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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Estes dias que passam 115

d'oliveira, 30.06.08

A manipulação do sucesso,
do direito ao mesmo
e as consequências que se adivinham



Uma criatura que exerce o cargo de dirigente de uma DRE e que já se tornara famosa há um par de meses por levantar um processo a um dos colaboradores que alegadamente teria, em conversa particular, insultado o Primeiro Ministro, decidiu, após o conveniente período de nojo, mostrar de novo as pérolas do seu pensamento.
Proclamou (cfr. “Público” de 28 de Junho pp) que os “alunos têm direito ao sucesso” e que para que se cumpra tão luminoso desiderato deverão ser classificados por professores que não se distingam nem pela excessiva exigência nem pela igualmente excessiva permissividade.
Disse mais um par de coisas que poderão ser utilmente consultadas na mesma edição do citado jornal.
Vamos lá a ver se nos entendemos: os alunos não têm qualquer espécie de direito ao sucesso. Têm, isso sim, direito a um ensino responsável, digno e não excluidor. Depois disso, caso façam o que têm a fazer, isto é caso estudem, têm direito a ser avaliados pelo seu trabalho por avaliadores competentes e conhecedores do programa que lhes foi ministrado. E bonda.
Proclamar o “direito ao sucesso”, coisa muito na linha do que se vai ouvindo por aí fora, numa onde de publicidade para imbecis e mentecaptos, não quer dizer coisa alguma, ou pior, quererá dizer que o sucesso está ali mesmo, ao virar da esquina, não é preciso fazer nada, que ele está à nossa espera num Ferrari que conduziremos (mesmo sem carta) a caminho de umas ilhas paradisíacas onde o leite e mel (ou melhor o champagne e o caviar) escorrem directamente da árvore das patacas para os beiços mal lavados do consumidor ad-hoc.
Claro que esta declaração grotesca não é inocente. Ou não parece inocente. Ela visa cobrir a inaudita aventura das “provas nacionais” que todos os especialistas (ou pelo menos os que se podem arrogar desse título) consideraram inacreditavelmente fáceis. Aliás basta considerar (“Público”, edição referida, pagina 5) o quadro onde se comparam perguntas de aferição de Matemática do 4º ano de 2007 e do 6º ano em 2008.
Diga-se para já que em ambos os casos a pergunta é indigna. Uma criança de dez anos merece que lhe respeitem a inteligência e não lhe façam perguntas tontas e demasiado fáceis.
Mas aqui a coisa é ainda pior: Se a pergunta é fácil para o tal 4º ano (de 2007) é facílima para o 6º ano de 2008!!!
A pergunta que imediatamente ocorre é esta: a que título esta balda? Será porque os resultados ao longo dos anos têm sido miseráveis e nos colocam no fim do fim? E que é preciso, em ano pré-eleitoral, marcado por ásperas campanhas sobre a qualidade do ensino, provar que a excelsa figurinha que preside aos destinos da Educação obtém resultados estatísticos fiáveis que indiciem sucesso (o tal sucesso a que não só os alunos teriam direito mas também a Senhora Ministra e a coorte de responsáveis do eduquês que tragicamente se abateu sobre as cabeças das criancinhas portuguesas)?
De há tempos a esta parte, há a sensação difusa de que “eles” (os governantes) não sabem às quantas isto anda. “Eles” só ouvem o que querem, quando querem, e desde que seja música celestial para as suas orelhinhas. Para isso há uns escribas (até no Público) vindos dos cafundós do salazarismo e do estalinismo (les beaux esprits se rencontrent) que lhes sussurram que tout va bien madame la contesse.
De vitória em vitória até à derrota final!
"Eles" só ouvem o que servilmente lhes dizem uns responsáveis regionais, locais, uns assessores recrutados no aparelho e pinguemente pagos para não fazer nada, uns militantes que confundem o interesse nacional com o interesse próprio, enfim o pior do que se pode assacar à democracia, coisa demasiado nobre e demasiado vulnerável para ser usada por esta gente.
As famosas reformas, o famoso rigor, as famosas medidas lançadas sob um acompanhamento de acusações vagas e indiferenciadas a grupos inteiros (magistrados, professores, funcionários, agricultores etc, etc...) têm sido escamoteadas sob uma avalancha de promessas, de tgv, de aeroportos, de obras e inaugurações duvidosas que não resistem ao efeito combinado da alta do preço do petróleo (ora aí está uma bela desculpa) e da derrota da selecção de nós todos. Num momento, vai tudo pelo cano, os jornais anunciam que a bolsa de Lisboa teve um deliquio, que o investimento baixa, que a auto-confiança dos cidadãos se afunda.
Mas quereriam realmente outra coisa, estes apóstolos do sucesso, da facilidade, da manipulação estatística (porque obter resultados à pala da borla não é outra coisa senão isso)?
Pensaram porventura que, no futuro próximo, estas crianças contrabandeadas da ignorância para o quadro de honra, terão acesso às grandes escolas, ao grande ensino e aos grandes empregos?
Tenho uma sobrinha que fez com brio e trabalho o seu curso secundário numa escola particular onde a balda não tinha lugar porque felizmente as ordens ministeriais, as instruções dos GAVES e quejandos não têm eficácia. Foi assim que pode inscrever-se numa grande e prestigiada universidade inglesa que consta em todos os rankings mundiais. Ela sabe que uma vez concluído o curso difícil e trabalhoso que escolheu terá possibilidades acrescidas de emprego, de um bom emprego, de um emprego interessante e não falo só do aspecto económico.
As vítimas do novo sistema de sucesso terão em contrapartida, se tiverem essa sorte, um lugarzinho num balcão medíocre, a vender produtos medíocres, um destino incerto e um modo “funcionário de viver” como dizia Manuel da Fonseca, um autor que provavelmente não soará aos ouvidos delicados dos responsáveis da educação.
Escrevo este texto diante duma televisão exuberante que transmite a chegada apoteótica da selecção de futebol espanhola a Madrid. Ora aí está uma lição de trabalho e exigência. De dignidade e humildade. De recusa de facilitismos, Aragonés que o diga. E se alguma coisa poderia propor ao ver esta festa vermelha e dourada é que este cavalheiro de 69 anos (44 jogos de selecção quarenta vitórias) seja contratado para Ministro da Educação de Portugal (pior não faria e é muito provável, quase certo, aposto dobrado contra singelo, que faria melhor, muito melhor).
Com ele o sucesso não é um direito, é um objectivo que só se alcança com trabalho, trabalho e mais trabalho. O céu como dizia, num romance pungente e admirável, Richard Kaufmann, não paga dividendos. Será que os da Educação percebem isto ou é preciso fazer-lhes um desenho?
Para o ano as provas de Matemática do 12º repetirão as do 6º deste ano, vai uma aposta. E as notas excelentes tombarão da cornucópia ministerial como os pardaus que corriam, é o que afirmava Sá de Miranda, por Terras de Basto.

* Na gravura: a gatinha Ingrid Bergman de Andrade tenta resolver o seguinte problema: uma gata está deitada numa caixa de canetas. A caixa está sobre a estante do corredor dos quartos. Quantos objectos estão debaixo da gata? Proposta de pergunta para o exame nacional de matemática do 9º ano.

Farmácia de Serviço 44

d'oliveira, 30.06.08

dois incursionistas "instalados"

A Filipa César, uma artista instalada desde há anos em Berlin, resolveu pegar nas histórias clandestinas de quatro "passadores" de fronteira nos anos já longínquos de 1972/1974, filma-los no local e por aí, misturar, baralhar e o que mais se verá (e que os visados desconhecem).
A estreia é a 5 de Julho como se vê.
A autora, a fundação que a subsidiou, a galeria que a expõe chamam ao acontecimento "instalação" .
Os instalados, hoje senhora e cavalheiros respeitáveis, puxaram pelas meninges e pela memória e falaram para a câmara que os visava ameaçadoramente. O resultado ver-se-à.
Na Ellipse Foundation (contemporary art collection) Rª das Fisgas, Pedra Furada, Alcoitão Cascais. Desde 5 de Julho até 14 de Setembro.

Para a petite histoire: eis os "passeurs" ora "instalados": Cândida Alves Simas Santos, José Teixeira Gomes, Manuel Simas Santos e Marcelo Correia Ribeiro.

Na gravura: convite reproduzindo o mapa de Estado Maior dos locais por se contrabandearam fugidos à polícia política, clandestinos políticos e desertores.

Missanga a pataco 55

d'oliveira, 29.06.08

Indiscutível

Bilhete ao meu amigo João Tunes, navegador solitário do Agualisa 6, um blog que anda por aí a chatear o indígena. Que nunca as mãos lhe doam!

Foi uma grande equipa, caro João, uma equipa e não um somatório de géniosinhos. Uma equipa e não um ajuntamento. Com um treinador que não se esconde atrás de desculpas nem invoca a Virgen del Pilar ou outra do mesmo teor. Foi uma bonita festa, a festa do futebol como a malta gosta, um futebol franco, aberto, prazenteiro, um futebol que a malta pensa que é o mesmo que jogávamos na praia, no recreio da escola, um futebol em que nos esfarrapávamos para ganhar, cuspindo meio pulmão e alegria. Uma equipa que não perdeu um jogo, que não facilitou, que não descansou, que uniu, que deu o litro, o hectolitro, que suou bem suada a camisola. Assim, vale a pena!
E uma palavra para Luís Aragonés a quem tantos e tão poderosos auguravam um mau fim. El viejo mostrou com que lenha se aquece. E deve estar a rir-se como um cabinda à custa dos adversários entocados que lhe juravam pela pele.
A CG esteve aqui a meu lado, a perguntar coisas, coitada, ela de futebol, nicles, um zero à esquerda, nunca deu um chuto numa bola, nunca arreou uma canelada matreira no adversário imbatível, nunca marcou de cabeça, nem sequer um falhanço clamoroso, baliza aberta e bola ao lado... A enteada Ana, uma fanática de sofá, também não, mas teve um namorado que jogava futebol de salão e isso faz dela um oráculo aos olhos da mãe embevecida, queria a derrota da Alemanha porque os germânicos nos mandaram para casa. Não tem razão, fomos nós que mostrámos que devíamos vir para casa ao perder com os suíços. Com os suíços! Arre, porra, que é demais. Depois disso não merecíamos andar a enganar os nossos emigrantes para quem essa vitória seria tudo. Jogadores emigrantes contra trabalhadores emigrantes!
Voltemos aos espanhóis, á malta aqui do lado: assim vale a pena. Não se deve perder nem a feijões, não se deve facilitar, isto é uma coisa muita séria e os milhões que se ganham nos estádios devem ser retribuídos com um futebol profissional, vivo e limpo.
Esperemos que o próximo treinador, as criaturas da FPF, dos Clubes, da Liga, da imprensa esparvoada e sobretudo os jogadores portugueses percebam isto. Só se ganha quando se merece. Só se merece quando se é humilde e persistente.

Au bonheur des Dames 128

d'oliveira, 28.06.08

A dança das cadeiras
e o rolar das cabeças


O Senhor Ministro da Agricultura (se a estas horas ainda o é) não me aquece nem arrefece. Nunca tive qualquer opinião sequer sobre o seu bigode, que sempre me pareceu ser a coisa mais interessante da criatura.
Dito isto, não me move contra a pessoa em causa, nenhuma animosidade. Não sou agricultor, Deus me livre!, não vendo maquinaria agrícola, adubos, não tenho interesses nas serrações ou nas indústrias papeleiras e apenas distingo uma dúzia de árvores.
Por outro lado, nunca fui entusiasta das associações agrárias desde a CAP à CNA. Aceito a sua existência e julgo que alguma utilidade terão. É preferível que os interesses dos homens do campo estejam defendidos deste modo do que por encobertos lobbies.
Também não me causa espécie que na CAP haja um valente par de reaccionários e na CNA outro tanto de progressistas a outrance. Mal estaríamos nós, e mal estaria a agricultura portuguesa se nela não se reflectissem as fracturas políticas do resto da sociedade.
E nem sequer me importa muito que um ministro, mesmo esta espécie de ministros que Sócrates, à imagem e semelhança de Cavaco, gosta de ter (uns funcionários prestáveis e fungíveis que façam o que se lhes diz, durante o escasso tempo de antena que dispõem) digam coisas como esta última que o Senhor Ministro Silva disse. Para mim, ele limitou-se, muito a La Palisse, a constatar uma evidência.
Todavia, não foi só isso que o Senhor Ministro Silva disse. De facto ele pareceu (ou quis mesmo) querer desqualificar os adversários. Ou seja: com aquelas conotações políticas ele pode ter pretendido assacar aos agricultores ricos e pobres uma acusação que neste pais liofilizado é terrível: que há gente nas confederações agrárias que faz política em vez de ordenhar as vacas ou semear salsa ao reguinho. E com essa gente é inútil e contraproducente discutir. Se foi isto que o (ainda) Ministro quis dizer é muito bem feito que lhe cheguem a roupinha ao pelo. Não pela inverdade da afirmação mas pelo que ela tem de desqualificante e de ataque à política. Um Ministro deveria saber que a política está no posto do comando. Que isto não é mera técnica, mais imposto ou mais subsídio. É política, nom de Dieu! É par isso que há Ministros, senão bastava um capataz.
Ora o Senhor Ministro Silva comportou-se, ou pareceu comportar-se, como um mero capataz se, porventura, quis acusar elementos da CAP e da CNA de política!
Eu sei que no serralho governamental a palavra política cheira a enxofre. Eles não gostam dela. Prefeririam, sei lá!, polka. Olha, aí está: polka. Bela palavra! E musical que se farta. E cultural, muito ao estilo de saudosas personalidades ministeriais entretanto passadas compulsivamente à reforma antecipada. Imaginemos, por um momento, uma reunião do Ministério sob a batuta do inefável Primeiro Ministro. Um minuete a abrir, enquanto Suas Excelências comem canapés. Umas flûtes de champanhe (da Bairrada ou da Murganheira, que a crise aperta) e um absinto para o titular da Cultura. E uma garrafinha de “Magos” para a Senhora da Educação (se ainda por lá anda...). De repente, soa um clarim, ou vários, ou umas trombetas, e o Senhor Presidente do Ministério lê a ordem de serviço enquanto alguns ministros, mais gulosos ou menos rápidos, metem o resto dos canapés no bolso das librés. Segue-se uma azougada valsa que pontuará o discurso de Sª Ex.ª aos discípulos sobre o que dizer, fazer e negar durante a semana que entra. Permitir-se-ão algumas contra-danças, sempre marcadas pelo senhor Ministro do Reino e dos Cultos, perdão, das Finanças, a cargo de alguns responsáveis das pastas de maior relevo que Sª Ex.ª ouvirá com a sua habitual bonomia. Se responder com uma marcha (nunca a de Radetzky por óbvias razões) é sinal de negativa. Se a música escolhida for uma polka, saber-se-á que um Ministro, durante um momento único e irrepetível da sua vida, fez jus aos favores do Chefe. Quando for exonerado a seu pedido haverá certamente uma sinecura interessante em que ocupar os seus ociosos e futuros dias.
Mas isto, este idílico retrato, servirá para povoar o sono de algum crédulo habitante da Lusitânia que ainda pensa em ganhar o Europeu de futebol graças a uma decisão da FIFA, mas não serve seguramente para segurar um Ministro (mesmo com bigode) ao lugar ou para (no caso de ele ainda por lá estar) o levar a sério quando afirma que continua na posse de todas as suas funções. Não continua. Nem ele, aliás, acredita nisso.
Sic transit gloria mundi...

*na gravurinha: uma polka!

Estes dias que passam 115

d'oliveira, 25.06.08

efeméride

Foi o blog do João Tunes, um dos meus vícios diários, que o relembrou. Faz sessenta anos que Berlin foi bloqueada. Em poucas palavras o que ocorreu foi o seguinte: uma vez derrotados os nazis, a Alemanha foi dividida em quatro partes. O sector soviético ficava a leste e englobava a cidade de Berlin que, por sua vez, também estava dividida em quatro sectores.
O sector soviético ocupava também a zona leste da cidade e, curiosamente, a sua parte mais antiga e central (Mitte). Os três sectores ditos aliados não se distinguiam porquanto não havia quaisquer barreiras entre eles. As passagens para o sector soviético estavam relativamente guardadas mas em 1948 não existia nada que se assemelhasse ao sinistro Muro que depois se construiu. De todo o modo, o clima dentro da antiga capital do Reich milenário, que só durara escassos onze anos, era de cortar à faca. Por razões óbvias, e apesar das privações por que todos passavam, aqui ou no resto da Europa, os sectores “aliados” exerciam uma forte atracção e eram os preferidos da população. A guerra fria só ajudava a tornar mais forte esse sentimento e terá sido essa uma das razões por que Stalin entendeu proibir o trânsito terrestre entre a Alemanha Ocidental e Berlin. Com essa medida estrangulava economicamente a cidade e sobretudo cortava-lhe drasticamente os víveres e o carvão, essencial para o aquecimento durante o longo, frio e seco Inverno berlinense.
Todavia, os ocidentais, melhor dizendo os americanos (que eram quem tinha meios aéreos, combustível e logística) criaram uma ponte aérea que ainda hoje é um exemplo de organização e eficácia. Em Berlin quase que aterrava um avião a cada minuto. Aviões que traziam comida, vestuário, combustíveis, brinquedos para os meninos berlinenses (e isso foi um dos pontos importantes do programa) enfim tudo o que era necessário para manter uma aparência de vida normal na cidade sitiada.
Convém aqui relembrar os habitantes da cidade que não só se portaram com uma enorme calma mas que também rapidamente criaram sistemas de entre-ajuda exemplares. Os berlinenses são gente bem humorada e expedita.
A situação durou praticamente um ano e terminou surpreendentemente com o recuo dos soviéticos. Foram restabelecidas as ligações ferroviárias e por estrada, nos três famosos eixos de acesso à cidade.
Anos mais tarde, o Muro reeditaria, de certo modo, esta tentativa de isolamento da cidade.
Foi já nesse contexto que vivi em Berlin durante dois meses, em 1970. Vivia, aliás, num Studentenheim, em Wedding a poucas dezenas de metros do muro.
O ambiente, obviamente menos carregado do que o de 48, era todavia especial. As pessoas sentiam-se numa ilha em que um muro sinistro e ameaçador fazia as vezes de mar. Havia fortes restricções ao trânsito dos berlinenses e mesmo os estrangeiros tinham de se sujeitar a pequenas humilhações (e longas demoras) para atravessar o check-point Charlie, perto da Friederichstrasse. Nós, alunos do Goethe Institut, tínhamos por hábito ir de quando em quando ao “outro lado” para comer (era mais barato, sobretudo se se conseguia contrabandear os marcos orientais comprados nos cafundós do Zoogarten à taxa de quatro por um, ou seja quatro vezes melhor do que a taxa oficial da DDR que trocava os marcos um por um. Claro que havia o risco de se ser caçado na passagem da fronteira onde não era raro revistar as pessoas de alto a baixo. E disse para comer porque em Berlin oriental não havia nada que se comprasse. Ou melhor, o que havia era de tão fraca qualidade e tão feio que nem o preço por mais barato que fosse era atractivo. E quando digo que havia coisas para comprar convém explicar que eram poucas. Berlin oriental era, para qualquer pessoa com dois dedinhos de testa uma prova provada do falhanço do sistema “socialista” (era assim que os do leste chamavam à tremenda e ineficaz bagunça que tinham criado e que, dizia-se, era, apesar de tudo, a menos má de todo o bloco oriental. Quando uma vez, já regressado, me perguntaram pelas lojas de Berlin oriental apenas pude murmurar que me pareciam piores e menos fornecidas do que as do Buarcos da minha infância. Ou seja, em 1970, os berlinenses, habitantes da capital da DDR, farol da paz e do “socialismo”, tinham menos produtos à sua disposição do que os pobres habitantes de um arrabalde piscatório da Figueira da Foz no imediato post-guerra.
Berlin oriental para um português habituado ao sufoco salazarista parecia um susto. Nem a ideologia conseguia suprimir aquela sensação de tristeza morna, de falta de tudo, inclusive de ar, aquele bafio que se respirava numa cidade cinzenta e ainda com visíveis sinais da guerra. Berlin oriental era deprimente. Era uma antecipada confissão de derrota, de falta de futuro, uma falácia que nem sequer a lembrança do odioso regime anterior desculpava. Nem os museus sumptuosos, o teatro da Weigel, a ópera e a música em geral conseguiam disfarçar o espectáculo acabrunhante duma imensa esperança perdida.
De certo modo, poderia pensar-se que Stalin tinha ganho a partida. Perdera o ocidente mas criara entre a sua distante capital e as fronteiras do inimigo, uma imensa zona morta, uma terra de ninguém em que nem sequer os fantasmas que a percorriam poderiam evocar o do “Manifesto”.
A resposta, mas quem a conheceria em 70?, seria dada quase duas décadas depois no dia em que um equívoco fez afluir aos postos fronteiriços do Muro uma imensa multidão que, de facto, o destruiu. Nem os alemães de leste estavam mortos, nem o Muro era eterno. E muito menos aquela temível corruptela de palavras antigas e justas (revolução, socialismo, liberdade) que diariamente e durante décadas foram cuidadosamente dessoradas por uma clique de funcionários para quem a palavra povo soava a algo de pernicioso.

* na gravura: um pedaço de "muro" nos seus primórdios

Estes dias que passam 114

d'oliveira, 24.06.08

Na noite de S João era previsto escrever sobre coisas mais leves, com um ligeiro toque licencioso até, um dia não são dias e o toque erótico está na moda, aliás esteve sempre, não vale a pena fingir que somos todos gente muito séria, a malandrice vem ao de cima e ainda bem, que seria deste mundo se não lhe déssemos com um toque de sem-vergonhice, da boa, da verdadeira, da Bayer, ou seja umas mamas a apontar para o infinito, uma mão pronta a saltar do infinito para o finito, isto é para a mama que estiver mais perto, que mais vale um pássaro na mão que dois seios a voar, não sei se me estão a seguir...
Só que Deus dispõe e um filho da puta qualquer põe a pata na escrita divina e borra a pintura. No caso o filho da puta é preto, preto retinto, um filho da puta preto, que também os há em quantidade não negligenciável. Este chama-se Mugabe e não deixa os seus créditos por mãos alheias. O homem terá sido vagamente combatente pela liberdade, ou seja, mandava uns desgraçados chatear o Ian Smith no tempo em que aquilo se chamava Rodésia do Sul, e quando os portugas arrearam a coisa tornou-se canja. A África do Sul sozinha, com o seu apartheid a romper pelas costuras já não dava hipótese aos rapazes de Ian Smith e foi assim que nasceu o Zimbabue. Desculpem a brevidade do resumo histórico mas creiam-me que a coisa foi mais ou menos assim. A África austral branca só tinha significado toda junta, sobretudo se tivesse ao lado um protectorado chamado Malawi governado por um cavalheiro “responsável” que só queria enriquecer-se e não ter chatices. A chatice foi que o 25 de Abril atirou de pantanas com Moçambique e Angola muito mais cedo do que se esperava e isso pôs em cheque os boers e por maioria de razão os 300.000 brancos da Rodésia.
Estes cavalheiros que punham e dispunham naquele território tinham criado uma forte economia agrária, baseada em culturas de exportação, grandes propriedades rigorosamente organizadas, enfim a coisa mais parecida com capitalismo que um “domínio” de Sua Graciosa Majestade Britânica poderia ter nesses anos de colonialismo puro e duro.
A tomada de poder por Mugabe fez-se por acordo, conservando os brancos o controle da quintas-empresas. E durante anos o sistema pareceu funcionar. As exportações agrícolas davam solidez à economia zimbabuana e havia mesmo um simulacro de democracia.
Subitamente tudo mudou. Os brancos foram expulsos, as “farms” foram ocupadas, as terras divididas, as exportações desapareceram e a pobre agricultura de subsistência que as substituiu não consegue sequer alimentar as multidões ocupantes. Ou seja: no século XXI os meios e os modos de produção não podem ser os do século XIX.
Junte-se a isto uma outra maldição. Na maioria dos novos países africanos instaurou-se o (mau) hábito do partido único. Partido único, significa utentes únicos das prebendas estatais. O mesmo é dizer que há fora desse círculo uma pequena multidão que se constitui em oposição por todas as razões possíveis, desde o patriotismo até á mais descarada ambição. Mas partido único significa também que todo e qualquer gesto político exterior pode ser considerado um acto de traição (como os últimos acontecimentos e as acusações recentes ilustram veementemente). E os traidores não podem ganhar eleições. E se, acaso, as ganham, perdem-nas logo a seguir por meios variados, violentos de preferência.
E é isso que ocorre desde há bastante tempo no Zimbabué. Demasiado tempo. Hoje soube-se que Morgan Tsvangirai, o chefe da oposição no Zimbabue está refugiado numa embaixada, que dezenas de adeptos seus foram já mortos pelas milícias do partido único. Centenas de militantes oposicionistas estão, neste momento, refugiados na sede da candidatura e correm risco de morte.
Entretanto, Mugabe que já avisara que nada nem ninguém o derrotaria, continua a ter activos apoios em África e foi, como se lembrarão, recebido em Lisboa com honras de Chefe de Estado apesar de lhe estar vedada a entrada na União Europeia.
A vaidade estúpida de fazer uma cimeira inútil foi mais forte do que o sentido ético. O sangue que depois disso se continuou a derramar no Zimbabue salpica indelevelmente os organizadores da cimeira que aliás foram avisados e viram vários políticos europeus boicotarem a reunião justamente porque esta estava inquinada pela presença de Mugabe.
E isto, esta burrice e esta falta de sentido de Estado não se apaga com as orvalhadas de S João. Nem se lava com a chuva miudinha que neste instante cai.
As brejeirices amáveis ficam para a próxima crónica...

para um domingo, dois poemas

Sílvia, 22.06.08
o sol

elevamo-nos solares
algum dia,
em alguma terra habitada pelas oliveiras.

tinhas as mãos cheias de mim,
aproximavas teus lábios dos meus cabelos
e me dizias tudo,
depois depositava-os nos meus ombros.

éramos o sol ,
a exaltação da vida.


pensamento

grande é o universo do pensamento
ora caminha
com pés de chumbo
rente à terra
ora tem asas
espalha-se no céu
e voa infinitamente

silvia chueire

missanga a pataco 55

d'oliveira, 18.06.08


tantos verões que ela dançou...

Ai Casino Peninsular nesses anos gloriosos em que a infância esmorece e as pernas de uma mulher nos começavam a dizer mais do que um duelo entre o Roy Rogers e vinte maus, armadaos até aos dentes.

Ai anos e anos de salas escuras, a magia do ecran, a música, a dança, Ninotchka, mil outras ninotchkas com mil outros nomes, a graça, a leveza, o júbilo o profissionalismo, a técnica, o feeling, o encantamento, o movimento em estado puro, o movimento puro, o movimento...

Uma mulher destas não morre, é impossível. Uma mulher destas é raptada por dois anjos pícaros, respectivamente Fred Astaire e Gene Kelly, e levada para um palco longínquo onde se produzirá eternamente diante dos seus pares.

Ai Cinema Peninsular, Figueira da Foz anos cinquenta, também eu dancei no escuro, no verão, levado pela mão dessa emoção feita carne que se chamava Cid Charisse.

*o título é uma homenagem a Arne Matsson, autor premiado de "Ela só dançou um Verão" (princípios de cinquenta). E este texto tem um grande destinatário, tão de luto quanto eu: o escultor Manuel Sousa Pereira, é a vida mano, a nossa e a dos nossos amigos...

SCUTS

JSC, 17.06.08
A guerra contra as portagens nas SCUTS está de volta. A comunicação social tem feito eco destas notícias. As SCUTS em causa situam-se no Litoral Norte, Grande Porto e Costa de Prata. Ou seja, tudo vias são de ligação à cidade do Porto.

É conhecida a posição do Governo em alterar o modelo de financiamento das SCUTS. Em consequência dos estudos que fez o Governo anunciou, creio que no último ano transacto, a decisão de cobrar portagens nas SCUTS que cumprissem dois critérios principais: 1) a existência de vias alternativas gratuitas; 2) que as zonas beneficiadas pelas SCUTS tivessem um produto interno bruto (PIB) igual a superior a 80 por cento do PIB nacional.

Se relativamente ao segundo critério parece que o mesmo estará garantido para o território atravessado por aquelas SCUTS, já não é certo que as alternativas existentes satisfaçam o primeiro critério, isto é, que o tempo gasto nas correspondentes Estradas Nacionais não ultrapasse em 1,3 (indicador adoptado no estudo realizado pelo Governo) o tempo necessário para percorrer o mesmo percurso nas SCUTS.

Como é óbvio não basta invocar a aplicação do princípio do utilizador-pagador para fazer recair sobre os utentes mais um encargo. É necessário que, no mínimo, se verifiquem os pressupostos, definidos pelo Governo, para que aquelas SCUTS deixem de ser de utilização gratuita.

E até já nem se fala de
outras opiniões e da fortíssima carga fiscal que recai sobre a utilização dos veículos automóveis: imposto sobre combustíveis, Imposto automóvel, Imposto de circulação, receitas que, em princípio, se destinariam a suportar a rede viária…

Diário Político 87

mcr, 17.06.08

Perder tempo

Não se deve perder tempo. Sobretudo se for a gastar velas com ruim defunto. Porém, uma vez não são vezes e o caso merece um par de linhas. A drª Pires de Lima volta a atacar. A atacar, é como quem diz. Volta ao local do crime e diz mais um par de coisas que se não estivessem escarrapachadas no jornal, ninguém acreditaria.
Comecemos pela teimosa convicção da drª Pires de Lima: insiste em não perceber que um “centro de programação”, seja lá o que isso for, de uma cinemateca teria forçosamente que passar os filmes dessa cinemateca. Em que condições? Operados por quem? E onde?
A resposta ao último item é a Casa das Artes. Exactamente o edifício anexo à transferida Delegação Regional de Cultura do Norte. Que está devoluto por alguém ter entendido que o lugar desta delegação era numa cave manhosa em Vila Real...
Só que... só que a Casa das Artes está fechada. Para obras!!! Ou melhor para obras se...
Havia, diz a drª Pires de Lima, 200.000 euros para a reparar. Havia mas não houve! O dinheiro (no ministério que presumivelmente era gerido pela drª Pires de Lima) terá ido para parte incerta. Ou seja: não foi para a Casa das Artes, eventual sede de um pólo de programação. Às tantas foi o João Benard da Costa que assaltou os cofres e fugiu com o dinheiro...
Claro que se poderia sempre pensar que se a Casa das Artes está na mesma é porque não houve vontade política de usar os citados 200.000 euros na sua recuperação. A menos que o Ministério da Cultura fosse gerido não pela ministra mas, por exemplo, pelo contínuo das fotocopias.
Mas o mais risível vem em caixa. João Benard da Costa atingiu o limite de idade durante o penoso consulado da drª Pires de Lima. Foi ela quem assinou o despacho que o manteve no lugar de Director. Todavia a drª Pires de Lima, com enternecedora inocência, vem dizer que não o queria fazer. Mas fez! Fez porque a mandaram. Ou seja andou por ali, pelo ministério a fazer coisas que não queria (e são conhecidas as suas constantes derrotas, perdão: as suas constantes vitórias até á demissão final.). tudo pelo amor da pátria. E da cultura, claro.
E terminemos com uma pérola: a drª Pires de Lima “sabe que há limitações à passagem a digital de certos tipos de película mas também sabe que...há meios técnicos que possibilitam uma mais ampla e frequente divulgação”. Ficamos sem saber que limitações, que meios etc...
Tudo isto com a mesma cantiga: a necessidade de passar filmes anteriores a 1990. Se se tiver em linha de conta que no mercado existem milhares de cópias de filmes produzidos entre 1960 e 1990; que existem bastantes cópias de filmes produzidos entre 4o e 60; e que são raros para não dizer raríssimas as cópias das décadas anteriores e inexistentes, ou quase, as do mudo, pareceria lógico que se começasse justamente por estes. Por uma questão de história do cinema e de dificuldade na divulgação. Ou não? O resto, o que está mais próximo, anda por aí a preços de saldo.
Mas isto não deve fazer parte dos conhecimentos dos rapazes que mandam para a internet petições tontas. Nem de quem subitamente aparece como sua advogada.

o cavalheiro da fotografia chamava-se Murnau. Foi autor de uma vintena de filmes dentre os quais se cita sempre, e justamente, Nosferatu. Para o caso que nos interessa aqui convem dizer que também foi autor de Herr Tartueff (1926).

d'Oliveira

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