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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

a varapau 22

d'oliveira, 30.07.15

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(A política em férias 3)

mons parturiens

 

(declaração de interesses: nunca fui apreciador do senhor Marinho e Pinto que, felizmente, não conheço pessoalmente. Sempre me pareceu vaidoso, espalhafatoso, tonitroante e, acima de tudo, medíocre. Razões conjunturais fizeram-no Bastonário. Parece que ele se tomava por “tribuno da plebe” e que uma certa plebe profissional acreditou nisso. Mesmo quando a causa era boa, ele, com um discurso verboso e grandiloquente, conseguia tornar a coisa ridícula ou destemperada. Sobradas razões para entender que a criatura além de excessiva era balofamente desinteressante).

O senhor Marinho e Pinto, actual deputado europeu vai concorrer, com partido próprio, acabadinho de fazer, às legislativas. Convém relembrar o seu sinuoso percurso político logo que se acabou a sua carreira de bastonário.

Nada tenho contra o facto de, enquanto, representante da Ordem dos Advogados, ele perceber uma elevada quantia como honorários. Estava longe da sua residência e, sobretudo, do seu escritório de advogado. Mesmo que, como é tradicional fosse compensado pelas deslocações, aceito sem grande resistência que se fizesse pagar. Claro que, deveria ser entendido que a remuneração do bastonário deveria corresponder à média dos últimos anos de actividade (obtida pela declaração de IRS) majorada numa percentagem que nunca deveria exceder os 25%.

Corre por aí que M e P recebia cerca de 6.000€ mensais o que ou pressupõe uma lucrativa carreira jurídica anterior ou um exagero. Consta igualmente que terá recebido da Ordem uma quantia que não será assim tão pequena para se reintegrar na vida de todos os dias.

Surpreendeu-me, como a uma maioria dos portugueses, que, em 2014, ele aceitasse candidatar-se pelo Parido da Terra ao Parlamento Europeu. Mas aceitou e foi eleito.

Da sua carreira em tal areópago pouco há a dizer excepto que ele se indignou com as quantias (absolutamente excessivas, segundo o próprio) pagas aos deputados e com o pouco que no PE se faz (segundo declarações dele, novamente).

Todavia, longe de se demitir persistiu e persiste no cargo, recebe com evidente desgosto as vultuosas verbas já denunciadas e desconhece-se a sua actividade em tal câmara. Vê-se que é uma pessoa talhada não direi para altos voos mas pelo menos para ingentes sacrifícios...

Logo que M e P se apanhou em Bruxelas largou o partido onde apanhara boleia para lá chegar e, em menos de duas avé-marias, criou outro, à sua imagem e semelhança com que pretende concorrer às legislativas. Nisso foi ajudado por Eurico figueiredo, irrequieto e desastrado político que não pára em sítio nenhum nem sequer no recentíssimo partido que já abandonou entre lamúrias indignadas e acusações que me não custa aceitar.

Nesta curta, recente, mas vertiginosa. carreira política já nada me espanta ou, melhor: só me espanta que M e P não se candidate à Presidência da República. Ao fim e ao cabo já por lá anda outro neófito da política, o senhor Nóvoa cujos predicados na matéria são desconhecidos, bem como desconhecida é a sua experiência política seja em que capítulo for. (Nem sequer se pode gabar de uma curta estadia na cadeia de Caxias enquanto estudante ou de uma episódica passagem pelas fileiras do PCP, tudo coisas muito juvenis e sem consequências).

Entretanto nem o parlamento de cá nem o outro da Europa conseguem responder a estas simples questões: pode uma criatura eleita pelo partido A criar outro, mantendo todavia as posições conquistadas enquanto membro do primeiro? Afinal em que votam os cidadãos, no partido como parece decorrer da votação em lista, ou nas pessoas que individualmente a compõem? E onde pára a ética nisto tudo?

Um velho amigo, ao comentar esta façanhuda personagem, sustentava uma tese tão curiosa quanto coerente: num país abalado pela crise económica, falho de segurança, desconfiando da sua identidade, incapaz de se reencontrar no punhado de antigos valores que a insensatez reinante expulsou como velharias, o que “está a dar” são estes epifenómenos do Entroncamento. A gritaria substitui a argumentação, o descaramento passa por audácia e a verborreia substituiu o discurso político.

Espera-se que os portugueses, num milagroso sobressalto político e de bom senso, afundem nas urnas este excessivo destempero eleitoral. De vez em quando as montanhas parem ratos...

* na gravura "mons parturiens" encontrado na net 

 

 

a varapau 21

d'oliveira, 28.07.15

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(a política em férias 2)

Estrelinha que a guie...

 

Anda por aí uma criatura doutorada (Jesus, Maria, José!!!) que dá por Estrela Serrano.

Apesar do título académico, das funções que ocupa, a referida senhora, tal qual Homero (raio de comparação!...) por vezes dormita. Ou vomita.

Desta feita aproveitou mal uma ocasião em devia ter ficado caladinha. Já não digo por elegância mas apenas por educação se é que ela sabe o que isso significa.

Ocorre que o senhor Passos Coelho (pessoa que nunca me mereceu carinho, como sabem os que me aturam) é casado com uma senhora cujo nome desconheço mas que tem origens guineenses e sofre de cancro.

Raras vezes a vi com o marido. Consta que ambos decidiram manter a sua vida conjugal fora das luzes da ribalta política, o que é quase um milagre.

Todavia, justamente por ter família e amigos na Guiné e/ou Cabo Verde, terá condescendido (ou querido) acompanhar o marido a tais terras. Talvez as saudades a roessem, talvez o cancro lhe desse umas tréguas nos trópicos, enfim talvez lhe apetecesse, pura e simplesmente.

A senhora lá terá entendido (e, a meu ver, fez bem) que não valia a pena ocultar um dos efeitos mais desagradáveis do cancro: a perda de cabelo.

E apareceu, na Guiné, longe dos holofotes portugueses, de careca corajosamente à mostra.

Sem perucas ridículas, sem um lenço, que pouco esconde, apareceu na sua actual circunstância. Uma mulher que tenta vencer o seu cancro e que, só por isso, merece se não a nossa simpatia pelo menos o nosso respeito.

A senhora Serrano que devia estar num mau dia, resolveu opinar sobre este fait-divers que teria passado razoavelmente despercebido à maioria os portugueses, afirmando que a passageira alopecia da senhora Passos Coelho tinha evidentes fins políticos (notoriamente reaccionários, claro) de ajuda à campanha eleitoral do marido. Isto que, em si, já é ridículo e passavelmente pouco inteligente, acaba por ser infame.

Não se pede à senhora Serrano piedade, compaixão, respeito pela doença alheia como não se pede ao pilriteiro que, em vez de pilritos, dê coisa boa. Pede-se, porém, inteligência coisa de que o seu artigo sobre a mulher de Passos carece em alto grau. As reacções, e foram muitas, mostram à evidência que o escrito da criatura acertou na água, melhor dizendo na fossa de onde nunca deveria ter emergido. Por várias razões: criou uma onde de repúdio pela sua tola crueldade; tornou pública ou publicitou ainda mais o que andava pela esfera do não comentado, do silenciado e, finalmente, criou ao PS mais um problema que Costa não merece.

A política em férias tresanda. Como o artigo da senhora Serrano.

Como dizia Camilo, espera-se que tal escrito “passe ao ventre da mãe terra pelo esófago do esgoto” (ou da retrete, já não me lembro bem da palavra exacta nem isso, dado o tema, tem grande importância)

*na gravura: fotografia recolhida na internet e que não corresponde à senhora Passos Coelho.

a varapau 20

d'oliveira, 27.07.15

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(a política em férias 1)

Nem inteligência nem senso

Uma criatura que dá por Ascenso Simões apelou na sua página de face book a uma espécie de boicote do senhor Passos Coelho. Pelos vistos, este segundo cavalheiro, submeteu-se uma entrevista que, depois, era anonimamente pontuada. A coisa já, de si, parece (e padece) de uma parvoíce supina: umas criaturas sobre as quais nada se sabe (nem sequer se estão a ver a entrevista!...) dão-se ao trabalho de pelo telefone porem uma bola preta ou branca, ou algo no mesmo género no que vai sendo debitado pelo entrevistado. Fora o facto de, eventualmente, existirem, nada sabemos do seu interesse, da sua capacidade de avaliação, da sua honradez na mesma tarefa. Nada!

Como método para auscultar a opinião pública isto vale zero e permite toda a espécie de truques e vigarices.

Ora Ascenso que deve ter muito pouco senso, entendeu apelar aos amigalhaços para estes arrasarem a entrevista de Passos Coelho. A honestidade do método para desqualificar um adversário político está recolhida no fundo de uma fossa séptica. Todavia, além deste pequeno pormenor que reduz a ética política a um escarro, temos que é de uma estupidez total fazer a coisa assim, às claras. Ou às escuras que é uma mera espertalhice.

Ou seja, a batota evidente que a tonta emissora de televisão irá acompanhando minuto a minuto, nem sequer serve o partido do senhor Ascenso. Pode, até, ser contraproducente: inspira confiança num resultado futuro a partir de dados falsos.

(à parte: recordo que nas vésperas do terceiro mandato de Cavaco como primeiro ministro, estava de férias em moledo e num encontro de amigos em casa do escultor José Rodrigues, este me oerguntou se eu acreditava num bom resultado para o PS. Respondi-lhe que tudo me levava a pensar que seria já uma incomparável felicidade retirar a Cavaco a maioria absoluta. Um amigo comum, com importantes funções no PS, interveio afirmando ao boquiaberto José Rodrigues que eu além de pessimista crónico estava, no caso em apreço, absolutamente enganado. O PS, afirmava o meu amigo Alberto, ia ganhar. Só não podia afiançar uma maioria absoluta mas não a tinha por especialmente improvável. Entre o político no activo e esta humilde criatura, o Zé nem hesitou: acreditou piamente no primeiro. O resultado como se sabe, foi uma “banhada” ainda mais dura do que a anterior derrota. E Cavaco governou mais quatro anos numa total e bonançosa tranquilidade. O meu amigo Alberto tinha acreditado numas embaladoras pseudo sondagens e na complacente auto-cegueira dos que vivem em circuito fechado).

No caso deste Ascenso, que deve querer ser o Miguel Relvas de Costa, temos duas coisas: a patetice de publicitar um truque manhoso, melhor dizendo uma falcatrua, e a falta de senso comum de acreditar que uma campanha de sinais vermelhos significa qualquer coisa.

A isto, além de burrice catatónica, chama-se politiquice grosseira. A política anda em férias e o bom senso idem.

au bonheur des dames 408

d'oliveira, 17.07.15

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“Boyards Caporal”, papier maïs

Outros tempos, claro. Quarenta anos a menos ou coisa e tal. Em Paris, já com o cacau suficiente para poder dormir num hotel mais que duvidoso e comer em bistrots baratos no quartier latin, em les Halles, ou nas pequenas ruas de St André des Arts.

Um Paris onde ainda havia as livrarias “la joie de lire”, e “Globe” e uma caterva de outras, algumas exageradamente militantes e outras definitivamente “literárias”, o que em certos casos, entre nós, roçava o insultuoso. E o milagre da Gibert, quatro andares de livros com muitos em saldo. Outro mundo, outro tempo, outra idade (a minha) outra, e mais séria, ingenuidade.

Sobre tudo isto, o Harakiri depois hebdo, depois Charlie hebdo. Eram ainda os anos de de Gaule, depois os de Pompidou.

Paris era uma festa (quem disse isto?). No “boul mich” e arredores podia ver os filmes que cá me negavam, havia a cinemateca, oh a cinemateca!, a cinemateca do Henry Langlois, os mitings na “mutualité”, cafés barulhentos cheios de fumo, ainda se podia ir à “closerie des lilás” sem ficar definitivamente teso e, na volta, sempre à pata, ir espreitar “L’Impensé Radical”, uma livraria pertença de um grego (o Luc Thanasekos) que, além do mais, vendia jogos extraordinários , como o “go” e o “awari”. E, obviamente, os textos de Sun Tzu, o estratego. E, milagre, ou nem isso, os “Textes Libres” de Wolinsky.

Ainda hoje, muitos anos depois, aquela rua, fronteira do Luxemburgo, quase paredes meias com as casas de d’Artagnan e de Athos, a rua Medicis, é o lugar ideal para viver. Ai se me cai o euromilhardas, nem hesito: avião para Paris, táxi para uma agência imobiliária e salta um apartamento na rue Medicis, aqui para a mesa do canto. Pouco me importa se já não a gozarei muito tempo. Nesta idade, um gosto é mais importante que seis vinténs, mesmo se cito o Maugham um tanto ou quanto livremente.

Maugham, justamente, que nesses anos começávamos a dizer que não passava de um inglês snob, Maugham o extraordinário autor de “Chuva”, de “O fio da navalha” e outras obras que agora voltam a aparecer nimbadas de melancolia e aureoladas de novidade!

 

Nessa época, eu só carburava a “Boyards” (papier maïs), uns cigarrões amarelados, o tal papier, sem filtro como mandava a boa regra, tabaco preto que tornava os “Gauloises” e as aristocráticas “Gitanes” umas mariquices...

A primeira vez que levei um Boyard à beiça, quase que cuspi meio pulmão. Depois, nunca mais os larguei até que, de regresso à pátria madrasta (e “lugar de exílio”, ah Daniel Filipe, que falta fazes!...), o preço, via importação, se tornou incomportável. Foram sofrivelmente substituídos por “Ducados”, comprados num contrabandista da rua do Rosário e, mais tarde, quando também esse mercado se fechou, fui degradado enquanto fumador para uns pobres tabacos nacionais que, juro, sabiam a barba de milho ou pouco mais.

Tudo isto, esta viagem à bolina porquê? Pois por várias coisas, todas juntas, desde o ataque ao Charlie até à morte do Zé Portocarrero, um dos últimos amigos, grande amigo, que fiz. A gente faz os amigos na infância, na adolescência, depois na faculdade, e mais raramente até meados dos trinta anos. A partir daí a coisa torna-se difícil, quase impossível. O Zé P aconteceu-me já nos anos 80, quando os quarenta já me tinham soado e as ilusões, muitas, começavam a desfazer-se perante os embates duma realidade que eu não apreciava. Que nós não apreciávamos.

A democracia é uma coisa óptima mas a nossa veio de supetão acompanhada pelo novo riquismo de uma classe emergente, ou de várias e diferentes classes emergentes, para quem o dinheiro rapidamente conseguido tinha, pensavam, a virtude da eternidade. Era como o bíblico maná: caía indistintamente sobre a gente mesmo se, para tal, esta nada tivesse feito e, muito menos, merecido.

E, com a democracia, veio a diabolização de tudo o que a antecedia. A herança de Salazar, enfim o que passava por tal mesmo se viesse de mais longe, foi rapidamente postergada mas com uma agravante: derrubaram-se os emblemas mas permaneceu o essencial com tudo o que isso significava de afunilamento social e político. Claro que isso não deixava de ser previsível: subitamente, uma semana depois do 25 A, o 1º de Maio enchia as ruas com as maiores multidões que o país via desde há muitos anos. Afinal toda a gente era antifascista desde a barriga da mãe, e Portugal passava de país reacionário a país progressista sem apelo nem remédio. Senhoras que escreviam ao velho ditador cartas de arrebatada paixão nacionalista, passeavam-se agora de punho erguido enquanto os maridos e filhos substituíam o seu cartão da União Nacional por outros apropriadamente recomendáveis e absolutamente democráticos.

Assistíamos a isso (e a tudo o resto, que não era pouco nem inocente) primeiro pasmados, depois horrorizados. A rua pertencia a quem berrava mais alto e o parlamento (ou o que tentava ser parlamento) encolhia-se aterrado. Andámos assim largos anos a protestar europeísmos pela voz do dr Soares que o era convictamente e de outros que só queriam a boleia da Europa para encher o bolso fundo (sem fundo, mesmo).

Lá fora o comunismo falecia sem sobressaltos especiais, o socialismo versão “mon ami” Miterrand ia-se esvaziando e os conservadores, reciclados pelos altos e baixos da História post Maio 68, aproveitavam a lição enquanto a Esquerda dormitava.

Era disto que falávamos o Zé e eu, e mais uns quantos, quando nos reunimos no apoio ao Bochechas para a Presidência da República. Quando o cavaquismo começou a dar de si ainda acreditámos que Guterres era a resposta. Não foi, mas antes isso que o cavaquismo versão Nogueira. À passagem do século já eu deixara de fumar enquanto o Zé continuava a dar ao pulmão como um desesperado. Amigos morriam antes do tempo mesmo sem fumar. As esperanças num país diferente também não estavam lá muito viçosas. O Zé, mais apocalíptico, tendo vivido na Bélgica nos anos de estudo, estranhava o sossego com que se ia gastando mais do que seria de esperar num país que se desindustrializava e sem recursos visíveis. Fora toda a vida um gestor com êxito e não compreendia a lógica do investimento a todo o custo em infra-estruturas de duvidosa rentabilidade.

Outro Zé (que não fumava, o Zé Valente ria-se dele mas, depois, dizia-me: “aquele diabo tem uma boa dose de razão”. Morreu, também, ainda mais novo que o Portocarrero, num ano negro que começou com a morte do Pedro Sá Carneiro Figueiredo e acabou com a do Fernando Assis Pacheco. Duma assentada perdia eu três amigos do peito, amigos feitos no antigamente, ou quase. Quando, agora, olho para trás saltam-me ao caminho três dúzias de fantasmas amados como a dizer-me “estamos à tua espera, que é que ainda aí fazes a perder tempo e a aturar o Passos Coelho e o Costa, para não falar nos rapazes e raparigas muito radicais e mais ainda muito ignorantes?”

Deixei de fumar há uns bons vinte anos. Não por susto, ameaço, fragilidade financeira ou pulmonar. Foi por aposta, raios me levem, por uma estúpida aposta com um outro amigo que lhe carregava forte e feio na “erva”. O sacana aparecia-me em casa, marchava para a varanda e zás!, aprimorava um tubo (aquilo não era um cigarro, era algo de monstruoso) numa mortalha de papel zig-zag e dava-lhe ao pulmão com uma ânsia e um gozo que só vistos!

“mcr”- dizia-me, “não sejas possidónio. Isto é muito melhor que esse tabaco malcheiroso que metes à goela e faz menos mal. Nisto de esfumaçar o vicioso és tu”

Às tantas, irritei-me, e dclarei que ia fumar não digo o último mas o primeiro dos últimos igarros da minha vida. Em mês e meio de sacrifício, de cigarros acesos, logo cortados depois da primeira e voluptuosa aspiração, reduzida a ração de paivantes a uma meia dúzia diária, fumados como disse, a prestações com o auxílio de uma tesourinha que trazia comigo, dei comigo em Cascais depois de uma sardinhada sem cigarros. Tinha-me esquecido do maço em casa. Fica para depois do lanche, decidi. À hora do lanche, adiei para depois do jantar. Batidas as nove da noite, decidi que era para o dia seguinte e até hoje.

Durante uns tempos, o mundo andou zangado comigo, ou eu com ele, nem sei. Durante um largo ano, trouxe sempre comigo o maço deixado a meio. Quando aquilo apodreceu por desuso, comprei outro que nem abri. Apodreceu também. Entretanto eu sonhava com cigarros. Com um cigarro depois do primeiro café da manhã, com outro depois do segundo, do almoço, de uma cervejola, sei lá de que mais.

Durou anos este sonho concupiscente.

Subitamente desapareceu e começou o pesadelo: recomeçara a fumar! “Ora porra!”, dizia com os meus botões, “lá estou eu outra vez pendurado numa pirisca”.

Quando o governo decretou o fim do tabaco em recintos fechados fui entrevistado por uma televisão. Para espanto do jornalista, que esperaria um sermão e missa cantada sobre os malefícios do tabaco, eu declarei que era contra a medida. Sou contra os governos que se pretendem substituir aos nossos pai e mãe.Que querem o nosso bem mesmo que nós o não queiramos. Que depois hão de querer pensar por nós, fornicar por nós (ai a palavra fornicar não vale nem meia foder, sequer um quarto!) respirar por nós, votar por nós, escolher por nós.

E é isso que, já meio velho , meio imprestável, vista cansada, barriga a descair, cabelos ainda muitos mas brancos, me faz, apesar de tudo, correr, melhor dizendo andar apressado, escrever num blog para leitores anónimos, sorte a deles que não vêem a carcaça que estas vai dedilhando numa esplanada com vistas para um jardim onde correm mais cães que crianças, seguidos por donas que os anos (bastantes) não pouparam especialmente (ah onde estão as raparigas de outrora, as jeunes filles en fleur, que eu se não sou Proust sou pelo menos Marcel, e ao contrário do velho génio -que li pela primeira vez, numa cela em Caxias sur mer – ainda penso que “a boi velho, erva tenra” mesmo se as emoções próprias de um cavalheiro irremediavelmente lúbrico se passem mais na cabeça do que noutras e mais pudendas partes).

E tudo isto, a praia, o Verão de Buarcos, a minha oisive jeunesse, os tempos duros mas puros, as utopias ingénuas e desrazoáveis, os “Boyard papier mais” e uma longa teoria de amigos perdidos, Lourenço Marques antes de ser estupidamente Maputo (que é um rio ou, caso insistam, uma região a mais de cem quilómetro a sul, cujos régulos preferiam Portugal à Inglaterra por várias e boas razões entre as quais avultava o facto de sermos menos cabrões que os ingleses; Lourenço Marques era conhecida nas línguas vernáculas da região por Xilinguine mas isso não convenceu o medíocre Samora que, além do mais, era ignorante) veio-me de repente à memória quando como num sonho via desfilar o Luis Neves, o Faria, os dois Zés, o Assis, os dois Alfredos (Fernandes Martins e Soveral Martins) o João Quintela, o Zé Leal Loureiro, o João Bilhau, o Manuel Pina, o Carlos Cruz, o António Manso Pinheiro, o Eduardo Prado Coelho, o Rui Lucas, a Manuela Sinde, o Orlando Bretão, o Rui Feijó algumas – e, permitam-me. anónimas - mulheres amadas, enfim uma multidão amável, alegre, inteligente a quem devo tudo ou pelo menos muito. Abençoados sejam onde quer que estejam.

E, já agora, gostaria de lhes juntar a memória grata e feliz, de um leão de peluche zarolho, de um carrinho de pedais vermelho, de um canhão miniatura que disparava balas de borracha, de uma lanterna mágica, das condecorações do avô Manuel Curado que fez todas as guerras possíveis de África (até a dos Dembos, aquela que alguém batendo com o toco de um braço perdido na mesa, dizia que fora maldita entre as malditas?, Até essa, claro). De todos os objectos mágicos da infância só sobrevive a espada do avô e também do meu pai, mais tarde. A quem a deixarei para que cuide dela, a limpe com os produtos adequados a uma arma que já leva mais de cem anos na família?

 

Estes dias que passam 332

d'oliveira, 15.07.15

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Em que ficamos?

Em que não ficamos?

 

O sr. Tsipras assume “ as (suas) responsabilidades por...qualquer erro cometido. Assume a responsabilidade por um texto em que não acredita e que só assinou para evitar o desastre no país”.

Tudo isto que já não é pouco vem escarrapachado no editorial do “Público”. Quem o assina esqueceu-se (?!) de uma outra declaração que corre as televisões de todo o mundo, até a portuguesa. Tsipras, sempre ele, sempre inspirado, declarou que em Bruxelas foi alvo de “sufoco e de chantagem”.

Deixemos de lado a acusação aos restantes colegas que já tinham sido elegantemente acusados de “terrorismo” pelo sr. Varufakis.

Na saída da reunião onde conseguiu (diz ele) evitar o desastre (coisa que ainda não está provada), não foram estas as palavras do Primeiro Ministro grego. Nem de perto nem de longe.

Tenho a vaga impressão que Tsipras pensará que na “Europa”, entre os barbaroi (os que não falam grego) ninguém percebe a sua língua materna (mesmo se esta já está, e desde há muito, muito afastada da língua de Demóstenes ou de Péricles). Confiando no analfabetismo dos restantes comparsas, Tsipras, em chegando a casa, sacode o pó da viagem, calça as pantufas e reponta contra os malandros que só querem a perdição do Syriza, dele e dos gregos.

Um par de criaturas muito suas afeiçoadas (e refiro-me a um ignoto Carlos César, cuja pujança intelectual ou política desconheço, e ao ex-deputado europeu Rui Tavares que hoje mesmo apela para uma quinta ou sexta ou enésima Internacional que finalmente nos levará aos “amanhãs que cantam” numa “sinfonia” de boas vontades, solidariedades, juras de amor, generosidades à “Europa” (a dele, claro) construída sobre os cadáveres obscenos dos mafiosos que assaltam a Grécia, a obrigam a receber mais 85 mil milhões, a fazer uma reforma fiscal que ponha toda a boa gente helénica a pagar impostos devidos, a organizar o cadastro predial do país, a limitar a absurda despesa militar, a alterar a idade da reforma para parâmetros europeus, etc., etc.

Faço parte dos que pensam que a Grécia estaria melhor fora do que dentro do euro. Tenho a ideia que com menos milhões de euros se poderia ter ajudado o país a sair com alguma dignidade. Ou, que saísse, com um vasto e segundo perdão parcial da dívida. Não acredito que ela venha a pagar o que actualmente deve. Tenho por certo que os 5 mil milhões avalizados por Portugal nunca mais regressarão à pátria.

(É curioso mas nenhum dos “nossos” desvelados amigos da Grécia alguma vez falou disto. Nem quando falam da situação económica portuguesa que, apesar de tudo, melhoraria um pouco com o regresso desses euros pródigos. Pelas vagas contas que consigo fazer, neste pacote agora prometido, vão mais mil milhões que serão também eles pagos pelos contribuintes portugueses, esperando eu que os senhores César e Tavares também contribuam.)

Mas, voltemos à vaca fria: que crédito se pode dar a um primeiro ministro que vai aplicar uma política em que não acredita, que é fruto de chantagem, que é contestada por uma substancial e perigosa fracção do partido que o sustenta e que, trágica circunstância, vai ter de pedir apoio à oposição? Quanto tempo lhe darão? Que meios?

Mas há mais, se os leitores/as fossem grego/as que pensariam de um governante que o/a convida a dizer não a um acordo e, depois de obter o seu aval, vai negociar algo muito pior, muito mais oneroso, muito mais “humilhante”, numa situação que, no espaço de uma semana, ainda se degradou mais devido, justamente, ao suspense criado pelo anúncio do referendo?

E, ainda mais: que pensarão os cidadãos dos países mais recalcitrantes (e nem sequer falo na Alemanha que no meio disso é seguramente a mais moderada), Finlândia, Bálticos, Eslováquia, Áustria, Holanda (cujo primeiro ministro há ainda pouco tempo, afirmava que “para a Grécia nem mais um cêntimo” (iria)?

Há dias, a senhora Merkel lembrava que o que tinha falhado era a “fiabilidade” de Tsipras. Será que estas últimas observações do cavalheiro grego contrariam a sua opinião?

Regressando, por momentos, ao sr. Rui Tavares, desta feita a um seu artigo de anteontem, anotemos que ele afirma que há na Europa um par de governos que quer enterrar o Syriza. Claro que há.

Só não se percebe a indignação de Tavares que, suponho, acredita na “luta de classes” e nos seus inúmeros avatares. Será que o Syriza, o “Livre”, o “podemos” e outras aflorações de uma nova Esquerda radical não querem enterrar os partidos conservadores? E não querem, como sempre quiseram, enterrar os partidos socialistas “moles”, mormente os social-democratas que foram sempre indicados como social-traidores, social-fascistas, “cúmplices” da Direita?

Não deixa de ser curioso (será?) que no discurso dos Tavares todos que por cá pululam, se ignore ou omita sempre, a posição da Extrema Direita que, na Grécia ou em França ou noutras ásperas latitudes, tem sido carinhosa para com o Syriza, que aliás, nela obteve o aliado essencial para governar a Grécia.

(Governar é modo de dizer: desde que foi eleito não se conhece ao Syriza qualquer projecto de lei destinado a disciplinar as finanças gregas, a economia grega, o escândalo fiscal, as extraordinárias anomalias sociais e corporativas, o império desmesurado da Igreja Ortodoxa, a insolência dos armadores, o poder dos mediadores de turismo e outras aberrações dentre as quais é bom não esquecer a corrupção endémica e a ineficácia duma administração pública gigantesca e parasitária.)

Nada disto ocorreu aos súbitos e imprevisíveis admiradores de Tsipras que, de resto, devem estar a pensar transferir-se para outro diácono da mesma diocese não profanado por acordos com os (repito) desalmados barbaroi que, à imagem dos soldados de Maomé 2º cercaram (e conquistaram) Constantinopla.

Na longa e pouco caridosa tradição da extrema Esquerda a defenestração dos líderes é não só normal como considerada saudável. Esperemos pois por um substituto de Tsipras que Tavares, César, as senhoras do BE e restantes representantes da pureza revolucionária, erguerão como exemplo da alternativa anti autoritária, anti austeritária e verdadeira expressão dos povos cuja nova e anunciada primavera se aproxima.

Amen!

Estes dias que passam 331

d'oliveira, 13.07.15

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Um imenso, criminoso, desperdício

Recordemos os factos: há um par de anos um dirigente grego (Papandreu) tentou levar a cabo um referendo sobre a situação grega.. Entre os que o recusaram estava o senhor Tsipras.

Em finais de 2014, o governo “tecnocrata” grego que substituíra o do senhor Samaras, não podia cantar vitória (era provisório por essência) mas conseguia gabar-se de alguns escassos resultados positivos numa paisagem político-económica que sempre se caracterizara por um crescente mau resultado. Não era a reviravolta mas era pelo menos uma paragem na descida ao precipício.

Entretanto, a Grécia votou e o partido Syriza alcançou a maioria relativa (32%, se bem recordo) a que, dadas as bizarras particularidades do sistema, se acrescentaram 50 deputados (em 300) para permitir o aparecimento de maiorias estáveis. Como tal não sucedia, o partido ganhador associou-se a um partido xenófobo e de extrema direita para conseguir maioria na câmara.

(Repare-se que poderia ter escolhido outro parceiro, desta feita de esquerda, para obter idêntico resultado... Todavia, foi a direita quem foi premiada. Poderá sempre dizer-se que podia ser ainda pior: Mais à direita ainda há o Aurora Dourada, monstruosidade francamente nazi e com uma inata vocação para a violência de rua. )

Em Janeiro, o Syriza sob a batuta de Tsipras e Varufakis, encetou uma longa conversa guerrilheira com a “Europa”. Havia que conseguir mais um acordo com credores (que, lembremos, já por uma vez, e só de uma vez!, perdoara 100 mil milhões de euros à Grécia. Esta soma, pelos vistos desprezível aos olhos dos helenófilos radicais de cá, é como se sabe superior em 20% ao que Portugal conseguiu junto da troika).

Durante seis longos meses, no meio de estertores cada vez mais violentos, os dois líderes gregos, pensando provavelmente que estavam nas Termópilas sob as ordens de Leónidas perante uns persas travestidos em euro-grupo, recusaram obstinadamente qualquer acordo.

(convém lembrar que os espartanos que lutaram e pereceram nesse formidável desfiladeiro, tinham sido escolhidos entre os homens que já tinham descendência, útil precaução do Estado a que pertenciam. Também é bom lembrar que a seu lado estavam uns milhares de soldados fócios e da Tessália. E que a derrota grega foi obra de um certo Efialtes, grego também, como muitos comandantes do exército persa, que ensinou um caminho que contornava a forte posição defensiva de Leónidas).

Quando, em Julho caiu o prazo de pagamento da primeira dívida, havia uma forte possibilidade de se chegar a um acordo. Eram escassas e de pouco alcance as diferenças que persistiam. Subitamente, depois de uma reunião que parecera prometedora, Tsipras telefona a Merkel e Hollande, denunciando qualquer acordo e anunciando um referendo.

Os “amigos da Grécia” ulularam de pura alegria. Finalmente, um povo que não se verga. Finalmente, a democracia a agir (é extraordinário que o referendo seja mais democrático do que a representação mediada por assembleias livremente eleitas mas isso são pormenores. Ou não: para os novos “doentes infantis do comunismo”, de cá ou da Europa, a democracia parlamentar é uma bizantinice, um “cretinismo” e uma falsa representação da realidade. Como, aliás, a existência de vários partidos ou de opiniões contrárias).

Uma certa “europa” ajudou à festa. Uns (as extremas direitas cuja paradigma mais grego é Marine Le Pen) por ódio puro e simples à democracia, outros que se distinguem mais pela arrogância do que pelo bom senso, entenderam que chegara o momento de provar que o Syriza era um exemplo a não seguir.

Foi neste mar de escolhos que os auto-proclamados novos Argonautas se meteram a navegar. Imprudentes, sem saber um mínimo de História (a deles e a dos outros) acreditaram que uma ameaça de auto Grexit era suficiente para os restantes voltarem a emprestar sem garantias de qualquer espécie.

E nisto foram acompanhados por um par de boas almas que juram a pés juntos que, sem a Grécia, não há Europa. Que a Grécia, provavelmente a clássica, era a mãe da democracia (o que não é exactamente verdadeiro); que a cultura grega (sempre a clássica) era um dos dois pés da Europa, o que também não é toda a verdade, sequer grande parte dela: A Europa também se fez com o cristianismo, com Roma, com os Germanos, com os escandinavos sem excluir muitos autóctones não gregos (os “barbaroi”) de que os míticos celtas, os iberos e outros desaparecidos podem ser exemplos. A Europa construiu-se dificultosamente (às vezes contra os gregos como ocorreu com os conflitos constantes com Constantinopla) e deve muito à expansão europeia quinhentista, ao Império britânico, à filosofia alemã, à contribuição árabe, mormente a peninsular e por aí fora.

Se é evidente que a construção europeia não pode ser apenas económica também não é menos verdade que tudo começou na “Comunidade do carvão e do Aço”, no “Benelux” no “Mercado Comum”. A guerra fria, por um lado e a necessidade de defesa concorreram com a ideia generosa de uma por enquanto mítica unidade europeia que em tempos ia do Atlântico aos Urais.

O “euro” foi inventado para amarrar a Alemanha reunificada e, por isso mesmo, foram criados mecanismos severos que, se tivessem sido observados, seguramente excluiriam a Grécia e, quiçá, outros países. Portugal eventualmente mas também outros agora tão exigentes com os gregos.

A dramática situação (e foi ela quem empurrou Varufakis e não a má vontade dos europeus, mas a história é sempre mal contada...) que se foi agravando dia após dia desde Janeiro sem que os dirigentes gregos se afligissem especialmente, teve o seu ponto de non retour com a vitória do não.

A alegada medonha “humilhação” (já Hitler abusava do termo, talqualmente os generais golpistas argentinos quando se auto-suicidaram com a invasão das Malvinas. E mais recentemente, um pobre diabo sul americano vai pastoreando o seu povo para o nada sempre contra uma histórica humilhação do capitalismo) terá impulsionado os cidadãos gregos a votar um “não” a que Tsipras os convidava.

E o inferno escancarou as suas temíveis portas, soltou demónios que antes rosnavam mas não berravam (os verdadeiros finlandeses e os seus cúmplices na europa severa nórdica e também centro europeia).

As reuniões absolutamente angustiosas (para gregos sobretudo mas também para quem, apesar de tudo, ainda crê numa hipótese europeia) sucederam-se enquanto se ia verificando que a necessidade grega ia muito mais além dos parcos milhares de milhões discutidos até às vésperas do desvairado referendo.

Agora, era uma soma bem maior a necessária. A Grécia no consulado de Tsipras vira a crise aumentar desordenadamente e nesta ultima semana o “desastre era iminente” e não se lobrigavam “meios para o evitar”. As tristíssimas filas à porta de bancos fechados (e falidos), os velhos sentados na rua a chorar, eram a contra prova crudelíssima da alegria pelo não.

Mesmo que ainda não se conheça todas as medidas acordadas unanimemente hoje de madrugada, mesmo que se não saiba qual vai ser o voto do parlamento grego, uma coisa é certa. A Grécia vai passar por um longo período de dramáticas condições de vida, vai ser finalmente obrigada a fazer as reformas que nunca quis levar a cabo, vai ter de terminar com um ciclo que se caracterizava por uma continua injecção de fundos e de empréstimos que com os saldos do turismo convertiam a população num aglomerado de rentistas modestos enquanto os ricos, a Igreja ortodoxa, os armadores e centenas de corporações profissionais não pagavam impostos ou, se o faziam, era numa quantidade obscenamente ridícula. Isto para não falar numa imensa multidão de funcionários públicos que, à semelhança dos anedóticos jardineiros de uma instituição sem terreno iam ganhando a vida sem trabalho nem vergonha.

Eu não sei, nem sequer adivinho, o que Tsipras vai dizer ao parlamento. Nem sequer tenho a certeza, agora que conheço a personagem, se até lá, não muda de opinião. Sei, apenas que as suas desastradas farroncas empurraram o país que se lhe confiou duas vezes para uma situação que talvez só tenha um ou dois precedentes conhecidos: o Zimbabue onde se morre de fome ou a Coreia do Norte onde ocorre o mesmo mas sob o controle férreo de um louco anormal.

Em ambos os casos, as tiranias reinantes, destruíram tudo e irão destruir ainda mais.

Na Grécia antiga que enche a boca de muita ignorância atrevida, melhor dizendo em Atenas, inventora de uma democracia escassa que excluía mulheres estrangeiros escravos e mesmo algumas classes pobres, nessa Atenas que se auto-imolou quando criado um império marítimo mão soube conservá-lo por negar às cidades aliadas os mesmos exactos benefícios da democracia com que se governava internamente, havia uma especial tradição jurídica quanto aos erros dos seus governantes. Com uma periodicidade regular, o povo reunia e votava uma espécie de moção de confiança nos seus altos representantes.

Num pedaço de barro cozido, os cidadãos escreviam o nome daqueles que a seus olhos deveriam ser banidos da cidade por períodos que podiam ir até aos dez anos. Chamava-se a isso votar o ostracismo e dele foram vítimas alguns cidadãos extremamente célebres.

Se tal medida fosse votada hoje, estou em crer que, além de muito “boa” gente ligada aos velhos partidos clientelares poderia preparar-se para viver no exílio. Tsipras pelo que fez, pelo que não fez, pelo que prometeu e pela situação que criou poderia também fazer parte do lote. A sua governação vai deixar marcas, cicatrizes, feridas por sarar que, por muito tempo, serão uma visível vacina a brandir por adversários políticos e ideológicos um pouco por toda a Europa.

No meio disto tudo quem sai a ganhar? Não aposto em Scheubel, mas mais comezinhamente na insidiosa extrema direita que vai prudentemente fazendo o seu caminho em muitos e diversos lugares. Apoiaram a sanha anti-europeia do revolucionarismo maximalista do Syriza e, agora, quais abutres, comem-lhe eleitoralmente os restos.

Vai uma aposta?

 

a varapau 19

d'oliveira, 13.07.15

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A nova teoria do golpe de Estado

( variações semânticas e não só)

 

A senhora deputada Catarina Martins deve pensar que nasceu para ser uma reencarnação de Dolores Ibarruri, vulgarmente conhecida como Pasionaria.

Faltam-lhe porém a circunstância e o modo. E a origem de classe que, diga Gramsci o que disser, tem a sua importância. Catarina, apesar do nome, não é ceifeira, não nasceu na ditadura, vem da burguesia média e educada, e anda perdida num Portugal semi post-moderno. Já é azar!

É actualmente porta voz de um agrupamento que se tem vindo a dessangrar em abandonos, zangas, exclusões e outras coisas do mesmo teor e substância que geralmente ocorrem nestas frentes imperfeitas de radicalismos juvenis.

Foi, domesticamente, uma das mais acirradas defensoras do que ela (tomando a nuvem por Juno, e presumindo-se pitonisa) entendeu ser uma “revolução” grega. E, mesmo que não deva ter lido Lenine, lá terá entendido que “uma centelha pode incendiar toda a pradaria”. Nem sempre, nem na maioria das vezes, melhor dizendo quase nunca.

Com o Syriza no poder, os ameaços do “Podemos”, a melancólica solidão do sr Melenchon em França e umas já quase esquecidas manifestações de indignados, aqui e ali, eis que a referida catequista de esquerda, depois de ir em peregrinação à Grécia, regressou exaltada e ungida pelos apóstolos helénicos pregar a “boa nova” entre os indígenas do cantinho lusitano.

Quando ocorreu o “referendo”, foi vê-la qual liberdade guiando o povo, exaltada e fervorosa a declinar todos os casos que eventualmente poderiam cair sobre uma Elefteria de que provavelmente desconhece tudo como também provavelmente desconhecerá tudo da atormentada Hélade antiga e da cópia em calão em que se transformou a actual.

Hoje, ao saber do dramático acordo que Tsipras assinou de cruz veio às televisões perorar sobre o triunfo de um “golpe de Estado” (sic) que teria torpedeado o Syriza, e já agora os gregos.

Conviria explicar à mimosa criatura que os golpes de Estado são sempre obra de uma minoria contra extensas maiorias. Ora, o que na “Europa” ocorreu foi um acordo entre 18 países e um décimo nono que ainda há quinze dias poderia ter assinado um documento cem vezes menos gravoso do que este que terá de levar ao parlamento. Aquilo que há 15 dias era uma humilhação é hoje pontapé no cu desdenhoso que Tsipras leva.

Foram amigos destes que terão convencido o cavalheiro grego que conseguiria em nome do seu povo, da sua antiquíssima democracia (outro engano que prova que nem sequer a História da Grécia clássica ou até somente a de Atenas foi lida com atenção) obrigar os seus credores a voltar a emprestar-lhe dinheiro. Foi a inconsciência das Catarinas e dos Danieis portugueses (e não só) que eventualmente encantou o cavalheiro que se tomou por Aquiles (manifestamente um bruto invencível que morreu pelo pé) ou até (ó escândalo) por Ulisses, o astuto. Tsipras é apenas Tsipras, os cidadãos gregos parece que preferem o euro mesmo com incomensurável sacrifício e a situaçãoo que era má em Janeiro, horrível em Junho vai ser medonha na próxima quarta feira, dia em que o parlamento irá (ou não) votar o “diktat” dos 18.

Catarina, sonha com revoluções, pensa que é uma revolucionaria prestes a conquistar o Palácio de Inverno ou a Cidade Proibida, mas não passa de uma senhorinha perdida num mundo globalizado em que não bastam as proclamações ruidosas e grandiloquentes.

Não ganha na Grécia e, julgo, nunca ganhará em Portugal. Neste, de 2015. No outro com que eventualmente sonha, o da Resistência, não duraria (caso entendesse combater o Estado Novo) três dias.

A Revolução não é para os entusiasmos de quem não consegue perceber a realidade exterior.

d'Oliveira fecit 13.07-15

(na estampa: golpe dos coroneis)

Grécia, União Europeia e Portugal

José Carlos Pereira, 08.07.15

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Grécia, União Europeia e demais credores correm contra o tempo, em busca de um acordo que permita salvar a Grécia, a Europa e o euro. Ninguém sabe o que sucederá se esse acordo não for alcançado e houver uma ruptura. Alguém quererá experimentar?!
Após décadas de sucessivos erros, abusos e má governação, nas mãos da Nova Democracia e do PASOK alternadamente, a Grécia procurou sair do beco sem saída em que se encontrava elegendo um governo liderado pelo Syriza, força política emergente na extrema-esquerda. Pior do que estava não podia ficar e os gregos decidiram apostar naqueles que ainda não tinham alcançado o poder.
Aqui e ali com alguma ligeireza e demasiado show-off, o novo governo decidiu afrontar as instâncias europeias, negociou sem negociar, avançou e recuou e viu o seu país ir definhando, sem encontrar, da parte da União Europeia e dos credores, a abertura e a solidariedade que o país justificava, depois de uma queda histórica de 26% do PIB entre 2008 e 2013, que colocou 36% dos cidadãos gregos em risco de pobreza ou de exclusão social, que deixou mais de um quarto da população activa desempregada e elevou a dívida pública para cerca de 180% do PIB.
Sem poder aceitar mais doses sucessivas de austeridade, que agravariam as condições do país e dos cidadãos, o primeiro-ministro Tsipras avançou, temerário, para o referendo do passado domingo, que acabou por reforçar a sua posição no país e na Europa. Logo no dia seguinte, deixou cair o ministro das Finanças, que passara a ser um obstáculo em Bruxelas, e reuniu o apoio efectivo dos principais partidos da oposição. Tsipras deixou de ser o primeiro-ministro do Syriza e passou a representar um vasto espectro político, que apenas deixou de fora os comunistas e a extrema-direita.
É impossível não simpatizar com a coragem e a tenacidade do povo grego. É totalmente justo pugnar por um outro caminho, uma vez que está visto que a austeridade por si só não serve. A direita (do capital? dos interesses?) tomou conta do poder em quase toda a Europa e parece que estamos condenados a seguir a sua cartilha. Como alguém já escreveu, parece que deixou de haver lugar para políticas de esquerda ou de centro-esquerda nesta Europa de pensamento único.
Ver altos dirigentes socialistas e sociais-democratas seguirem de forma acrítica o PPE – autênticos suplentes do PPE como apropriadamente lhes chamou Pacheco Pereira – interpela todos aqueles que acreditam numa forma diferente de fazer política e de construir uma sociedade. Não nos podemos resignar a esse caminho único.
O PSE acabou de aprovar uma declaração comum assente em quatro pontos fundamentais: evitar o “Grexit”, defender menos austeridade e mais investimento e ajustar o serviço da dívida ao ciclo económico. Esses propósitos têm de ser perseguidos. A União Europeia não pode atirar a Grécia para fora do euro e entrar em mares nunca dantes navegados, como referiu Mario Draghi. Qual o preço que teríamos de pagar?
Quanto a Portugal, sempre na linha da frente a exigir mão dura e punitiva sobre a Grécia, percebe-se que ao governo PSD/CDS interesse afirmar que não há via alternativa àquela que adoptou em Portugal, seguindo os ditames europeus. Caso contrário, todo o seu argumentário político cairia por terra.
Creio, contudo, que a altivez dos nossos governantes passaria depressa caso a Grécia mergulhasse numa crise profunda com a saída do euro, pois isso não deixaria de afectar sobremaneira a dívida pública portuguesa e o financiamento da nossa economia. Só não vê quem não quer.
De resto, como hoje avisa Teresa de Sousa no “Público”, “as consequências de uma saída grega para Portugal são óbvias. Se um sai, outros podem sair no futuro. É só ficar à espera da próxima crise”. Ora nem mais.

Au bonheur des dames 407

d'oliveira, 08.07.15

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Uma mulher no século

 

Conheci Maria Barroso em Coimbra depois de uma memorável récita de “A voz humana”, se não estou em erro. Passaram quase cinquenta anos desse momento teatral e, também, politico. As minhas recordações não são absolutamente seguras mas julgo que Mário Soares estaria no degredo em S Tomé.

Portanto, para além do espectáculo, havia naquele Teatro Avenida cheio como um ovo uma forte e palpável manifestação política. Celebrávamos a palavra sobre as tábuas e a resistência a uma situação política anormal na qual a maioria de nós sempre tinha vivido.

Se bem recordo a enorme ovação que Maria Barroso recebeu coroava não só a sua extraordinária interpretação da exigente peça de Cocteau (só igual em dificuldade e exigência de virtuosismo aos “Malefícios do Tabaco” –outra prova de actor que só os muito grandes passam com êxito) mas também os infortúnios de uma oposição política portuguesa que cumpria quarenta anos de exílio interior.

Depois do espectáculo, houve, como de costume, uma ceia oferecida ao elenco numa república coimbrã. Já não sei como fui convidado mas a verdade é que foi aí, e graças a uma apresentação do meu amigo doutor Orlando de Carvalho, que cheguei à fala (breve) com Maria Barroso.

Fiquei, como todos os restantes participantes da ceia, rendido à inteligência, à cultura, à lhaneza e à simpatia daquela mulher. Daquela Senhora, se me permitem adjectivar o substantivo. Aliás a opinião era geral. Maria Barroso, naquela noite, mostrou a um grupo de rapazes e raparigas jovens e bem intencionados de que madeira se fazia uma Senhora com S bem grande.

Poucos anos depois tive a sorte de conhecer Mário Soares. Também numa república ( Kágados ) num encontro que, se não erro, o Luis Filipe Madeira organizou. Tratava-se, penso, de apresentar ao regressado Mário Soares alguns alegados líderes da crise de 69 em Coimbra. Depois de ter conversado com Catanho de Meneses este insistiu em me apresentar a Soares que, reconheço, mostrou também ele ser um homem notável e um politico com um invejável instinto; não terá angariado nessa reunião muitos seguidores mas pelo menos não criou opositores. Como a mulher, tratou-nos com uma simpatia e um respeito que, e ainda há pouco o recordei com um companheiro desse dia, nos deixou surpreendidos e, porque não confessá-lo?, vaidosos.

Passaram uns bons anos até ao dia em que Soares anunciou a sua intenção de se candidatar à Presidência da República. Terei sido dos seus primeiros apoiantes. Tanto ou tão pouco que, quando o casal Soares Barroso veio ao Porto para uma sessão (na sede regional da Ordem dos Médicos?), fui com o casal Dolly Cochofel Rui Feijó recebê-los à estação. E ainda bem que o fizemos porquanto não estava lá ninguém para efeito. Foi no meu carro que viemos os cinco para a sessão e nessa altura descobri com pasmo e uma indecente alegria que ambos se lembravam de mim, tantos anos passados!

Ou então terá sido o Rui, velho e querido amigo, quem, num momento de distracção meu, os informou destes meus anteriores encontros com eles. Esta hipótese é menos gloriosa mas tem a vantagem de poder ser mais verídica.

Durante a campanha eleitoral que se seguiu foram muitas as vezes que encontrei Soares mas não retenho nenhuma em que Maria Barroso estivesse presente.

E depois, até hoje poucas vezes nos cruzámos. Porém, a imagem de Maria Barroso e a sua acção cívica, cultural, politica e institucional nunca me passou despercebida.

Actriz de talento que os poderes públicos relegaram do teatro, professora aclamada pelos muitos alunos que teve, perseguida com sanha ao ponto de lhe tentarem proibir a carreira, Maria Barroso nunca descurou a intervenção política própria que, aliás, chegou ao ponto de, enquanto fundadora (a única mulher!!!), votar contra a maioria (Soares incluído) na melindrosa questão da criação oficial do PS. Como deputada teve sempre uma voz própria e, se não terá sido uma frondeuse dentro do PS, nunca deixou de vincar com clareza as nuances que a separavam da linha geral.

Nas suas constantes aparições públicas distinguia-se a apreciava-se a qualidade da linguagem, a clareza das ideias, a frontalidade das opiniões e o persistente entusiasmo com que defendia causas por vezes incómodos.

Maria Barroso tinha uma tranquila coragem que sempre usou com discreta força e que, não poucas vezes, surpreendeu quem a conhecia.

Quando se converteu ao catolicismo poderá ter espantado muitos mas que eu saiba não escandalizou nenhum dos seus admiradores. Eu que sou absolutamente agnóstico vi essa profissão de fé (de acordo com as informações que me chegavam) com naturalidade. Os terríveis, angustiosos momentos que passara sobravam para o passo que deu. Depois, e também me chegaram ecos disso, levou a sua vida religiosa com recato, dedicação e alegria. E sempre a ensinar a falar em público, a ler em público, a comunicar com o público. A sua passagem pela Cruz Vermelha foi um sucesso que a proposta de ligar o seu nome ao hospital não só não espanta mas ganha geral assentimento. Maria Barroso levava as suas tarefas com a mesma seriedade com que levou a sua carreira de actriz teatral e cinematográfica. Deu a todos os papeis que lhe conheci a intensidade, o brio, a leveza que requeriam. Sabia “estar” e estava sempre bem.

Não foi a única mulher a distinguir-se neste muitos anos de vida pública mas, também pela longevidade, foi um dos melhores exemplos que podemos recordar. E, dada a sua projecção pública, deu um formidável, talvez inigualável, impulso à justíssima causa das mulheres em Portugal.

Na hora do seu desaparecimento celebremo-la com alegria e desejemos-lhe, para lá das nossas convicções pessoais, um lugar á mesa dos bem aventurados.

E que olhe por nós (olhará de certeza) se o Reino em que acreditou de facto existir.

E muito obrigado por aquele dia fraterno e verdadeiro em que me revelou toda a profundidade da voz humana. E da dignidade e coragem humanas.

 

estes dias que passam 330

d'oliveira, 06.07.15

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Foi não. E agora?

 

Se o “não” ganhar – e parece que são fortes as possibilidades disso acontecer – a pergunta é esta: e agora?

Antes de responder conviria lembrar as razões duma vitória que poderá ser, à boa (má) moda grega pirrónica- de Pirro rei do Epiro que no fim da vitória em Ásculo comentou que mais uma vitória desse tipo seria o seu fim. Pirro, como se sabe, acabou por perder tudo podendo dele dizer que foi de “vitória em vitória até à derrota final”.

A vitória do Syriza e do “não” deve-se sobretudo à tragédia dos partidos tradicionais (Nova Democracia e Partido Socialista) que (des)governaram a Grécia durante décadas. E convém não esquecer que a extrema direita (desde os “gregos independentes ao Aurora Dourada) se juntou num extraordinário conúbio ao Syriza. Basta ver a alegria de Marine Le Pen para saber que ventos sopraram e ameaçam soprar no Egeu. E na Europa...

A segunda e tradicional razão da vitória assenta num mito (e na terra deles há sempre outro a nascer), a saber: a “humilhação” que os “europeus” (burocratas, “virtuosos”, ricos, exploradores) trouxeram à Grécia obrigando-a a endividar-se para além do inimaginável. É bom lembrar que à declarada dívida de 320 mil milhões (160% do PIB) deverá acrescentar-se uma parcela não contabilizada que deverá elevar o débito grego a 200% do PIB.

Já o finado Adolph Hitler baseava toda a sua belicosa campanha na “humilhação” sofrida pela Alemanha. Não foi o primeiro a usar essa arma (Mussolini também usou o mesmo truque) e até por cá, se recorreu ao mesmo tema nos confusos tempos do final inglório da 1ª República e os alvores da Ditadura quando os credores de Portugal apresentavam exigências dramáticas.

A lista dos presumidos humilhados continua desde uns chefes de Estado africanos que justificam as suas ditaduras com a reivindicação de acabarem com as desfeitas contra a independência recém adquirida e malbaratada por ele   até ao senhor Putin, ao accionar a ocupação da Crimeia e ao alimentar os ucranianos russófonos em armas e dinheiro (para não falar em fortes contingentes militares clandestinos), veio dizer que os tempos em que a Rússia era humilhada (sic) tinham acabado.

A segunda questão que se põe é esta: será que a posição europeia irá mudar depois da inesperada decisão de Tsipras em convocar o referendo?

Ou (mera hipótese já sugerida em várias partes) será que os países europeus vão eles mesmos perguntar, por referendo, aos seus povos se estes estão dispostos a abrir os cordões à bolsa para não só perdoar uma parte substancial da dívida actual mas ainda para emprestar mais dinheiro? (no mínimo 30 mil milhões ou segundo o FMI mais de 50) Não se pode esquecer que os eventuais futuros emprestadores perguntarão com óbvia ansiedade se o seu dinheiro lhe voltará aos bolsos.

A terceira questão que se põe é puramente teórica: se quando num país a dívida cresce imparavelmente que solução segura para quaisquer credor haverá depois do segundo eventual precedente grego. Lembremos que ainda há pouco tempo a Grécia viu perdoados cento e muitos milhares de milhões.

A quarta questão é medonhamente indecente: quanto dinheiro deverá um Portugal, que ainda não saiu da fase de sangria a que se viu submetido, meter no bolo comum que a “europa” deveria, emprestar à Grécia?

A quinta questão, desta vez despudoradamente interna tem a ver com a acusação continuamente feita ao Governo, aos partidos que o sustentam e a Cavaco Silva, sobre a sua violência contra a Grécia. Também aqui, sem pôr em causa, a mais que provável aversão desta gente contra o Syriza (e já agora contra os seus incríveis parceiros de extrema direita – de que nunca se fala) é bom lembrar que a “linha da frente” da “firmeza” perante a Grécia vem dos países bálticos e dos pequenos estados centro-europeus todos eles mais pobres que a Grécia com salários mínimos inferiores em mais de 50%, com pensões mais baixas, muito inferiores mesmo às actualmente miseráveis (na maioria) pensões dos reformados gregos.

Em sexto lugar, circula com surpreendente e alarmante despautério a ideia de que foi o BCE quem ordenou, provocou ou forçou o encerramento dos bancos. Ao mesmo tempo, o BCE foi garantindo a liquidez dos mesmos bancos o que, pelo menos, deveria ser explicado. Os bancos gregos estão falidos e tem sido a assistência do BCE que os mantém de pé.

Em sétimo lugar, corre com persistente insistência a ideia de que a “Europa” volta aos bons velhos tempos do senhor Metternich (no caso do euro-grupo) ou à falida “Primavera dos povos” (representada pelo Syriza e pelo “Podemos” que irá dar que falar) que, aliás, ocorreu depois do afastamento do antigo chancelar do Império austro-húngaro. Ou seja: a direita quer domar a esquerda. No caso a esquerda é o Syriza (e o seu parceiro de extrema direita, essencial para haver Governo) e a direita é a tradicional que governa em vários países (mas não a “frente nacional” francesa, entusiástica apoiante do “não”) bem como a maioria dos partidos socialistas (desde o alemão) que poderiam ser representados por Martin Schulz, presidente do Parlamento Europeu que ainda hoje afirmou que a vitória do “não” é a saída do euro e a restauração de uma moeda nacional.

Em oitavo lugar, seria bom tentar saber se não seria preferível para a Grécia recuperar o controlo das alfândegas, da moeda nacional, da “soberania” económica e financeira, em vez de continuar a viver de balões de oxigénio europeus. Lembremos que, mesmo em Portugal, há quem advogue uma saída, prudente mas imperiosa, do euro. Nada disso impediria uma relação com os países do euro nem, muito menos, a sua permanência na União Europeia.

Nona questão: há alguém que acredita que uma rendição do euro-grupo (ou vista como tal pelas opiniões públicas) possa ser favorável à Europa e à Grécia?

Décima e ultima questão: quais são as possibilidades reais, próximas e claramente urgentes de a Grécia mesmo com os dinheiros que exige, levar a cabo as reformas que a retirem do grupo dos Estados quase falhados para a introduzir uma vez por todas na Europa. Mesmo tendo em conta a difícil situação em que estava aquando da vitória do Syriza, a verdade é que se não vislumbra sequer uma vaga proposta de reforma dos sistemas fiscal e financeiro, do acesso às reformas, da diminuição imprescindível do alto grau de despesas militares, da aplicação à Igreja de um mínimo de gravames tributários. E por aí fora.

Cá em Portugal uma semi-jovem pasionária e o senhor Rui Tavares conseguiram a quadratura do círculo. Tout ira bien, madame la marquise. Melhor do que eles só o dr Marcelo Rebelo de Sousa que num arriscado exercício de contorcionismo político disse tudo, e sobretudo nada, sobre a questão. Para alguém que “modestamente” (ainda) não é candidato à Presidência da República, ontem o dia foi extraordinário. Se o elegem ainda iremos ter saudades de Cavaco!

 

* Este texto foi escrito antes de haver resultados definitivos do referendo.

** o mapa que o ilustra visa também mostrar que, ao contrário de um par de ignorantes locais, a Grécia não está isolada da UE visto ter fronteira comum e extensa com a Bulgária que pertence à UE e que confina tambem com vários países da UE. E, de passagem, deitar por terra a ideia que põe a Grécia a "fechar" o Mar Negro de que está separada pela Turquia. Essa sim, com a Bulgária, Roménia, Ucrania e Geórgia é que "fecha" o dito mar. 

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