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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

missanga a pataco 21

d'oliveira, 29.06.07

Outra vez!

Meu querido e velhíssimo amigo Manuel

Convenhamos que isto começa a passar dos limites. Voltaste a fazer anos! Sessenta, desta vez. Livra, pá, estás velho! Se te apressares, coisa que, como se verá, não me parece que faças, ainda me apanhas. Ao fim e ao cabo são só cinco anos. E cinco anos quando se perfazem (que é isso o que te aconteceu, velho, perfizeste, os sessentinhas. Melhor dito, hoje é o primeiro dia dos sessenta e um. Número primo, diga-se, se é que ainda te lembras...) sessenta, são um tirinho, quase nada.
Eu dizia que tu, não tens estaleca para me apanhar. É que não esqueço, old chap, os teus truques para andar tão pouco quanto possível quando eu te desafiava para irmos da rua 59 até Washington Square. Num percursozinho de escassos três quilómetros ofereceste-me três cafés e fizemos a última metade de metro... Se tu desses à perninha como dás ao remo quando fazes canoagem estavas na selecção nacional. Como és preguiçoso e arranjaste um joelho vão ou qualquer coisa do mesmo calibre, uma balela para andar pouco e devagar, tiveste que demorar este tempo todo para chegar aos sessenta. Idade redonda, camarada, o respeitável público começa a olhar para nós como quem olha para a venerável múmia do faraó Ramsés II. E nós? Como é que olhamos para eles, os novos? Com um sorriso trocista? Com inveja? Ou babados como olhas para o Pedro, seis redondos meses e um riso arrasador...?
Seja como for, estás a dever-me um belo almoço, o tal que seria amanhã e já não é porque a “Lindinha” resolveu desconfiar que vai chover! Eu, caríssimo, olho para o céu e nem uma nuvem, mesmo pequena, vejo. Para que a vergonha não recaia definitiva e solene sobre a família Simas Santos fui, de propósito lavar o carro. Até o aspirei, vê bem que sacrifício. E isto porque, sempre que lavo o bólide, chove que Deus a dá. Além do almocinho que não vem, eis que esportulo mais seis euros sem contar as moedas para a maquineta aspiradora... tudo para ver se chove. Vem chuva miraculosa lavar as ruas, as casas e a antiquíssima sovinice do Manel. E traz contigo um abraço dos amigos, perto ou longe, que hoje erguem um copo de três de um tinto decente à saúde do aniversariante. E que venham muitos. E bons. E bem!
Um abraço do teu
M.

na gravura: obviamente Daumier: les gens de Justice

Justiça(s)

O meu olhar, 29.06.07
Duas notícias no JN de hoje deixaram-me perplexa quanto à aplicação da justiça.

A primeira notícia diz que “líder distrital de Coimbra do CDS-PP foi, ontem, condenada a dois anos e seis meses de prisão, por se ter apropriado de dinheiros públicos, mas o colectivo de juízes do tribunal da Lousã decidiu suspender-lhe a pena por um período de três anos. Ficou provado que Sónia Sousa Mendes se apropriou de uma verba superior a 14 mil euros, referente ao transporte escolar pago por alunos da Escola Secundária da Lousã, onde era responsável pela área da acção social.”

A minha perplexidade resulta da senhora ter ficado com a pena suspensa e com os mais de 14 mil euros. Porque, nos termos da notícia, a sentença não a obriga a devolver o dinheiro.

A segunda perplexidade advém da notícia no mesmo JN segundo a qual “O Ministério Público (MP) constituiu esta semana mais três arguidos, no âmbito do "processo Portucale", mas contra a vontade da Polícia Judiciária, segundo apurou o JN. Trata-se de funcionários administrativos do CDS-PP suspeitos de ajudar a preencher, em 2005, perto de quatro mil recibos com nomes fictícios, para justificar o depósito de um milhão de euros na conta do partido, em 2004. Jacinto Leite Capelo Rego era um dos supostos doadores”.

Foram apenas três funcionários administrativos os contemplados. A PJ propunha mais outros nomes que o Ministério Público não considerou. Então os três funcionários, que cumpriam ordens de alguém, é que são os suspeitos deste caso? Enfim, pobre do mexilhão!

Nestes dois casos poderão existir razões que a justiça conhece para ter que ser assim, mas são razões que me escapam e que bem gostaria de compreender.

Au Bonheur des Dames 74

d'oliveira, 28.06.07

Às vezes uma pessoa tropeça na melancolia. Basta uma música que se ouve na televisão, uma palavra, um livro que cai da estante e, milagre, um papel que sai lá de dentro, eu já ouvi esta história nalguma parte, mas de facto, há um papel que cai. Mas comecemos pelo princípio como dizia um imortal professor catedrático de Direito da não menos imortal universidade de Coimbra. “La saga des chefs du val au lac” colecção petite bibliothéque payot, impresso a 3 de Setembro de o 1980, texto traduzido do islandês com tradução, introdução e notas de Régis Boyer. Na página 3, ao alto e junto do canto direito, uma etiqueta branca pequena com o nº 7390 e por baixo 8/1984 ou seja o número de entrada do livro na minha biblioteca o mês e o ano.
Antes que alguém se espante, devo dizer que tenho, entre mais um cento doutras, a mania das sagas islandesas. Foi vício que me ficou da leitura de Borges, melhor do livrinho “Antiguas literaturas germânicas”. E porventura dalguma leitura de Júlio Verne, “A viajem ao centro da terra” onde é citado Snorri Sturlusen.
Mas tudo isto não tem nada a ver com o papel. O papelucho esvoaçante, o passageiro clandestino de uma saga, melhor dizendo do livro onde estava registada. Esse papel impertinente que cai e que, oh quem dera!, pode conter um segredo, uma carta, alguma inutilidade que, porém o deixa de ser, nimbada que fica pela redescoberta anos depois.
E aqui há de facto uma pequeníssima história, uma dessas anedotas que nos tempos que correm perdem todo o sentido mas que acabam por ser uma vaga fotografia do passado.
De facto a carta –era uma carta – uma folha pequenina em papel quadriculado, arrancado de algum caderno mas escrita a tinta permanente numa letra antiga, cerrada, cuidadosamente contida entre as duas linhas, era da Maria. E a Maria quem é? Perguntará alguma leitora curiosa. Pois a Maria era a costureira que durante anos e anos acudiu lá a casa, quando vivíamos entre a Figueira e Buarcos. Depois de partirmos para África a Maria passou a ir a casa da tia Néné. Convém dizer que para mim e para todos os de lá de casa, a Maria era da família ou tratada como tal. Normalmente vinha muito cedo depois do almoço, lanchava connosco e saía já pela noitinha. Morava a duzentos, trezentos metros, num pequeno andar em cima da mercearia do senhor Falcão, onde a minha mãe tantas vezes nos mandava fazer um recado. A Maria conhecia a vida da casa, o meu pai era naturalmente o médico dela, da mãe, da irmã, médico gratuito já se vê que elas eram pobres. Obviamente a Maria não podia costurar de graça, porque, como já disse, vivia do seu trabalho e ainda ajudava as da casa dela. Em contrapartida era o que se chama uma amiga para todas as ocasiões. E esta carta é exemplo disso.
Anos depois de termos ido para África, voltei para continuar os estudos na Metrópole. E voltei à Figueira, claro. E à Maria, evidentemente, para quem eu continuava a ser um dos meninos. Em idos de 62, já na faculdade, as coisas começaram a aquecer e houve necessidade de pôr a salvo uns livros e alguma papelada. Para o efeito não sobravam os lugares. Não só alguns dos familiares não eram de confiança como sobretudo, as casas de outros eram sítios óbvios para alguma diligencia da polícia. Não cheguei a pedir nada à Maria, foi ela quem, num “casual” encontro comigo em Coimbra, me disse que se fosse preciso passar uns dias sossegado, e sublinhou o sossegado, na casa dela havia vago o quarto da mãe, entretanto morta. Agradeci-lhe mas lembrei-me logo da livralhada a que tinha estima e me custara várias mesadas inteiras. Ó Maria, posso mandar uns livros para lá? Claro que podia. Todavia, resolvi explicar que esses livros poderiam ser hospedes perigosos. Manda os livros, Marcelinho. Disso sei eu que o meu irmão é ferroviário...
E os livros lá viajaram. Anos depois voltaram, claro. Porém, e é aí que a carta intervém, a Maria entendeu guardar uns cadernos e uns papeis que tinham viajado dentro duma caixa de sapatos. Terá entendido que, apesar de tudo, os anos ainda eram os do Estado Novo e que aquela papelada ainda podia dar problemas. Veio o 25 de Abril, a Maria de quando em quando vinha ao Porto para casa dos meus pais, já só como visita, diga-se pois estava já com uns largos anos.
Até que sentindo a Parca perto, lembrou-se, subitamente dos papeis. E como um testamento, e de certo modo era-o, escreveu essa última carta onde me avisava de um par de papeis com quase vinte anos e que me pertenciam. A carta chegou no Verão, princípios de Agosto, metia-a no livro da saga dos chefes do vale do lago e parti para Itália. Em Setembro passo lá, pensei, vou a casa da Maria, vamos comer um robalo a Buarcos, com a tia Néné e com o Tio Marcos, e trago aquilo tudo.
Em Setembro, esqueci-me. O livro estava lido, o papel ficara lá dentro, provavelmente a marcar a penúltima etapa de leitura, e zás!, estante com ele. Até agora. No intervalo, mudei de casa, o livro teve diferentes estantes até chegar a esta, onde jaz com mais uns colegas do mesmo tema, outras sagas avulsas, o volume de sagas da Pleiade, as Eddas, o Kalevala e alguma obra de Sturlusen.
Entretanto a Maria morreu, estando eu longe, nem já sei onde. A casa já não existe e os papeis provavelmente jazem amortalhados numa velha caixa de sapatos, que lhes serve de túmulo. Lembro-me que, nessa misturada, iam também alguns textos cometidos por mim nesses verdes anos. Aí está um pedaço do meu passado, tão morto como a gentil Maria, fada do corte e costura, amiga ora convertida numa sombra amável que, quero acreditar, vai rezando por nós, sobreviventes.

Matisse: paisagem de Collioure

CASSETES & CASSETES

JSC, 27.06.07
Andamos décadas e décadas a ouvir falar da cassete do PC. Aliás, a fama da cassete até serve de pretexto para os afastar dos meios de comunicação social escrita e falada. E o que é que dizem os comentadores profissionais? Que se o PCP fosse como o PCI ou o PCF seria muito mais actual. Que o PCP nunca abandonou a linha estalinista, que não se modernizou, que fala como se fosse o único a defender os trabalhadores, etc.

Se olharmos para os colunistas dos chamados jornais de referência não encontramos lá ninguém afecto ao PCP. O mesmo nos fóruns políticos promovidos pelas rádios ou televisões. Mas será porque o PCP não tem gente capaz? É óbvio que a resposta é negativa. Claro que tem, só que estão rotulados pela cassete. Mas basta que abandonem o PCP para passarem a ter acesso a esses fóruns ou para integrarem governos como ministros, secretários de estado e por aí fora.

Mas, porque é que trago para aqui esta coisa do PCP, eu que até nem sou do PCP nem de nenhum outro partido e que tenho uma cada vez maior reserva relativamente a todos?

É que o PCP é usado para abafar uma ideologia, o marxismo. Ao dizer-se mal do PCP e ao apontar-lhe o rótulo de cassete, de inadequado, incapaz de se renovar, etc., o que se está é a denegrir, a excluir, é a ideologia marxista.

Se olharmos para “comentadores”, “analistas políticos”, “colunistas” que integram os painéis dos órgãos de comunicação social é tudo gente que anda nestas coisas há anos e anos, que não muda de discurso apenas o ajusta em função dos governantes e os interesses instalados.

Tempos houve em que achava as crónicas do Vasco Pulido Valente perspicazes, profundas, oportunas, enfim, o máximo; lia Pacheco Pereira e concluía que o homem raciocina bem, escreve bem e mesmo quando não concordava não deixava de ver ali alguém acima da mediania; Bom, Vital Moreira, Marcelo, Teresa de Sousa, Miguel Sousa Tavares, Helena Garrido, enfim, tantos pensadores a apontar mazelas, a propor, a apoiar medidas

São tantos e há tanto tempo a formular hipóteses, a criticar, que ao fim de todo este tempo e com o país sempre a cair é legítimo que nos interroguemos: Qual a eficácia de tantos textos e de tantos críticos? E, porque razão são tão ineficazes?

Bem, no fundo no fundo, o que vivemos é um jogo, em que uns justificam o emprego dos outros. E o problema só existe para os inadaptados.

Mas penso que seria tudo mais claro e a população ficaria a ganhar se as opções políticas fossem sustentadas pelas opções ideológicas de quem as toma.

No entanto, os nossos analistas criaram uma pseudo neutralidade ideológica, de tal modo que hoje parece que se tem receio em falar em ideologias, como se fosse uma coisa do passado.

Mesmo ao nível governativo procura-se desenvolver toda a actividade política como se o impacto das decisões fosse neutro, em termos dos grupos ou estratos sociais que envolve.

Claro que sempre poderão dizer que a globalização também tramou as ideologias e que hoje o que prevalece é a ideologia do consumo, que se sobrepõe a tudo quanto foi escrito sobre diferentes modelos de organização da produção e distribuição da riqueza. Só que o consumo globalizado é ele próprio o produto de uma ideologia, melhor, um instrumento usado por uma ideologia para impor a sua visão da sociedade.


Estes dias que passam 67

d'oliveira, 27.06.07

Podemo-nos sempre espantar

1 O Senhor Blair acabou o seu mandato. Muito bem.
Renunciou ao seu mandato de deputado de Sheffield. Não era obrigado a tal, nem isso costuma ser hábito.
Foi imediatamente nomeado “enviado ao Médio Oriente para fomentar a paz”. Convenhamos que para quem defendeu tão ardorosamente a intervenção no Iraque, pejado de armas de destruição maciça (convém lembrar) que mais ninguém viu, a coisa pode pôr em causa junto dos destinatários a sua boa vontade e a sua isenção.
Parece que agora está na moda nomear os ex-primeiros ministros para cargos deste tipo. Os respectivos governos agradecem: um de menos a chatiar! Os recipiendários desta generosidade terão sido consultados?

2 Não é Nefertiti, nem sequer Cleópatra: Hatchepsut. Conhecem? Eu, tradução oblige, soube dela tardiamente e depois li de enfiada três livros sobre o Egipto e fiquei-lhe com grande respeito. Agora descobriram a sua múmia que permanecia solitária e desconhecida num arrumo do Museu do Cairo. E como é que a venerável senhora foi encontrada? Pois por um dente! Um único dente, encontrado dentro de um vaso funerário com o selo da grande faraó. Esse dente e uma múmia com um braço cruzado sobre o peito e as unhas pintadas de vermelho (sinais de realeza) identificaram, ao que parece positivamente a famosíssima rainha. Leitor de romances policiais, admirador recente da civilização egípcia, esta história comove-me um pouco. E, sobretudo, porque isto já é obra dos egiptólogos locais. A descolonização também passa por aqui.
3 Em Madrid, terra bem mais interessante, do que a hispanofobia dominante permite ver, uma livraria de bairro estava para fechar. Motivos graves e familiares não permitiam à proprietária continuar a dedicar-lhe o seu tempo. Ao que tudo indica (e a fotografia no El Pais, deixa ver) era uma casa de amigos de livros e com livros amigos. Um grupo de fregueses habituais associou-se a Marisa Larru para lhe poupar o trabalho e evitar o fecho. O barro manterá a sua livraria mesmo se nenhum dos novos sócios pense que vai ganhar dinheiro. Desde há momentos (se o meu mail já lá chegou) sou o mais novo freguês da “libreria La Regenta” na calle Serrano 228, 28016 Madrid. O mail: regenta@verial.es. Os eventuais interessados poderão mandar um mail nem que seja de apoio, ou esperar que eu tenha notícias sobre como encomendar um livro, pagá-lo, etc. A voz que me atendeu pelo telefone (0034)915 639 277 era alegre e bem timbrada. Ou seja: quem telefonar também terá o pequeno prazer de ouvir uma voz feminina com o sotaque castizo de Madrid.
4 O que leio das declarações do senhor comendador Berardo não augura nada de bom. Pior, faz-me pensar que têm razão todos os críticos do processo Museu Berardo/CCB. Lamento, pois, não alinhar nos “tremolos” embevecidos do senhor primeiro ministro e no exagero de “a partir de agora ser em Portugal que começa o circuito da arte contemporânea”. Alguém devia dizer a estes senhores que convém ter algum bom senso e não fazer declarações altissonantes.
No que respeita ao senhor Mega Ferreira começo obviamente por me solidarizar com ele. O pato-bravismo não pode ganhar sempre que diabo. Mais: o presidente da fundação do centro cultural não tem que ser obrigado a sentar-se no conselho de fundadores da Fundação/colecção Berardo. Pode perfeitamente delegar essa tarefa em qualquer dos seus colegas. Isto se entender que não este o momento de sair do Centro. Convenhamos que este, agora, é uma mera casca vazia. E Mega Ferreira poderá de certeza encontrar outro lugar onde seja menos inútil. Há lugares que nem a peso de ouro!

5 A criatura que dirige a DREN deu muito bom durante dois anos seguidos ao senhor Charrua. Agora põe-lhe um processo disciplinar. À cautela e para que este seja de uma independência à prova de bala, nomeou um instrutor que vive em Trás-Os-Montes!! O facto de o referido instrutor ter sido candidato do PS nas últimas eleições autárquicas e de dever à directora da DREN a sua estadia em Bragança onde não tem lugar não quer obviamente dizer nada. À atenção da Ordem dos Advogados, no caso do senhor ser licenciado em direito e exercer como a advogado.
6 Os actuais ideólogos da reforma a qualquer preço devem achar que o Público é pago pelos bolchevistas, pelo cds ou por alguma seita demoníaca. Pelos vistos os portugueses pagam pela péssima assistência (todos os sistemas confundidos) de saúde nada menos de 22,5% do total gasto. Ou seja só a Espanha e a Bélgica se aproximam de nós. E a Holanda, a Inglaterra ou a França ficam-se pelos 10%. Por acaso também, olha a novidade!..., são todos mais ricos.

Eugénio de Andrade

O meu olhar, 26.06.07

O sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

Au Bonheur des Dames 73

d'oliveira, 26.06.07

Variações, 2
Estou a ler, melhor a folhear, um par de livros, enfim uma boa dúzia, que até trouxe para a escrivaninha (amo esta palavra: escrivaninha. Sabe-me à compota de laranja amarga da avó Aldina - a Velha Senhora, para os que me lêem há mais tempo - ao barómetro da Antiga Casa Ribeiro que um genial artífice me reparou. E que, de passagem, me deu uma lição comovente do amor pela profissão, do gosto pela coisa bem feita da simplicidade tão Porto de outros tempos, que o senhor, era um senhor!, irradiava.) enquanto vou ouvindo a Ute Lemper cantar. Ó deuses antigos, ó velhos velhíssimos Heinzelmännchen, de que herdamos o nome, protejam esta mulher, mimem-na, acarinhem-na, forneçam-lhe Pfannküchen frescos, tantos quanto ela pedir. Eu devia dizer berliner Pfannküchen para distinguir a simples filhó da vera bola de Berlim. Ai que saudades de um Berlim que já não há, mesmo dividido mas tão cheio de futuro e nós tão novos e tão capazes de espanto! Gosto de pensar que ainda mantenho intacto o sentido do espanto. E a comoção. E a alegria breve e simples, limpa e inicial que se experimenta com um novo livro, Jesus que pilha aqui tenho, livros velhos e novidades, desde “Os Cangaceiros” de Lins do Rego até um divertido (enfim!) “Erase una vez ele amor pêro tuvo que matarlo” de Efraim M. Reyes com passagem pelo “(Des)caminho para Santiago” e livros de poemas de Angel González, António Gamoneda e do José Tolentino de Mendonça que me tem deixado surpreendido. O homem tem força. Muita.
E a Ute Lemper continua, agora com uma canção de Brel, que dá a exacta medida da sua reinterpretação. Melhor dizendo acaba. Salto para um programa onde vejo o Mia Couto. O programa agora é sobre África. Sobre os estereótipos sobre África. De vez em quando encontro pessoas que foram até lá. Para a praia! Não se lhes peça opinião, muito menos descrição. Foram tomar banho. Os pretos são todos iguais. Iguais e pretos. Descobri, sem surpresa, devo dizer, que ninguém vem com qualquer ideia sobre a realidade vista, visitada. Encerrados num resort, num grande hotel, aquilo que os deveria surpreender não surpreende, tanto lhes fazia África ou a Dominicana, desde que haja praia e um moleque para trazer o daiquiri ou whisky, preto ou mulato é igual, um criado é um criado, pode até ser branco mas isso é mais difícil nos trópicos ou adjacências similares.
O Mia, coitado, bem que se esforça mas o peso de uma África tecnicolor, muito Rainha Africana, torna surda toda a gente. E, todavia, ao que parece, viemos todos de lá, em levas sucessivas, ao azar dos caminhos, perdendo a cor e a melanina ao mesmo tempo. Em trinta, quarenta, cinquenta mil anos, a longa marcha do sapiens sapiens deu isto. E lembro a Ana, na nossa única bicada (a dois) africana, Senegal, ela ia em trabalho, estarrecida: ao fim de meia dúzia de dias, dizia-me: mas eles são tão diferentes fisicamente! Deliciada! E obrigou-me a comer umas coisas à mão em casa de um Abdul simpatiquíssimo, cinco filhos que às tantas estavam todos ao colo da holandesa loira e grande e lher diziam coisas em uolof. disse-me, Vou aprender uolof, há-de ser menos difícil que o português e o Abdul ria como um perdido e jurava que não, português é canja ao pé do uolof, mas a Ana insistia, vou aprender, ai isso é como ginjas, enfim ela não disse como ginjas era o que faltava, mesmo sabendo uns rudimentos de português, português de cama, dizíamos, tontos e felizes, não dá para estas idiomáticas. A Ana nem a morrer aprendeu, aquilo foi tiro e queda, coisa de semanas, puta que pariu isto tudo, um gajo apaixona-se, pensa que afinal a vida pode começar aos trinta e muitos e vem a porra da maligna e zás!, a andar violeta!
Desculpem, mas tudo isto vem de me lembrar que a 25 de Junho, o Hendrik, sogro, enfim quase sogro, porreiro faria anos. Ele que me dizia, a tua casa é aqui, em Haia, perdemos uma filha mas ganhamos um filho, não Hendrik as coisas são mais complicadas, nem eu substituo uma filha, nem esta casa me substitui uma mulher, antes ma faz lembrar e eu, com essa lembrança, não aguento, les portugais ne sont jamais gais, somos uns tristonhos de primeira, se calhar é de propósito, antecipamos estes desastres ou outros. E o pior é que, de quando em quando eles acontecem. No creo en brujas pero que las hay, las hay...
[.....]
Esta crónica, se isso se lhe pode chamar, acaba assim! O autor ia embalado, em quinta, cabelos ao vento num descapotável a desconjuntar-se mas a CG cortou-lhe cerce o voo. Há uma torneira que pinga, avisou, que deita água por fora, agua que estraga os armários da cozinha, temos de ir já ao C*** reclamar, arranjar uma peça nova que isto custou um balúrdio e não tem sequer dois anos de uso. Mas... Nem mas nem meio mas, há um litro de água ou um hectolitro, vá-se lá saber, a tomar liberdades excessivas com o mobiliário. E se não se puder lavar uma xícara na banca não vale a pena cozinhar. E sem cozinhar não se janta. E..., E...
E, ao fim e ao cabo, de que serve lembrar os mortos, nomeá-los, como se isto fosse África e eles fossem os intermediários entre nós e os mundos antigo e futuro a que mais cedo ou mais tarde pertenceremos. Na Europa civilizada, ou quase, a morte esconde-se, tapa-se e esquece-se.

*O (Des)caminho ... é de Cees Nooteboom.

Na gravura:
Vista de Delft de Vermeer. Proust achava-o o mais belo quadro do mundo. Nem que seja por usarmos o mesmo primeiro nome, dou-lhe razão.

Estes dias que passam 66

d'oliveira, 24.06.07

Efeméride

Foi no longínquo mês de Junho de 61. Um punhado de leitores, poucos de facto, esperavam ansiosos, ou pelo menos impacientes, pelo nº 19 da revista “almanaque”. Esperavam porque pouco tempo antes, mais propriamente no 17º número datado de Março/Abril desmentia-se categoricamente que a revista estivesse a dar as últimas. É verdade que, por razões mais que evidentes, a critica almanaquiana começava não só a ser mal-vista pelas excelentíssimas autoridades, coisa corrente em Portugal, mas ia ganhando anti-corpos no establishment nacional. Em Fevereiro iniciara-se o fogo de barragem ao reino de Pacheco e ao lugar comum coisa que deixou marca nas criaturas da política, da banca, da academia e da universidade que se viam (e nisso tinham razão) retratadas. Em Março a campanha prosseguia na “guerra aos monumentos”. Com o mote “Para onde apontam estes monumentos. –Para a sua própria monumentalidade!” passavam-se em revista as pequenas vaidades lisboetas e provincianas. Leitores mais avisados que tinham começado a frequentar tardiamente aquele clube mais que suspeito puseram-se á cata dos primeiros números. O Rui Amador, ao ver-me com um exemplar, perguntou-me se eu os tinha todos e, perante a minha negativa, disparou, vai já por eles que isto não dura. Eu, ir ia, disse-lhe, mas não tenho guita que chegue. Magnânimo, o Rui emprestou-me os cacaus necessários e inclusivamente ofereceu-me uma imperial na Brasileira logo que consegui apanhar os atrasados num distribuidor da Baixa que, espantado, nos confiou que já vendera uma boa dúzia de colecções mais ou menos completas. Isto não tem ar de durar, confidenciou-nos. Curiosamente, foi esse mesmo distribuidor que em 63 nos preveniria que o Diário Ilustrado estava por um fio! E estava, que logo acabou.
Vem tudo isto, esta nostálgica memória, de uma revista fabulosa, que hoje atinge preços bem bonitos nos alfarrabistas, porque dei comigo a olhar o espectáculo do mundo e a murmurar, eclesiásticamente (de Eclesiastes) Vanitas vanitatis... a propósito de uma criatura com quem vagamente me cruzei e que, milagre milagrão da noite de S João, consegue ser cega de tanta presunção e vaidade com que se mira num espelho menos sincero do que o da bruxa má. Razões de vária ordem fizeram-me ter acesso a uma carta dirigida a um amigo meu onde ela se reclamava de altos cargos desempenhados ou não. Este “ou não” merece explicação. Para atordoar o correspondente aquela pachecal figura esgrimia de dedo em riste uma longa série de prebendas que tinha, assegurava com empáfia, recusado. Era, juro-o, um rosário que faria o último Senhor ex-Primeiro Ministro roer-se de inveja. Ali, preto no branco, perpassavam as maiores honrarias do Estado, recusadas com olímpico gesto mas propagandeadas com suspeito frenesi. O correspondente da criatura mostrou-me a carta, com ar atordoado (e não era para menos!): tu já viste isto, mcr. Um patriota! Um grande homem! O luzeiro da Ciência Pura e da Dedicação Infinita!
Concordei, claro. Nestes casos, concorda-se primeiro e depois, do vento acalmar vai-se ver se há estragos.
Mas há mais, dizia-me o meu amigo, embevecido e exaltado: Olha só a lista das suas actuais actividades.
Ó pá, não vale a pena, vamos mas é para as sardinhas que estão à nossa espera na Casa Teresa (casa frequentada pelas melhores famílias deste blog, a começar pelo duo “o meu olhar”/JSC).
Não, dizia-me o Empolgado. Tens de ler.
A fome que é boa conselheira, aconselhou-me a atender o pedido do meu amigo. Confesso que fiquei sem fala. E cansado. Muito cansado. O Pacheco em questão disparava com quanta arma tinha e ocupava meia folha de papel almaço com a lista não exaustiva das suas actuais funções. E alguns dos itens eram genéricos (p. ex. escrevera vários livros, muitos artigos, enfim esgotara a tinta Parker Quink de gerações).
-Tás a ver, mcr? Este homem mais do que um génio, do que um santo, é um Monumento perene da Raça Lusíada por mil mundos espalhada. Este homem é um quarteirão. E tão simples, tão terra a terra, tão nós cá todos bem!
- Alto aí e para o baile. Quarteirão só de sardinhas e é porque somos quatro e se calhar sobra. Tu estás é com uma fome canina e ancestral, vês a dobrar e admiras a decuplicar. Ninguém em seu perfeito senso faria propaganda de coisas que recusou. Por mim o gajo até pode dizer que deu uma tampa à Brigitte Bardot nos tempos heróicos. Heróicos dela, entenda-se que ele por essas alturas era discreto como uma ostra perlífera. Vamos para o S João enquanto não aparecem as rusgas marteleiras e os festivos já borrachos. Olha lá, alguma vez leste o “almanaque”? não? Pois vou-to emprestar que andas precisado.
E foi o que fizemos. Ai que sardinhas!

Leitoras gentis: vocês que provavelmente não são do Porto nem de nenhuma das terras que festejam o Baptista (Braga, Vila do Conde, Figueira da Foz...) não acharão qualquer substancia nesta vaga crónica que de facto, em vez dum pobre diabo envelhecido antes do tempo, só vinha lembrar uma fabulosa revista feita por um punhado de tipos que merecem não uma vénia mas um rijo abraço: José Cardoso Pires, João Abel Manta, Luís de Stau Monteiro, Eduardo Gajeiro, Baptista Bastos, Câmara Leme, João Rodrigues, Vasco Pulido Valente, Victor Pala e Carmo, Sebastião Rodrigues, Alexandre O Neil e Alexandre Pinheiro Torres, entre outros. Ou seja, gente que nos reconcilia com o país, com o S João mesmo de martelinhos de plástico, com o preço das sardinhas.
E com o dr. R.R.?
Não, isso também seria de mais!... É outro que tal...

Ó meu rico São João
Padroeiro dos poetas
Dá-me força no coração
P’r’ aturar os patetas.
(com menos sorte do que "o meu olhar" foi esta a quadra que me saiu)

Na gravura Karl Marx e Bogart. Os dois fazem alguma falta. Alguma! antes eles que Maurras e Cruise!


Ainda o aeroporto da Ota (2)

ex Kamikaze, 24.06.07
Por se tratar de tema que a todos interessa sobremaneira, trago aqui, para maior visibilidade, um comentário do MCR a este post do JCP.
Comentário no qual, aliás, me revejo inteiramente (bem haja, MCR, por tê-lo escrito, para mais com tanta assertividade e ironia).


«Muito bem Zé Carlos!
V. põe um dedo na ferida. Aliás dois. O primeiro é que refere que a decisão terá sempre contorno político.
E o segundo é que essa decisão política deve ser temperada com o interesse no desenvolvimento harmónico do país.
Eu ainda poria um terceiro: é se depois disso há ou não exequibilidade técnica e financeira.
Assim sendo, e sem tomar partido em algo que é comigo mas que me transcende por eu não ter ao meu dispor mais do que a informação veículada pela imprensa, gostaria de lembrar que contra a Ota militam -e desde sempre!!!- algumas dificuldades técnicas quais sejam a composição dos solos, o gigantismo das terraplanagens, a dificuldade em manter mais pistas e a predominância de ventos cruzados.
Mas, dando tudo isto de barato vejamos então se há opções menos caras. Parece que Alcochete (cujo terreno é do Estado, que tem potencialidade para mais pistas que, ficando a sul poderia eventualmente ser motor de realinhamento dessa zona de deserto e que não sofre dos tais ventos) deveria ser equacionado. Equacionado e não decidido. Para isso há mais itens a considerar e neles o LNEC, apesar de depender da Administração, parece dever ser consultado.
Como também se pode ainda ver a tal opção Ota mais 1. E paralelamente ver se a região norte bem mais dinâmica que a zona da ota e adjacencias poderá ter algum significado no contrapeso a este vago aeroporto.
Estou apenas a especular como cidadão que paga impostos fortes e até á data apenas tem uma vaga garantia que não lhe vão rebentar com a reforma.
O que se passou, caro Amigo, é que o projecto OTA e o TGV a ele semi-associado foram atirados á cara do pagode como factos consumados. Ora os Linos passam mas nós ficamos cá para pagar. Sem reformas espectaculares nem nada que se aproxime.
Houve autismo e arrogância no governo e nos seus porta vozes para já não falar nos "chiens de garde" solícitos e pressurosos que em coro anatemizaram as dúvidas legítimas dos cidadãos. Isto, caríssimo Amigo e Companheiro é que é insuportável. Esta malta não aceita sequer uma pergunta. E vai-se a ver Alcochete estava ali tão perto. O ministro Lino deve ser uma pessoa estimabilissima. Foi do PC? Já saiu. Fala de desertos? já quase que se desculpou. Disse coisas fortes? A gente sabe que o Jardim ainda é pior.
Todavia, caro Zé Carlos, por muito menos um ministro, em França foi mudado de ministério, passou das Finanças para o pomposo lugar do Ambiente e promovido a ministro de estado para dar uma no cravo e outra na ferradura. Todos os jornais sem excepção interpretaram isto como um puxão de orelhas e eu nem quero futurar sobre a data de despedimento do senhor Borloo. Em política, dizia o inefável e cada vez mais presente salazar, o que parece é. E o ministro Lino, pessoa estimável, como disse, não tem jeito para estas coisas. A escola do velho "partidão" marcou-o muito. O homem é autoritário quando pode e afável quando outros mais fortes assobiam. Não é o único. O meu amigo A. ex-preso político, ex-m.l. está tão zangado com o bloco de esquerda e com o pc que todos os dias arranja argumentos para convencer um pequeno grupo de discussão que Lino e Sócrates são os maiores. O diabo é que na argumentação vem sempre o ressabiamento contra alguém e não o bom senso e a boa dúvida. E é isto que o dr. Cavaco (que neste género de política de partido com maioria absoluta tem uma experiencia de muitos anos) vem mandando dizer: cuidado, calma, não criem demasiadas frentes, os cidadãos podem ser serenos mas também se fartam. E ás vezes, uma medida boa mas apressada, pode originar um buzinão na ponte. E um buzinão pode levar á queda inglória de um governo que parecia unsubmersível.
Claro, meu Amigo, que ainda aí não chegámos, Mas que algumas tolices perfeitamente evitáveis se tem cometido, disso não tenha dúvidas. Desde a tal Moreira que processa a torto e direito até à queixa do Sr. 1º Ministro para já não falar nas escorregadelas da srª Ministra da Educação que depois de apanhar em cima com um acordão tem o desplante de dizer que está pronta a repetir o disparate, ou o Sr Ministro da Saude que terá afirmado que o aborto não paga taxa moderadora, estamos perante erros que se pagam cedo ou tarde. E quer saber? Pagam-se sempre mais cedo do que pensamos.
Por isso e estando de acordo em princípio consigo sempre proponho algumas cautelas e muitos caldos de galinha no que toca a temas que só são motivo de discussão porque um ministro apressado achou que não tem que nos dizer nada.
Em política, devemos ser estratégicamente impacientes e tacticamente pacientíssimos. Eu sei que isto custa a engolir mas os resultados estão á vista desde há séculos.

Um abraço

23/6/07

MCR»

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