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Incursões

Instância de Retemperação.

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Estes dias que passam 72

d'oliveira, 27.07.07


AVENTURAS DA DESRAZÃO

Confesso que me assaltou uma certa dúvida quando escrevi “desrazão”. Eu tinha a convicção que a palavra existia, que faria parte desse cada vez maior número de palavras que ninguém usa, tão habituados estamos a um português básico e pedinchão. Mas existe, valha-me São Houaiss patrono dos dicionaristas (ao lado do dr Johnson, claro. E do Viterbo. E do Moraes, idem. Portanto quem não souber o significado só tem ir pelos seus dedinhos: Houaiss!
Todavia o facto de uma palavra existir, pouco quer dizer, às vezes nada. Vejamos a palavra “vergonha”. Ter vergonha, por exemplo. Antigamente um homem de bem tinha vergonha na cara, não fazia certas coisas que a moral ou os costumes vigentes reprovavam. Até os políticos tinham vergonha, vejam lá.
E agora, como estamos? Pois, mal. Muito mal. Um desastre!
Vem tudo isto a propósito dum sinistro cavalheiro que dá por Muammar Kadafi e que governa a Líbia há uns larguíssimos anos.
Kadafi foi acusado vezes sem conta de autor moral de atentados, de pagador de terroristas, de ditador. Durante anos foi um pestífero, ninguém queria nada com ele, ou dele. A Líbia era um santuário para criminosos de todo o jaez, desde que políticos.
Nestes últimos anos, contudo, há subtis mudanças no personagem, que com a ajuda do petróleo líbio, tem pouco a pouco apagado o lado cavernícola da criatura.
Porém, apesar de já não ser o réprobo dos réprobos, Kadafi ainda não era frequentável. E não era pelas razões de todos conhecidas e mais uma. Numa encenação delirante, ubuesca, a “justiça” (entre aspas como terão reparado) líbia, entendeu acusar cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestiniano de um crime monstruoso: teriam inoculado o vírus da SIDA a cerca de quatrocentas crianças que vegetavam doentes nos “hospitais” líbios (terão reparado que as aspas aí estão de novo). A acusação era de tal modo bizarra que ninguém acreditou, líbios incluídos, suponho. Todavia as enfermeiras e o médico foram rapidamente presos, interrogados com a proverbial clemência dos esbirros de Kadafi e graças a uns aparelhitos eléctricos aplicados nas zonas genitais dos criminosos confessaram, diz-se, tudo ou quase tudo. Isto começou há oito anos. Oito anos em que de interrogatório para tribunal e vice-versa, aquelas seis criaturas sofreram o que pouca gente sofre. Se os hospitais líbios são o que são, imaginem as cadeias.
O segundo acto desta tragicomédia foi totalmente preenchido com a sessão delirante do julgamento onde os desgraçados réus negaram tudo o que lhes fora extorquido pela polícia. A opinião pública europeia comoveu-se, surgiram protestos, os governos de alguns países deram a conhecer as suas criticas olimpicamente ignoradas pelos “juízes” líbios que mais não do que peças anonimas e pouco representativas do vago direito que aplicam com singular pertinácia. Como não podia deixar de ser, os réus foram condenados. À morte, como convém. Apelaram claro.
Mais prudentes, os governos entenderam contribuir para um faraónico fundo de ajuda às vítimas e aos familiares dos já falecidos. Em princípio sussurrava-se que com um milhão por cabeça, viva ou morta, talvez as coisas se compusessem. O dinheiro choveu e quem sabe diz que veio direitinho dos erários públicos de uma dúzia de países europeus condoídos com a sorte das enfermeiras e atentos ao petróleo que corre pela Líbia.
Quando a soma foi reunida pensava-se que as pobres mulheres seriam de algum modo libertadas ou pelo menos veriam comutada a sentença. Nada disso, entretanto, ocorreu: o Supremo Tribunal da Líbia (ou a ajuntamento de magarefes que frequenta esse local mal afamado) manteve as penas de morte. A Europa voltou a comover-se. E tanto se comoveu, tanto apelou, tanto pagou, que Kadafi transigiu em receber a senhora Sarkozy despachada pelo extremoso marido para obter a graça presidencial. Kadafi já com o dinheiro empochado, fez o gesto que se esperava: se o ocidente retirasse o seu bloqueio à personagem, ele comutaria a pena de morte. A senhora Sarkozy ter-lhe-á dito que isso era o menos, o que lá vai, lá vai.
E, terceiro acto, Kadafi comuta as penas e entrega o bando de criminosos à Bulgária com a condição dos réus aí cumprirem a pena. Claro que mal os desgraçados pisaram o solo de Sofia, logo o presidente búlgara a uncia que os graciou e que estão livres. .A Líbia protesta molemente e para a galeria. O mundo ocidental esquece todos os agravos contra o coronel Kadafi e elogiam-lhe a clemência, a bondade, o respeito pelas liberdades e pelos direitos humanos. Sarkozy precipita-se para Tripoli. Os empreendedores seguem-lhe na peugada e os jornais de hoje já falam neste novo faroeste (por acaso a sul). E no petróleo, claro. Caíram os embargos, calaram-se as criticas e o cheiro a petróleo espalha-se como uma nódoa de azeite pelas nossas praias.
Os dirigentes políticos, Sarkozy à frente, mostraram claramente que vergonha neles desaparece ainda mais facilmente do que manteiga em focinho de cão.
Não me admiraria se, um destes dias de gloriosa presidência europeia, aí desembarcasse o senhor Kadafi para se mostrar ao gentio português. Não que tenhamos importância mas apenas para rapidamente se mostrar à Europa por interposta presidência portuguesa. A menos que nem isso valhamos e Kadafi nos substitua pelos verdadeiros senhores da Europa.
Ao pensar nisto, lembrei-me de Fidel Castro. Não que simpatize com a personagem. Já foi tempo. Há muito, muito tempo. Só que aposto dobrado contra singelo, que se Cuba tivesse petróleo em vez de açúcar, calavam-se depressa todas as criticas e cessariam também os embargos. Azar dele, ter açúcar. Não é com isto que ele adoçará as bocas dos senhores do mundo. Preferem o petróleo sobretudo porque aquilo no médio oriente está um tanto ou quanto agitado. Ao passo que na Líbia reina a calma. A calma dos grandes cemitérios sob a lua, para citar Bernanos que, apesar de católico, não se quis calar quanto ao que se passava na Espanha.
Ele tinha vergonha. O que só o honra. O problema é que agora, a falta de vergonha tem o antipático nome de realpolitik.

* gravura: um cartaz do "Maio de 68"