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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Diário Político 89

mcr, 20.07.08

It’s the silly season, stupid!

Há um trecho de Eça que descreve a primeira visita dele a Fradique Mendes. O dia estava caluroso, era o menos que se pode dizer. Eça terá galgado escadas sobre escadas do hotel até chegar aos aposentos de Fradique. Este, se me recordo, mas posso estar a misturar tudo, está reclinado numa otomana a pescar morangos de um recipiente que os manteria gelados. Naquele cenário imponente e esplêndido, Eça limpando o suor com um lenço não terá conseguido dizer senão “Está de derreter os untos”...
Assim vai o dia. Com esta calorina, não há ideia brilhante que se aguente. Há que raspar na caixa dos repetidos, tentar ressuscitar algum apontamento cujo conteúdo na altura não mereceu o imprimatur do escriba.
E comecemos por essa curiosa criatura que dá por Paulo Teixeira Pinto. Agora que se descobrem as manobras do BCP, toda a gente fala (e com razão) do engenheiro Jardim Gonçalves mas conviria perguntar como no poema de Brecht (“César conquistou a Gália. Não teria ao menos um cozinheiro?...) se o ilustre membro dessa contra-maçonaria que se chama Opus Dei, estava sozinho. Não estava. Havia até uma figura bojuda que dava por PTP. Dizia-se que, além de reaccionário, era um fervente membro da “Obra”. Entre estes dois cavalheiros au dessus de tout soupçon e mais um bom par de comparsas giravam milhões de milhões. E o banco nem por isso era invulgar ou especialmente atento aos pequenos depositantes como este vosso criado. Por essas e por outras logo que abriu aqui uma agência dum concorrente transferi o que tinha para os novos.
Mas voltemos ao senhor dr Pinto. Retirou-se da “obra” e do banco. Dir-se-ia que renunciara a toda uma vida. Nem por isso. A generosidade do Senhor, cujos caminhos são ínvios, e do banco, idem aspas, proporcionaram ao nosso artista uma cómoda (é um modo de dizer: com metade já eu cantaria de galo) reforma apesar da idade. Deve ser horrível ser tão novo e ter de se reformar por invalidez. Doença terrível decerto. Só assim se percebe a reforma quando se vê por aí gente mais velho e cheia de doenças ser considerada sã como um pêro e mandada regressar à actividade.
Retirou-se e agora dedica-se ás artes em geral. Só lhe fica bem, apesar de, daqui, deste canto, ter vontade de o prevenir que as artes são, as mais das vezes, malasartes. E trazem com elas um perfume capitoso que disfarça a peçonha do inferno. E à edição. A edição está definitivamente na moda. Depois da LEYA ,temos o renascimento da Ática e da Guimarães editora que andava um pouco sonolenta. Isto agora vai ser um fartote. Vamos ter livros bons, óptimos, a bom preço, bem encadernados, melhor traduzidos, enfim, isto vai ser a biblioteca de Alexandria rediviva.
Mas mantenho: então o banco? Será que alguém vai aparecer como responsável ou estaremos perante mais um filho sem pais, coitadinho do banco?
Num país em que o primeiro ministro se desfaz em elogios a Angola, em que um condenado, (com pena suspensa) convicto de várias tropelias pelos fatigados juízes que lhe aturaram a bizarria e a grosseria, anuncia que vai continuar na política activa, tudo pode ocorrer. Como se disséssemos: tout passe, tout casse, tout lasse...
Dito isto, convirá aproveitar estes comentários, que nem refrescantes são, para mergulhar de chapa na grande discussão da temporada: o optimismo e o pessimismo nacionais. A coisa é simples: quem critica os poderes fácticos ou instituídos é pessimista. Com sorte também é estrangeirado. Estrangeirado é, desde os tempos do meu antecessor o senhor Cavaleiro de Oliveira, um insulto. Essa gente que frequenta os pedreiros livres (os antigos, não a cópia carnavalesca de hoje) e a democracia é perigosa. Põem em questão as eternas verdades lusitanas e o imobilismo atávico que as recobre. Portugal que, para o “brigadeiro” Chagas, era um torrãozinho de açúcar não deve, nem pode, ser posto em causa. E quem diz Portugal, diz a santa religião dos portugueses, o cozido à portuguêsa, o bacalhau com todos, o carnaval de Ovar, o fado e mais um par de coisas todas genuínas e muito nossas.
Se o Senhor Primeiro Ministro não estivesse no poder mas na oposição (credo!, cruzes!, canhoto!) poderia cair na tentação do pessimismo e nesse caso a Drª Ferreira Leite acusá-lo-ia do nefando hábito de frequentar gente pouco recomendável. Felizmente não é assim. As mulheres, desde Eva pelo menos, é que têm ligações ao Maligno. Os homens não. Sobretudo estes, desta nova geração, vermelhos por fora e verdes por dentro, capazes de elogiar os novos sobas do petróleo agora alcandorados à categoria de gente frequentável. E optimista, claro. Com a massa que lhes vem ás mãos até eu era optimista. Aliás, e como disse, meia reforma do dr. Pinto já me fazia feliz. E optimista.

Nota: Clara Ferreira Alves no Expresso de hoje toca em vários destes temas. Com qualidade, humor e a habitual inteligência. Apesar de este texto estar já quase todo escrito quando li o dela, há demasiadas semelhanças. Para salvaguarda minha, ponhamos que esta é uma glosa fraquinha do texto de CFA. É o Verão. E o calor.

d'Oliveira que vai a banhos muito em breve. Boas férias!

Farmácia de serviço 45

d'oliveira, 18.07.08

Sugestões para um Verão preguiçoso

O Verão (insisto em escrever com maiúscula) dá para tudo. Para a praia, para umas mariscadas (que os cidadãos estão cheios de cacau graças ao sábio governo que temos), para muita preguiça e alguma leitura. E música, claro. Quanto mais não seja para ouvir no Ipod (os cidadãos nadam em cacau etc, etc...).
Ora comecemos pela livralhada entretanto saída.
Istambul” de Pamuk. Para este vosso criado, uma das melhores obras dele. Acaba de sair a tradução portuguesa, não há desculpa.
Os amadores de história pátria e que provavelmente pouco sabem das guerras peninsulares que estejam descansados. Voltou a ser reeditado o primoroso José Acúrsio das Neves, “História geral das invasões francesas...” que Vasco Pulido Valente (Ir para o Maneta) tanto enaltecia.
A rapaziada mais dada à política pode escolher entre uma embevecida hagiografia de um primeiro ministro de oiro ou a palavra de um homem de bronze: Flausino Torres: “diário da Batalha de Praga”. Vão por este, que mais seguro. A obra foi anotada e coligida pelo neto, o Paulo Torres Bento. Os amigos da Marcela e do Zé Bento (e são ainda tantos) que como eu viram o Paulo ao colo dos pais bem que se podem babar. O miúdo tem a quem sair e sai mesmo.
Quem não tiver caído para o lado com as loas primo-ministeriais à cleptocracia angolana pode começar a tentar perceber a história daquela desgraçada colónia. E pode começar pela biografia do Viriato da Cruz que, até como poeta, era infinitamente melhor do que o finado presidente Neto A obra é coligida por Edmundo Rocha, ele mesmo um velho combatente angolano.
E dois poetas para terminar: Nuno Júdice: “Geografia do caos” e Alberto Pimenta: “Imitação de Ovídio”.
Para os ouvidos delicados das leitorinhas gentis nunca é demais propor um Sinatra (“At the Sands”) ou mais gravemente uma jóia de Gesualdo (fourth book of madrigals for five voices) ou até “secular vocal music” de um certo Sigismondo d’Italia, cavalheiro que viveu entre 1580 (?) e 1624. Ambos os discos são, obviamente, da “brilliant classics”.
Estes tipos da “brilliant classics podiam pagar-me uma avença dada a propaganda que lhes faço. Mais duas colectâneas, desta feita de jazz: “Kind of Baker” e “Kind of Getz” respectivamente do enorme Chet, trompetista de primeira água e do não menos brilhante Stan, saxofonista generoso e leal. Qualquer das colectâneas traz 10 (dez!!!) discos. O preço? Uma surpresa agradabilíssima. Nem é preciso ser rico como um português para os comprar. A “brilliant” é assim.
E uns dvd para amenizar as noites sem programa?
Se os leitores são daqueles que já estão fartos de filmes muito modernos, uma passagem pela amazon ou alapage impõe-se. Essa malta descobre filmes que mais ninguém descobre: “Été violent” (Zurlini) publicado por “les grands classiques du cinema italien”, “L’année derniere a Marienbad (Resnais), “Universal”, “A double tour” un Chabrol demasiadamente esquecido, tanto que só se consegue a referência via internet sob o nome de Belmondo e finalmente “La Chair” seguido de “L’audience” ambos de Marco Ferreri na colecção “les films de ma vie”.
Obviamente poderia indicar outros porventura mais famosos mas justamente por isso dou-vos estas dicas. Valem a pena e sempre se sai dos caminhos mais que batidos.
Incidentalmente, para ver clássicos do cinema ninguém, hoje em dia, precisa de equipamentos pesados e caros, como uma cinemateca prometida para o Porto. Vai uma aposta em como não a fazem? Ou fazendo-a não será uma cinemateca mas apenas um vago entreposto de fitas em saldo. Não será assim que se conseguirá essa coisa simples e eficaz que é (ou era) um bom cineclube. Como o do Porto. Abandonado por todos: espectadores e poderes públicos, ainda que estes últimos sejam os menos culpados. Nesta história o que mais impressiona é a generalizada ignorância dos peticionários e a incrível petulância de quem só agora despertou para as angústias cinéfilas da cidade. Há eleições à vista...

* na gravura: fotograma de "Verão violento" Trintignant e Eleanora Rossi Drago! Que bonitos!

A CRISE

JSC, 18.07.08
Como se sabe a crise foi uma coisa que, de um momento para o outro, se abateu sobre o país. Claro que tínhamos o problema do défice, mas isso não era bem uma crise. Era assim como que combater o despesismo público, que muitos até julgam ser uma coisa boa, por isso elogiam políticos gastadores mas que “fazem obra”.

Crise mesmo foi o que o Governador do BP e outros especialistas descobriram há alguns dias e com isso sobressaltaram o país. O Governo, entretanto, também deu pela crise e vai daí começou a tomar algumas medidas para esbater os efeitos.

Claro que lá fora o fenómeno já se manifestava há mais de um ano. Mas por cá nada de especial acontecia. O crédito fácil, os anúncios a incentivar férias em paraísos, a troca de carro e de casa prosseguiam (prosseguem) como se tudo fosse fausto, riqueza e facilidades.

Agora que os tempos também não correm favoráveis para a banca, a crise tornou-se mais nítida. O desemprego aumenta e a inflação também. A euribor vai galopando e as pessoas deixam de cumprir os seus compromissos com a banca, que lhes fica com os bens e desata a fazer leilões sobre leilões. Bom, isto já é crise. Concluem os sábios.

É neste contexto que os liberais se calam. Podiam continuar a falar para reconhecer a falência do mercado e continuarem a defender o não intervencionismo do Estado na economia. Mas calam-se.

É a hora dos governos darem a mão à Banca e os Fundos. Para tanto criam as chamadas linhas de crédito bonificado, que, em boa verdade, constituem o seguro de vida do próprio sistema bancário, na medida em que dessa forma podem continuar a manter a respectiva política de concessão de créditos, tendo como co-pagador o próprio Estado.

É a hora dos governos comprarem participações de capital nas grandes empresas (Fundos) ou mesmo de Bancos, evitando a sua insolvência.

Afinal o intervencionismo do Estado na economia, apesar de contrário ao princípio “menos Estado melhor Estado”, até é aceitável pelos neo-liberais, desde que se trate de injectar recursos públicos para salvaguardar o seu bem-estar e emprego. Só pode ser esta a razão para deixarem de exigir que o mercado funcione e cumpra o seu desígnio.

Missanga a pataco 56

d'oliveira, 18.07.08
O tempo, versão portuense


Há uns anos entrei na livraria Leitura e o Fernando Fernandes, esse livreiro de mão cheia e coração grande, avisou-se, assim que me viu, que tinha chegado um livro pedido por mim. Nem me dei ao trabalho de perguntar qual. Livros pedidos por mim eram moeda corrente naquela casa. Por mim e por mais um bom quarteirão de fregueses. O Fernando até dizia que nem precisava de ler a imprensa especializada. Bastava pô-la à nossa disposição e nós encarregávamo-nos de fazer a lista dos que interessavam. Claro que lia os boletins bibliográficos de fio a pavio mas isso era outra conversa.
Quando acabei de farejar as novidades, fui pelo livro chegado. Era um livro que eu já tinha seguramente há vários anos. “arterosclesose?”, perguntei-me assustado. Ó Fernando eu já tenho este livro. - Mas Você pediu-o. Tenho aqui o impresso do pedido. Esmagado por mais esta mostra da velhice galopante, saquei-lhe o papel da mão. Era um pedido com onze anos!
Aliviado, passei ao ataque num discurso longo e florido, todo em ponto cruz a gozar com uma livraria que no curto espaço de onze anos satisfazia os pedidos da clientela.
Mas o Fernando, batido nestas e noutras, raposa velha, limitou-se a responder que a livraria Leitura nunca desistia de satisfazer um pedido de um cliente demorasse o tempo que demorasse.

Ora ontem, resolvi passar pelas “Zenoficinas”, alto lugar do restauro de quadros, imagens, documentos, tudo. Se os da Zen, especialmente o Senhor Campos, não souberem, ninguém sabe.
Ia por uns diplomas do meu trisavô Ernst Richard Heinzelmann. O velho senhor, nascido nos alvores do século XIX licenciara-se em Medicina em Berlin, na Universidade Frederico Guilherme aí por 1820. Emigrara para o Brasil onde o Imperador D Pedro lhe concedera em vistoso documento uma “verificação da licenciatura”, com fita verde e branca pendente e selo em caixinha de prata. Isso e dois documentos esfarrapados da “alma mater” berlinense eram os tesouros que mandara restaurar.
O senhor Campos lembrou-se logo. Ah, uns diplomas em latim... Estão aí numa gaveta. Às vezes penso neles mas como ninguém reclama vou-os deixando para trás.
Pois considere a reclamação feita e em tom de ameaça mortal. Essa papelada está cá há um par de anos, retorqui-lhe com ar severo.
Encontrámos os papeis ainda dentro da capa que eu fizera para os guardar. O Senhor Campos jurou-me que os tem prontos antes do fim do mês. E como prova de boa fé e promessa entregou-me o canhoto da encomenda que eu buscara em vão na desordem horrível dos meus papeis. A data de encomenda? 8 de Setembro de 1992!!!

O leitor (im)penitente 38

d'oliveira, 17.07.08

Como quem vende botões a retalho

Há almas pequeninas que nasceram para a chatinagem e para estar atrás de um balcão a vender inutilidades. Bijutaria de feira, por exemplo, quando não lhes dá para o contrabando de marcas: ó menina compre-me esta camisola com crocodilo que está barata!
Não costumo frequentar este comércio de enganos e pequenez. Também é verdade que parece que a minha falta não lhes causa qualquer mossa. Raras vezes, quase nem me lembro de alguma, me solicitam para estas negociatas.
Mesmo naquilo que é a minha paixão (e perdição), a livralhada, sou pouco de feiras-do-livro e embustes semelhantes. Para ter 10% servem-me as livrarias que frequento, mormente a “Leitura” de que sou freguês depois de cinquenta anos.
Volta e meia, ao comprar mais um livro, penso no que sucederá à minha biblioteca, reunida com carinho, gosto e sacrifício. Há muito que tenho o projecto de entabular conversações com a Biblioteca Municipal Fernandes Tomás, onde entrei aos oito ou nove anos pela mão da Tia Néné e onde li centenas de livros, desde os Vernes (os que não tinha) até aos Salgaris, os Burroughs, os Twain enfim tudo o que o bibliotecário Sr Santos entendia que podia ler. Eu mesmo percorria as infindáveis vielas entre estantes, alvoroçado como um pardal em Maio, à procura de um livro. Nada mais natural do que devolver, se possível com juros, à biblioteca o que de lá tirei em alegria em conhecimento.
Não imaginam quanto me custa entrar (como hoje) num alfarrabista e dar de caras, na mesa das novidades, com uma pilha de livros que parecem vir de uma mesma e única estante. De quem seriam? Quem os vendeu? Seguramente algum herdeiro apressado e cobiçoso que espalha por um par de tostões uma fortuna, muito amor e muitas horas de leitura, de sonho, de vida.
Por isso mesmo, estou decidido: amanhã mesmo vou falar com os da Biblioteca, dizer o que tenho e propor um legado sem encargos nem condições. Eles ficam com os livros, juntam-nos aos que lá há, e os leitores que descubram as velhas publicações surrealistas, a pacientemente juntada bibliografia sobre a Expansão, a poesia do último meio século, toda em primeiras edições, o teatro, a ficção, o Borges e tantos outros no seu original castelhano, os franceses ou os italianos. Ficaria contente, se alguém, um dia, descobrisse com os mesmos maravilhados olhos o meu Quijote ou os poemas de Ritsos ou Rilke. Ou os policiais de Chandler e Camileri...
Vem tudo isto a propósito de um estranhíssimo mail recebido que me anuncia uma venda garden-party lá para as bandas da linha dos Estoris e Cascais, da biblioteca do meu velho amigo E.
É que logo que ele morreu, eu soube que as pessoas mais chegadas, desde a filha à companheira, tinham resolvido cumprir a última das suas promessas, oferecendo à cidade de Famalicão a biblioteca dele. Era, ao que sei, uma velha promessa dele, do E., movido sei lá por que (boas) razões. Os livros, terá estipulado, vão para perto dos surrealistas que lá pairam. E para perto do Camilo, já agora. E assim se fez. A biblioteca local viu-se enriquecida com uma excelente escolha de livros, alguns acabados de chegar, ou chegados já E. estava enterrado e pagos pelas doadoras (enfim pelas representantes legítimas do verdadeiro doador).
Ora agora, aparece-me, casa adentro, sem eu sequer me poder opor, um convite para uma venda de livros do E. (vem lá o nome dele, raios!).
Primeira pergunta: ignorará quem vende (cujo nome não refiro para não me irritar e ter de lavar as mãos logo a seguir) as vontades do morto e enterrado E.?
Segunda pergunta: sendo certo que a criatura agora negociante de livros & similares, não me conhece de parte alguma, nunca me terá visto, até, como é que a minha humilde direcção, aqui na província, lhe chegou à pata avara e concupiscente?
Como é que se atreve?
É que isto, o convite, a venda, a negociata com ou sem garden, com ou sem venda, ofende-me. O simples facto de alguém pensar que eu iria, sôfrego, comprar livros (eventualmente interessantes que o E. era um tipo que sabia ler –assim tivesse o mesmo tino para as companhias femininas..., mas isso são outras fantasias ) que deveriam, se houvesse respeito ou, pelo menos, inteligência, estar com os irmãos nas estantes de Famalicão?
Eu era, já o escrevi, aqui e noutros sítios, amigo do E. Amigo há mais anos dos que me apetece lembrar. Dias antes da sua morte, esteve aqui mesmo em casa, a conversar durante um par de horas, cheio de projectos. Bem nos rimos, então. Ele farejou com ares de perdigueiro entendido o cafarnaúm da minha livralhada espalhada por salas e quartos, sopesou uns tantos, invejou outros e discutiu a utilidade de algum.
Agora que está morto e apodrece nobremente, alguém vem de mansinho e à socapa vender livros que dele seriam, pelo menos é o que se alega, espalhar aos quatro ventos, o que terá sido ajuntado com amor, alguma fantasia e seguramente muita inteligência.
Que lhe aproveite! E lhe cause engulhos!
Obviamente a direcção da emitente deste mail foi cuidadosamente guardada no junk do correio. Assim, não corro o risco de ler as parvoejadas que decerto escreverá nem de ter de lavar o olho envelhecido e cansado de cada vez que um correio idêntico me entrar portas adentro sem sequer ter o cuidado (e a educação) de se anunciar. Como Camilo alguma vez disse, certeiramente: “a carta de V. foi directamente para o ventre da mãe terra pelo esófago da latrina!”. Como esta da vendinha.

* na gravura: mais uma da série "biblioteca procura casa onde caiba"

Coincidências

O meu olhar, 17.07.08

Não sei se já repararam mas de algum tempo para cá, mais propriamente a partir do momento que apareceu um investidor privado que se propôs construir uma central de energia nuclear, somos bombardeados, pontualmente mas incisivamente, com reflexões e opiniões sobre a instalação desta fonte de energia em Portugal.

Desta vez foi a propósito de, supunha eu, declarações de Vítor Constâncio. Ouvi essas declarações na TSF, aliás ocupou todo o tempo de notícias de um intercalar. Pensei na altura, mas a que propósito o Governador de Portugal se lembra de lançar esta questão… de novo? Afinal não foram declarações por iniciativa própria, supostamente, mas sim em resposta a uma pergunta de um jornalista. Todavia, como as declarações desencadearam um amontoado de reacções e reflexões e um tempo de antena assinalável, isto fez-me pensar se não teria sido “cozinhada” a pergunta. Má-língua? Talvez. Não sou propensa a pensar o pior das pessoas à cabeça mas quando as coincidências são tantas dá para desconfiar.

Au Bonheur des Dames 132

d'oliveira, 16.07.08

La guerre est finie

Esta é uma história que alguns leitores julgarão inventada. Não é. É uma história verdadeira, uma história de dignidade e de honra. Uma história de heróis desconhecidos, felizmente vivos, uma história que me (nos) enche de orgulho. E é uma história simples, como as que desde há anos por aqui venho contando.

Há uma pequena casa de pasto em Matosinhos onde de há anos a esta parte como peixe. Um peixe fresquíssimo, a bom preço na companhia de amigos. De longe em longe, encontrava lá um velho amigo, o Pimentel, figueirense como eu, estudante em Coimbra nos idos de sessenta. Olá, como estás, duas rápidas a abater, e até à vista.
Até que, há um par de semanas comecei a vê-lo integrado num grupo, numeroso e bem disposto que, vim a saber, era constituído por ex-militares na Guiné.
Sou pouco dado a grupos festivos, sobretudo a grupos festivos militares. Há demasiada dor, demasiada injustiça, demasiado sangue, atrás disso. Todavia, estava lá o Pimentel e isso contava. E conta.
Hoje, o João Pimenta resolveu ir comigo ás sardinhas. Chegámos ao restaurante e lá estava o mesmo grupo, barulhento e bem disposto. Por fas ou por nefas, o Pimentel soube que o João também estivera na Guiné. Em dois minutos, o João estava adoptado pelo grupo que o obrigou a beber do vinho que traziam, um vinho de Santa Marta de Penaguião, uma “pomada” no dizer de alguém.
Subitamente, um dos convivas dispara: nós conhecemo-nos. Era para mim. Confessei que talvez nos conhecêssemos e começou a ladainha das tentativas. Nada. Tiros na água. Às tantas pergunta-me se eu tinha estado em Nampula. Afirmativo! No colégio-liceu Vasco da Gama? Afirmativo! E o nome. Quando me identifiquei, deu um salto. O meu pai fora professor dele. E jurava que me tinha “topado” desde o primeiro momento. Raio de memória! É que se passaram 52 anos entretanto!
O grupo de ex-combatentes começava a ser um grupo de antigos conhecidos. E se bem começou, melhor acabou. Conversa puxa conversa, vim a saber que aquele ruidoso e esdrúxulo bando de “rapazes do meu tempo” se reunia semanalmente. E que agora era uma espécie de ong. Ou seja, reuniam coisas úteis, máquinas, alimentos, livros, roupa e volta meia ia tudo para a Guiné. Ou melhor, as coisas iam num contentor de muitas toneladas e eles, aquele bando de pardais reformados, ala que se faz tarde: em carrinhas, camiões e até de mota ia tudo numa revoada via Marrocos, Mauritânia, Senegal e Gâmbia rumo à Guiné encontrar antigos inimigos, antigos soldados negros que tinham servido com eles para se verem, confraternizarem e fazerem a entrega de bens preciosos recolhidos com afinco, com sacrifício, com tenacidade, com alegria. E era uma festa.
Amigas leitoras e leitores amigos: juro-vos que fiquei emocionado. E invejoso. Desta amizade, desta solidariedade, desta simplicidade. Este grupo que junta ex-milicianos e ex- soldados profissionais, desde magalas a coronéis, esta gente que se trata toda obrigatoriamente por tu, são a honra de uma tropa e de um país. Fizeram a guerra, viram morrer camaradas, mataram, perderam oportunidades e anos de vida, passaram privações e medos, sobreviveram com um par de cicatrizes no corpo ou na alma. E agora, tantos anos depois, ei-los que se empenham em ajudar a terra onde terão passado o pior da sua juventude. Com os adversários de ontem, com a esperança de hoje.
O Pimentel contava-nos estas história e já propunha ao João, voluntário no Banco Alimentar ajuda e troca de informações e experiências. A guerra dele e dos seus companheiros é agora outra: contra a fome, a escassez de tudo, pela vida. A guerra deles é agora a paz de todos.
Fiquei a pensar que este punhado de homens, todos à roda dos sessenta, fazem mais pelo nome de Portugal no mundo, ou pelo menos naquela recôndita parte de África, que dez governos pomposos e cem discursos idem.
E tendo no grupo, pelo menos dois antigos colegas de liceu, confesso que me sinto orgulhoso. De ser desta geração, dos nossos longínquos anos de juventude, da Figueira e de Nampula, deste modo de ser português.
A guerra, dizia-se no belíssimo filme que dá título a esta croniqueta, acabou. E o mundo começa de novo. Eventualmente melhor.

la guerre est finieAlain Resnais, argumento de Jorge Semprun. Com Yves Montand e Ingrid Thulin. 1966

Au Bonheur des Dames 131

Incursões, 11.07.08

Sweet smell of youth


Há dias em que as coisas nos parecem simples, luminosas e conseguidas. Como hoje. E digamos, desde já, que o dia, está mais para lá do que para cá. Há uma chuvisca impertinente, não chega sequer a ser molha-tolos, mas impede o escriba de gozar da sua esplanada favorita como gosta. E os habitués também não estão todos o que tira algum encanto a esta rotina do fim da manhã. Falta, sobretudo, o perdigueiro doido, freguês antigo e animoso que mendigava e conseguia sempre qualquer coisa dos clientes.
Todavia, não é desta manhã húmida que vinha falar mas apenas das primeiras críticas ( e elogiosas!) ao trabalho da Filipa César: “Le passeur”, instalação actualmente em exibição na “Ellipse Foundation” (cfr abaixo dois outros textos sobre o tema). Como disse, faço parte do filme juntamente com o Manuel Simas Santos, outro membro da tripulação do “incursões”. Mais do que isso, faço parte do “inner circle” familiar da Filipa. Sou amigo antigo, antiquíssimo, dos pais, os escultores Elsa César e Jaime Azinheira. Vi a Filipa (e os irmãos) crescer, acompanhei de longe a sua carreira, sou uma espécie de tio avô da Rosa L, a filhita nascida em Berlim a quem desde sempre associo o “Lied” “Röslein auf der Heiden”. Foram aliás essas as razões esdrúxulas que me fizeram aceitar ser filmado.
Sobre estas questões antigas, a batalha contra o salazarismo, o ter sido eventual “passador” de fronteira, durante os dois ou três últimos anos do famigerado Estado Novo, sempre pensei que o melhor era ser discreto. Já basta de tanta gentuça a pavonear-se por aí, pendurada num anti-fascismo as mais das vezes imaginado e silencioso. Os heróis do dia 26 de Abril sempre me pareceram mais rápidos do que o Lucky Luke, o cow-boy que disparava mais depressa do que a própria sombra.
Porém, a Filipa insistiu e insistiu. Em boa hora o fez, os deuses sejam louvados, que o resultado está aí para ser visto por quem se quiser dar ao trabalho de ir até à fundação já citada. E a merecer quase três páginas no “ípsilon”, suplemento cultural do “Público” de que já aqui disse algum mal (eu não entendo como é que num mesmo suplemento se junta tudo a trouxe-mouche, ornando a leitura penosa, complicada e sobretudo, porque o espaço é escasso, deixando muita coisa de fora. No entanto, desta vez há o milagre de duas criticas ocuparem o melhor de 3 páginas!...) que ao meu jornal favorito não perdoo nem uma gralha.
Confesso que me comovi ao ver o filminho (são 34 minutos, uma cagagésima parte do que nós quatro debitámos diante de uma camera atenta, sensível, encorajados pelo ar doce da Filipa e, no meu caso, pela frenética actividade de duas gatas novas para quem aquele estendal de fios era uma tentação absoluta): 2 ecrãs, num o rio corre alegre e inocente sem desconfiar dos dramas que se desenrolavam nas suas margens. Aquele riacho conheceu contrabandistas de café, refugiados da guerra de Espanha e dezenas de jovens portugueses que passavam a salto para fugirem à polícia, á guerra ou ás duas coisas ao mesmo tempo. No outro quatro pessoas de meia idade (uma mulher e três homens), contam tranquilamente a sua implicação cidadã e modesta na aventura de apoiar, proteger, transportar estes fugitivos desde o Minho até à Galiza. Ou, num contado caso, até Bilbau. A realizadora captou-lhes um “brilhozinho no olhar”, muita nostalgia, muita cumplicidade e – atrevo-me – alguma tranquilidade de quem cumpriu um dever de cidadania. Mas, eu estou lá dentro, não consigo ter distância. Se fosse apenas o facto de conhecer a autora, a dificuldade não seria grande. Exerci de crítico as vezes suficientes para não me deixar vencer por amizade, mas desta vez a coisa fiava mais fino. Muito mais fino. Felizmente, duas críticas, que não conheço de parte alguma, permitem-me romper o silêncio. E garanto-vos que isso me faz um bem danado. Estou feliz por mim, pelos meus amigos e, sobretudo, cela va sans dire, pela Filipa. E pela Rosinha, Röslein Röslein rot auf der Heiden...

Este texto vai para Cândida Laurinda Alves Simas Santos, “passadora” de fronteiras que hoje faz anos. Que os repita por muitos e bons.

Na gravura: ilustração de Christine Künzel sob o poema de Goethe que, aliás, está musicado por Schubert. Bons padrinhos, Filipa, bons padrinhos...