Testemunho
Nas semanas que antecederam o 25 A vivia uma vida estranha. Era advogado, tinha uma larga cópia de clientes “políticos”, fazia, com três amigos, “passagens” de desertores ou de fugitivos políticos pela fronteira de Melgaço, distribuía as publicações da “centelha” uma editora militante e carregada de livros proibidos, conspirava dia e noite e sabia que estava na mira policial. Já fora preso várias vezes por períodos que já pesavam bastante, tinha contra mim um processo a aguardar melhor prova e todo o meu correio era censurado. Em meados de 73 fora, mais uma vez, convocado à sede da DGS (pseudónimo marcvelista da PIDE) e saíra de lá graças a um inspector a quem inadvertidamente uma vez, numa frequência na faculdade, passara o ponto. O homem, agradecido, lá me livrou daquela mas eu sabia (e sei-o hoje, por consulta aos 11 processos de que fui alvo pela pide) que o meu futuro próximo passava por uma estadia de maior duração na cadeia.
Paralelamente, a mina vida sentimental estava encalhada.
A percepção dessa situação tornou-se tão nítida que comecei a estudar seriamente a hipótese de me exilar.
Tinha a meu favor o estar já licenciado, possuir um passaporte e estar livre do serviço militar. Acrescente-se a este excelente panorama um outro factor de peso. Fizera, depois, de concluída a faculdade, o Curso Superior de Direito Comparado. Graças aos conhecimentos e amizades aí travados, conseguiinteressar algumas pessoas, nomeadamente a Secretária Geral da “Faculté Internationalle pour l’Einsegnement du Droit Comparé”, Madame Regina de Sollá y Canizares, que me prometeu um pequeno lugar na estrutura da organização. O salário era modesto mas pelo menos dava para dormir e comer. Por outro lado, o Professor Robertson, com quem fiz a cadeira de “Direitos Humanos” propunha-me um outro emprego na Comissão de Direitos Humanos em Estrasburgo. E, para coroar o bolo, o Professor Doutor Ferrer Correia garantira-me (graças também às recomendações dos Professores Orlando de Carvalho e Carlos Mota Pinto) que tudo faria para que a Gulbenkian a cuja direcção já pertencia me desse uma bolsa para um doctorat 3eme cycle.
As dificuldades eram apenas de ordem familiar: os meus pais já tinham o o outro filho exilado e tinha de resolver o problema de um casamento falhado. Sabia perfeitamente que do outro lado a vida não era só rosas mas o sufoco que sentia cá começava a ser insuportável.
Tomei a decisão de partir definitivamente perto da Páscoa de 1974. O pretexto seria a sessão de primavera da Faculdade de Direito Comparado onde, entretanto, sigilosamente, me inscrevi. O Doutor Férrer Correia conseguiu-me a respectiva bolsa e a Faculdade garantia-me um alojamento, refeições e todos os direitos de inscrição.
Uma única pessoa estava ao par desta minha disposição: um amigo antigo, Rui Feijó, que discutiu com amizade, bom senso e ternura este meu passo. E, mais do que isso, garantiu-me que explicaria a minha decisão, a duas ou três pessoas com quem não me atrvi a falar, entre elas o meu sogro, Jorge Delgado, que ainda hoje considero e venero.
73 passou e em Janeiro e Fevereiro de 74 fui planeando a minha saída. Não contava, porém, com o golpe das Caldas. Nessa altura, um dos colegas de escritório, que entretanto fazia a tropa no Porto, deu-me a conhecer as conspirações militares em curso. E sabendo, por portas travessas, das minhas habilidades de passador, requisitou-me amavelmente para a rodada seguinte da revolução. Fui encarregado de arranjar uma flotilha de carros e respectivos condutores para levar para a fronteira os conspiradores no caso da coisa dar para o torto.
Claro que estou a resumir, muito, muitíssimo, essas semanas exaltantes de preparação do 25 de Abril. Ele também não se descozia demasiadamente, mas o pouco que ia adiantando era de tal modo embriagador que, num ápice, adiei os meus projectos de exílio imediato. Ao fim e ao cabo, dizia a mim mesmo que ou ganhava e ficava, ou partia com os meus clientes. E mesmo que já não fosse exactamente um rapazola (tinha 33 anos feitos...) o simples cheiro da revolução no ar dava-me asas.
Arranjei o grupo que me pediam e que, por mera justiça, refiro mais uma vez: Maria João Delgado, então ainda minha mulher; Teresa Feijó, uma boa amiga, corajosa e que já dera provas ao esconder com o risco que se sabe, o meu irmão em casa dela; Rui Feijó, membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, antigo membro da “rede Shell”, dono de uma quinta onde muitas vezes se refugiaram perseguidos políticos. Como suplente, contava ainda com o meu sogro, Jorge Delgado, antigo militante do PCP e responsável político que também estivera anos na cadeia.
Como facilmente se perceberá, não convinha alargar este grupo, por várias razões. Segurança, em primeiro lugar. Depois, cinco carros a chegarem a um ponto de passagem de fronteira, conhecido pelos locais e pelos contrabandistas já era um risco forte. Finalmente, do lado dos revolucionários também não era de prever que houvesse uma multidão ansiosa por fugir. Prevíamos que a nossa clientela não ultrapassasse a dúzia, pelo menos para uma situação radical qual seja a de passarem a salto para Espanha e daí, se fosse caso disso, serem por nós transportados até perto da fronteira francesa.
Como é da história, o golpe correu ainda melhor do que se esperava e nós os cinco ficámos do lado de cá da História. Ainda bem, devo dizê-lo, que nestas coisas entendo sempre que o razoável é inimigo do óptimo. Estivemos na brecha, divertimo-nos, entusiasmámo-nos, conseguimos o queríamos e bonda. Puta que pariu as condecorações e os heroísmos inúteis.
Até à sua morte, o Rui telefonava-me logo pela manhã do dia 25 e começava sacramentalmente: Olha lá, valeu a pena, não valeu? E eu respondia invariavelmente, que sim, que valera a pena e que se fosse preciso, recomeçaríamos. Depois caíamos numa daquelas conversas de bica aberta que terminava mais cedo ou mais tarde numa almoçarada.
Hoje, ontem, aliás, que já passou a meia noite, recordo com saudade e alegria o Rui (e o Jorge Delgado) que estavam dispostos a prescindir de comodidades e a arriscar muito, quase tudo, por uma ideia e um gesto.
Não é este o mundo com que sonhámos, não é esta a vida que, na noite e no desassocego, nos obcecava. Mas estamos melhor do que nesses meus primeiros trinta e três e naqueles primeiros sessenta anos destes dois heróis desconhecidos.
É por isso que me entristecem, me indignam, me repugnam certas atitudes e palavras de quem, ao que parece,faz tábua rasa das diferenças entre viver livre ou viver com medo e sem esperança. A luta política, sobretudo se feita a partir de equívocos, meias verdades, fuga às responsabilidades, comuns e pessoais, não pode, não deve, ser pretexto para atirar fora a água do banho com a criança dentro. Por muito que pese a Vasco Lourenço, a Mário soares ou a Manuel Alegre, o 25 A não tem donos. Os senhores associados da25A, nada seriam sem os seus soldados, nada seriam sem o calor popular e, desculpem-me lá, demoraram muito tempo a perceber que o país estava doente. Os senhores exilados nunca estiveram sozinhos lá fora. Daqui iam continuamente notícias apoios de toda a espécie e aqui se praticavam diariamente actos concretos contra va ditadura que os espulsara. Muito boa gente, cá, foi sendo espancada, privada de emprego, presa por defender aqui, sem testemunhos internacionais, sem simpatias internacionais, sem campanhas internacionais, o que eles defendiam honrosamente lá fora.
À memória de Jorge Delgado (“Sérgio”, na clandestinidade) e de Rui Feijó, cidadãos do mundo e da liberdade,
Por mcr,( “Vargas” num tempo longínquo de que não tem saudade) em Lisboa aos 25 e 26 dias do mês de Abril
A gravura: fotograma do filme "A estratégia da aranha" de Bertolucci: o herói, que será vitima dos fascistas, desafia o poder destes dançando ao som da "Giovinezza" hino sagrado dos fascistas italianos. Bravata e coragem num filme belíssimo que ainda não foi editado em cd. Se alguém tiver uma cópia noutro suporte faça-me o favor de ma emprestar para eu o poder gravar