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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

au bonheur des dames 412

d'oliveira, 04.01.16

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he's got the whole world in his hands

(um spiritual para Jaime Azinheira)

Tinha o mundo nas mãos. Mãos de escultor, mãos seguras, mãos poderosas, mãos que num ápice traduziam volumes, cores, ambientes. 

O Jaime era o que se chama um escultor de mão cheia. E era porque já não é. Um cancro medonho e rápido levou-o em poucos meses com o seu cortejo de dor e de miséria física. 

Tenho uma boa dúzia de amigos escultores desde o decano e querido José Rodrigues até ao  Manuel Sousa Pereira, amigo de longas dezenas de anos. Desde 1962, mesmo que não nos tenhamos encontrado numa Coimbra revoltosa que celebrava um Encontro Nacional de Estudantes proibido pelas autoridades. MSP, como todos os restantes que vinham do Porto, ao ver o autocarro em que viajavam parado pela polícia não desmoralizou e terminou a sua prergrinação-manifestaçao vindo a pé uma boa dúzia de  quilómetros até chegar entre vivas e eferreás à praça da República, centro vital da comuna estudantil coimbrã. Se o cito e relembro esta historieta é por que os tempos que correm obscurecem, entre demagogia e desconhecimento da História, o que fomos, o que somos e o que queremos.

E neste "nós" está claramente e luminosamente o Jaime (e a Elsa, naturalmente. Elsa César para os que não conhecem, escultora também ela e com obra feita). 

Conheci o Jaime antes de o conhecer, ou melhor conheci primeiro uma série extraordinária de peças com que ele ganhou sem problemas a Bienal de Cerveira - a 1ª ou 2ª já não recordo nem isso importa. Eram quatro ou cinco esculturas quase em tamanho natural coloridas e carregadas de uma intensa carga crítica que não disfarçava (como é que o Jaime, a ternura feita pessoa e escondida atrás de uma brusquidão artificial iria esconder o seu amor pelas pessoas, pelos humildes, pela gente de todos os dias? ) o carinho com tratava as suas personagens. 

Está aí a iluminar este pobre texto uma fotografia do conjunto "Taberna" que poderão ver ao natural na Fundação da Bienal de Cerveira.

Do Jaime, eu esperava tudo: uma obra que desse brado, como tudo indicava, o reconhecimento do público (que dos seus pares e da crítica já estava mais do que adquirido) e até uma carreira internacional. Vi alguma escultura pelos sítios por onde andei desde Berlim a Paris ou de Roma a Amsterdão e do que vi ficou-me a ideia absurdamente portuguesa de que bastaria ele querer e as galerias abrir-lhe-iam as portas. O problema era ele querer. E o Jaime não queria, não se interessava, não acreditava. Ou acreditava muito pouco. Nele, em primeiro lugar, no nosso destino periférico depois. 

Faço parte dos abençoados que conseguiram adquirir peças dele. Uma única, aliás, pois perdi ingloriamente outra  escultura e um belíssimo acrílico que um rapazola fanfarrão arrematou e, depois, não pagou. A peça foi, sem eu o saber, para outro interessado que estava à coca e era mais espevitado e mais rápido do que eu. 

Mas mais do que isto, ou pelo menos tanto, era o facto do Jaime ser um amigo certo, um homem culto, um professor de grande qualidade que prestigiou a Escola de Belas Artes do Porto e um velho resistente. Não precisou do 25 de Abril para afirmar as suas posições de cidadão e democrata quando ambas as qualidades eram, em Portugal, mais raras 

do que o milagre das rosas. Numa altura em que a compita de cidadania e de democracia corre desavergonhadamente à rédea solta pelos jornais e pelas televisões, sabe lembrar  quem tranquila e desinteressadamente baseou a sua vida na liberdade, na cultura e na honradez.

Vai este folhetim para os amigos de Jaime Azinheira, para a família e sobretudo para a Elsa e mais ainda para a Filipa César que (como os irmãos) dos pais herdou a cultura, a beleza, o entusiasmo e o talento.