semelhantes.
Todavia o Sr. Primeiro Ministro não estava num recinto desportivo, numa feira semanal, numa discussão à mesa de um “sueca” puxada entre quatro cavalheiros amigos que vão jogando as cartas segundo um rito antiquíssimo que pede berros ao parceiro, desafios aos adversários, uma piscadela de olhos, vá lá uma canelada. Depois, acabado o jogo, vem uma garrafa de bom tinto (Mouchão nunca, a pedido de uma senhora brasileira e médica que nos frequenta o blog e não permite consumo de álcoois de qualidade na sua ausência!) umas fatias de presunto recém cortado, alguma rodela de salpicão e pão que acompanhe. E a zanga da jogatina logo se desfaz porque, como bem ensinava o imortal Terence Reese (a propósito do bridge mas a regra pode alargar-se à sueca), o melhor de uma partida é no fim podermos insultar o parceiro. Faz parte do jogo.
Mas, como ia dizendo, Sexa não estava no futebol, nos touros ou numa sala fumarenta a bater a cartolina. Estava no Parlamento. A responder à Oposição. Como Primeiro Ministro de dez milhões de criaturas. E dizer que uma proposta de um senhor deputado do seu próprio partido, sobre questões que afligem a sociedade portuguesa, que estão na boca de todos, que concitam as criticas unânimes da opinião pública, é uma asneira pode ser deselegante. E mais deselegante se tal proposta já tiver sido retirada pelo proponente. Ou seja: dizer que a proposta “X” é uma asneira, sabendo perfeitamente que tal proposta já não existe, significa apenas uma tentativa de desqualificação do pacote de propostas entretanto mantidas pelo mesmo deputado.
E, já agora, quem é esse cavalheiro, esse engenheiro João Cravinho, alvo deste façanhudo substantivo?
Pois nem mais nem menos do que o mesmíssimo homem que o governo presidido pelo Sr. Primeiro Ministro entendeu ser o homem ideal para ocupar um alto e honroso lugar numa importante instituição europeia. Mas há mais: este deputado, autor da defenestrada asneira, foi Ministro em vários governos nos últimos anos, é apontado unanimemente como um distinto especialista, um homem de uma seriedade a toda a prova, um político que nunca precisou da política para criar um currículo invejável desde muito antes do 25 de Abril. E mais ainda: um homem de coragem que, com mais uma ínfima minoria da população portuguesa, se bateu pela democracia e pela liberdade quando isso significava arrostar perigos que o Sr. Primeiro Ministro nunca afrontou e de que não deve fazer a mínima ideia.
Os actos ficam com quem os pratica. E com quem silenciosamente os vê perpetrar e não se sente capaz de sequer se indignar, de dizer “alto e pára o baile”. É por isso que este blogger eleva aqui a sua fraca voz, perante um pequeno auditório, sem grandes esperanças que a sua atitude comova demasiada gente.
Convém para finalizar, fazer aqui o chamado registo de interesses: conheço o João Cravinho há mais de trinta anos. Sou amigo dele e honro-me da sua amizade. Não conheço nem me interessa conhecer o Sr. José Sócrates. A meu ver não honra o nome helénico que tem mas isso é outra conversa.

Estava este texto pronto quando li a notícia da morte do Professor Doutor Oliveira Marques. Nunca o conheci excepto por leituras. Tenho, todavia, uma dívida pendente com ele. Entre outros livros, a “História de Portugal” esse manual em dois volumes gordos saída ainda antes do 25 A. Curiosamente, tinha a ideia que estes dois volumes substituíam um outro gordíssimo também com o mesmo título e publicado meses antes mas já não me lembro. A “História...” de Oliveira Marques foi um acto de coragem e de cidadania, num tempo fosco em que, como acima disse, “apareciam raros navegantes no mar vasto*”. A comoção entre os meus amigos com o aparecimento deste livro foi enorme. Finalmente, uma luz ao fundo túnel. Finalmente uma História com H grande. E que vinha até ao consulado de Marcello Caetano! Um manual que nos permitia tentar perceber qualquer coisa no meio da louvaminha historiográfica geral. Obrigado Professor Doutor Oliveira Marques. Foi bom tê-lo lido nesses anos de chumbo e cinza.

* “aparent rari Nantes in gurgite vastoVirgílio, Eneida, I, 118.

Um país a duas velocidades

José Carlos Pereira, 23.01.07
Na passada sexta-feira tive oportunidade de visitar profissionalmente o Biocant Park, em Cantanhede, e fiquei agradavelmente surpreendido com a qualidade da investigação que ali é produzida, suportada em equipamentos de ponta a nível mundial e em jovens quadros universitários. Um projecto que aposta na ligação às universidades de Aveiro e de Coimbra e na atracção de empresas que desenvolvem projectos de investigação na área das neurociências. Ali está, por exemplo, a Crioestaminal, empresa que faz a preservação de células estaminais a partir do cordão umbilical e que tem “clientes” de vários pontos da Europa. O Biocant Park está já a estudar a ampliação do seu espaço e Cantanhede pode ter encontrado na biotecnologia a “chave” do seu futuro.

Dois dias depois, o JN publicou esta reportagem sobre a emigração de jovens marcoenses para as obras de constrição em Espanha. Jovens sem qualificação ou sem emprego à medida das suas habilitações e das suas expectativas e que se vêem obrigados a emigrar, a partir à aventura, em condições pouco seguras. Para alguém como eu, que se preocupa e envolve nos problemas da sua terra, Marco de Canaveses, esta é uma realidade há muito conhecida e que medrou num ambiente de elevado abandono e insucesso escolar, com falta de emprego qualificado e de indústrias e serviços atractivos, com falta de oportunidades para quem chega à vida activa. Até quando? Como dar a volta a esta realidade? O que pensam disto os responsáveis pela governação do território?

Dois exemplos tão distantes que nem parecem estar separados apenas por umas dezenas de quilómetros, no mesmo país, no mesmo século XXI.

Estes dias que passam 45

d'oliveira, 22.01.07
Tal como no mediterrâneo “as coisas vão cair do alto com ferocidade e darão depois a luz e alimento” (as azeitonas). Por este atalho de vinha em Fiesole ia a andar Leonardo ou acaso aqui (Milão Romagna) ou nas ardenas viu os mortos transportar os vivos”
Fiama Hasse Pais Brandão: “in memoriam” O texto de João Zorro


Está escrito desde há muito que por muito incerto que o mundo seja, uma certeza subsiste: todos morreremos. Mais cedo ou mais tarde, mas a Parca não se esquece nem se engana.
E à medida que vamos avançando em idade mais e mais a presença da morte se torna frequente. É natural. Os que connosco cresceram desaparecem mais naturalmente do que os mais novos. E desaparecem em maior número. O nosso mundo vai-se povoando de sombras e memórias, de ausências e óbitos.
Apesar de sabermos isto perfeitamente, raras vezes, ou nunca, nos habituamos. Pior cada vez mais a morte nos aparece como uma blasfémia, algo de não natural, contrabandeada em salas horrendas e impessoais onde, envergonhadas, as famílias depositam os seus mortos.
Mas basta de pregar no deserto e recordemos uma vez mais a Fiama e o Denny e velho abbé.
A Fiama apareceu-me em livro nos idos de 60 0u 61: um livrinho tosco, “O aquário” edição de autor, com data de 1959. Uma prosa poética que, na altura, não me terá cativado demasiadamente. Mas que, mesmo assim, me fez comprar fielmente os 14 livros que terá publicado, incluindo neste número a Obra Breve e dois folhetos da Inova. Se me falta algum foi por que se me escapou. Porque a Fiama, que nunca conheci pessoalmente (e ao que sei tantas vezes nos cruzámos nesses primeiros anos sessenta) era uma força discreta se é que isto se pode dizer: quem a lia ficava preso, “enganchado” mas ao reler agora alguns versos dou-me conta, mais uma vez, da “discrição” da “não publicidade” do calado ofício desta enorme mulher.
A bem dizer, ela já morrera: notícias de amigos comuns davam-na como extremamente doente, incomunicável, um Parkinson tremendo e maleitas anexas. Há anos que não escrevia, que não podia escrever. E isso, num poeta, é pior do que a morte.
Quem me lê, dirá agora, mas porque é que nunca a referiste entre tantos livros, na “farmácia de serviço”? Por isso mesmo, porque até eu, seu leitor recorrente me esquecia ou não sabia da gravidade da doença. E depois, tinha a vaga ideia de que a “Obra Breve” ( 1991, Teorema ed. somatório excelente) ainda andava por aí à venda. Se anda, não hesitem, leitores e amigos: é um grande livro que reúne quase toda a produção poética de Fiama Hasse Pais Brandão. Quase seiscentas páginas da melhor literatura da segunda metade do século passado, do seu século!

Denny Doherty, “Mamas and Papas”, ah quanta alegria me deram as suas canções. A nossa geração deve muito a este quarteto. É bom sermos devedores de tanta gente e sentirmos isso. É provável que isso nos incline a alguma modéstia e igual dose de generosidade. Como a Fiama, ele era outro sessentão. Como ela, podia olhar para trás sem medo do julgamento. Como ela, encheu a nossa vida de música e de alegria. Depois de “Mama” Cass chegou a vez de Denny... Ponham um dos seus discos e ouçam-no com atenção e digam-me se, durante um breve momento, não foram tocados pela “Graça”.
God bless you Denny!

Um santo que foi um herói. O abbé Pierre morreu hoje. O corpo já não aguentava mais. E aguentou muito, há que dizê-lo. Esse homem franzino, doente pulmonar desde novo, a pontos de ter de sair do convento porque o regime de clausura era demasiado severo. Foi aliás graças a essa fragilidade que escapou milagrosamente á prisão quando os alemães o foram buscar à paroquia onde era padre. Duas vezes preso duas vezes evadido, o compromisso resistente deste homem que salvou inúmeros judeus passando-os pela fronteira suíça, continuou na defesa dos sem abrigo e na constituição da associação Emaüs. E não deixa de ser simbólico que a morte só o tenha levado depois de em França se anunciar uma legislação sobre o direito ao alojamento.
Como os meus leitores sabem, sou um absoluto, total agnóstico*. Com uns laivos de anarquista, já agora. E uma desconfiança visceral das igrejas todas. Mas nem isso me impede de pensar que este homem está agora à mão direita do Deus em que acreditou, um deus de pobres de perseguidos, de damnés de la terre, esses mesmos a que a canção se refere.
Também já aqui disse que gosto de pensar que os mortos todos os nossos mortos, são um elo entre nós e os que os precederam, manias adquiridas em África e no estudo dos mitos africanos. Espero que estes três que agora nos deixam dêem de nós uma boa imagem aos que esperam notícias deste pobre planeta.
Soll es sein! Muss es sein!

* para mim um agnóstico é alguém que não crê na existência de um Deus mas que nem se dá ao trabalho de fazer apostolado desta sua não crença como ocorre com certos ateus.

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