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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

au bonheur des Dames 362

d'oliveira, 02.05.14

 

 

 

 

 

 

 

 

Exercícios de memória 3

 

 

 

Na noite de 25 de Abril, a televisão mostrou a Junta de Salvação Nacional. Convenhamos que, mesmo para os mais entusiastas, as coisas ainda não pareciam absolutamente tranquilizadoras. Muitos militares (E Deus sabe o que os militares tinham feito ao país nos últimos cento e cinquenta anos...) e sete circunspectos oficiais generais e almirantes presididos por Spínola). A proclamação da JSN parecia prometedora mas ficava-se em vagas alusões quanto a algumas questões prementes (presos políticos, guerra colonial, censura, liberdade de reunião, partidos etc..) De todo o modo, os governantes do Estado Novo estavam presos (a PIDE não!) e nas ruas grupos desenfreados manifestavam-se. Não se tratava, exactamente, de multidões mas, de todo o modo, e sobretudo em Lisboa, houvera como que um toque a rebate e estudantes, jovens operários e empregados, ocupavam o terreno e forçavam uma nova legalidade face ao desconcerto de uns, à desconfiança de outros e à prudência de quase todos.  

 

Foi preciso passar os dias seguintes para começar a perceber com maior nitidez o evoluir da situação. E o primeiro sinal foi a libertação dos presos de Peniche e Caxias mesmo se durante longas horas houvesse um impasse em relação aos presos a que se imputavam “crimes de sangue” (no caso, os da FAP). Todavia, quando a saída foi negociada no sentido de libertar toda a gente, a confiança cresceu.

 

E mais cresceu quando, finalmente, foram dadas ordens para desmantelar a PIDE (cá, mas não nas colónias, convém salientar).

 

Passando por alto alguns faits divers que apimentavam os nossos dias (e os nossos dias eram, podem crer, os dias e as noites varadas até alta madrugada) relatarei apenas o episódio da conquista da sede da PIDE no Porto.

 

A sede desta situava-se numa zona residencial pelo que, como é de calcular, logo que se soube que os militares iriam proceder à ocupação desse quartel policial, houve um alvoroço por toda a vizinhança.

 

Par sorte minha, praticamente à frente do edifício, moravam umas parentes da Maria João pelo que, imediatamente se organizou um lanche ajantarado em casa das senhoras, para o qual foram mobilizados todos os familiares, avisados, como é boa moda do Porto, para trazerem comes e bebes.  De toda essa vasta tarefa culinária só recordo (se é que não imagino) a participação da tia Edite e do tio Celso Hermínio, casal idoso e gentilíssimo que costumava obsequiar a parentela com o que, lá em casa (com a minha absoluta excepção) se considera a melhor cabidela do mundo. Cabidela caprichada, obra não só da tia Edite mas também, e muito, de uma velha e fiel empregada do casal que competia em talento e gordura com a patroa. A parte do tio Celso reduzia-se a ser o motorista da viatura onde viriam as duas imensas senhoras e as panelas também generosamente imensas da cabidela praticamente pronta.

 

A atenção dos numerosos convivas dividia-se entre as janelas apinhadas e as mesas onde se espraiavam os acepipes (e eram muitos e bons) com que aquela família celebrava a liberdade e a gulodice.

 

A rua que estivera mais ou menos deserta ( os mirones já escaldados dos tiroteios ocorridos em Lisboa junto à sede da polícia mantinham-se a bom recato e a uma distância prudente).

 

E chegaram, atrasados, os destacamentos que vinham tomar o casarão. Para minha alegria e glória, dois dos oficiais milicianos que se apresentaram eram amigos de velha data, a saber o meu colega de escritório José Afonso e o meu compincha de estudo e estúrdia Manuel Simas Santos. Detenhamo-nos num breve retrato: O Zé era, não direi gordo, mas cheínho, cara de menino, redonda e luzidia. O Manel era enorme e não havia farda que lhe coubesse. Aparecia portanto com um ar pouco heróico, fardado às três pancadas, com um quico ridículo na cabeçorra e brandia uma G3, se a memoria não me falha, com uma displicência digna do Parque Mayer.

 

Uivei-lhes os nomes e eles acenaram primeiro e chegaram-se à fala depois. Anunciei-lhes a cabidela e os restantes mimos da farta mesa e terei mesmo oferecido logo uns bolinhos de bacalhau que estavam de chorar por mais. Desculparam-se com a missão que os esperava, limparam o sebo a uma dúzia de bolinhos e voltaram às suas posições de ataque mas os da pide não lhes deram hipótese: renderam-se numa fervurinha e aquela boa tropa enfiou-se pelo casarão donde só saiu tarde. Já não estou certo se ainda vieram pela cabidela mas a história (esta história) será mais interessante se os virmos abancados mais os magalas que traziam a aviar famosa melhor cabidela “livre” do mundo. De todo o modo, a cena da conquista da PIDE foi rápida, incolor, inodora e insípida. Por tudo, ganhei uma prenda, trazida pelos meus amigos: o processo 49256 /SR referente a MCCR, eu, a Maria João Delgado  Correia Ribeiro  e Editorial Centelha. No total umas dezenas de páginas, começadas em princípios de 1972 e que se arrastavam, julgo até finais de 1973. Pelo meio fotocópias de cartas recebidas ou enviadas por mim, pelos meus pais, por amigos e informações de vários agentes, chefes de brigada. Entre vários relatórios apareço (relatório 473/73/DI ) como tendo desenvolvido “grossa actividade principalmente no meio académico de Coimbra. E acrescenta o agente Manuel Vaz (Ferreira?) que o investigado é advogado tendo participado em vários julgamentos de índole política, argumento este fortificado pelo chefe de brigada António Marques de Almeida  (11.05.1973) que me apresenta como “um dos responsáveis da crise académica de 1969 em Coimbra”, “bastante amadurecido em “lutas” estudantis e portanto com suficiente capacidade para dirigir qualquer subversão de estudantes”. Uma honra que, por uma vez sem exemplo, não foi levada até às suas habituais consequências, manifestamente por falta de oportunidade. E de tempo!...(o 25A estragou tudo!...) Ou, dito de outra maneira: este processo (o último de cerca de dúzia e meia com que fui mimoseado) aguardava sossegado qualquer coisinha para mais uma vez eu ser detido.

 

Com o processo recebi uma bandeira da PIDE a que dei sumiço imediato. Há coisas que nem como recordação.  

 

O meu 25 A terminou no dia 1º de Maio. De facto, nesse dia quente e glorioso, ao ver o mar de gente que no Porto se manifestou desde o Campo da República aos Aliados, cheguei a uma conclusão provisória: ou tínhamos vivido num outro pais ou aquela imensa multidão que festejava era produto de uma conversão maciça. Quem durante dezasseis anos (1958-1974) viveu a solidão dos opositores, a falta de apoio, por mais pequeno que fosse, de conhecidos, vizinhos ou simples transeuntes  (como em Coimbra por alturas de uma prisão (a terceira!) na “Brasileira” e de uma marcha entre sete agentes por meia Baixa da cidade) desconfia sempre, como o pobre, da fartura da esmola. Em Maio de 1974, começava uma outra época e um outro país. Melhores, absolutamente melhores, do que anteriormente mas também completamente amnésicos e dispostos a redimir tudo até os pides e os informadores, para já não falar nas centenas de políticos reconvertidos à Democracia e nos muitos votantes e admiradores do dr Salazar. Alguns ainda aí estão, são até homenageados quando não os celebram como pais da Liberdade e da República.

 

Como, hoje, já só 25% dos portugueses vivos tinham mais de 14 anos nessa época (e 14 anos é pouco sobretudo para a grande maioria de pessoas que viviam fora dos grandes centros) a questão do conhecimento daquela realidade plúmbea e acintosa, torna tudo ainda mais complicado. Não admira que as comemorações oficiais, oficiosas e contra-establishment tenham sido o que foram.

 

Mas a vida é assim e, para parafrasear o título de uma das estampas do Miserere de Rouault: “Diz  o naufrago: amanhã fará bom tempo”.

 

Nem sempre, nem sempre. Ou raras vezes para sermos mais realistas.  Todavia, quando oiço certos rapazes e raparigas que roçam vagamente os quarenta anos, ou nem isso, tenho uma súbita e feroz vontade de os mandar seis meses para essa época de vergonha, para ver o que fariam, o que diriam, como reagiriam. E, temo bem que os resultados dessa incursão numa realidade que eles, ignorantes, insistem em assemelhar ao tempo que vivemos não seria gloriosa. Nada gloriosa...

 

 * na gravura: no processo acima mencionado e que guardo carinhosamente (mesmo se o devesse entregar à Torre do Tombo para se juntar aos restantes que me dizem respeito) estava esta minha fotografia tirada na sede da PIDE/DGS. Devo confessar que a considero  uma das três melhores fotografias que já me tiraram em tantos anos de vida. Ai se a pide fosse apenas um estúdio fotográfico... mas não era, não era. O problema é que, graças à desmemória, à suavidade com que a organização foi tratada, às fugas em massa dos agentes que alguém permitiu (ou então era a famosa brandura dos nossos costumes) e aos não processos contra os responsáveis do Estado Novo, e à teoria de que 99,99% dos cidadãos eram vítimas de um já falecido Salazar e um exilado Marcelo Caetano, ninguém ficou suspeito desse intervalo da nossa história. Ninguém! 

 

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