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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

O leitor (im)penitente 207

mcr, 15.03.18

O deserto cresce.

Ai de quem abriga desertos.

 mcr 15-03-2018

 

Os dois versos que titulam este folhetim andam comigo à cerca de cinquenta anos. São de Nietzsche, o admirável, e fazem parte dos “Ditirambos dionisíacos”. Quem se interessar pela grande poesia alemã encontrará a tradução da poesia de Nietzsche nalgum alfarrabista mais atento (ou feliz). Caso contrário, a Gulbenkian publicou as “Obras de Paulo Quintela” (ou um título do mesmo género). Nesse conjunto há três volumes de traduções de poesia e num deles vem a obra poética do filósofo. Imperdível! A ler com extrema urgência!

Vem isto a propósito de alguns nacionais e recentes óbitos de livrarias. Sem ir mais longe desapareceram, numa penada desde o início do ano, a “Leitura” no Porto, a “Miguel de Carvalho” em Coimbra e a “Pó dos Livros” em Lisboa.

Sabe-se, igualmente, que um senhorio insaciável já terá dado ordem de marcha (e de despejo) a mais três alfarrabistas da rua do Alecrim em Lisboa (a Campos Trindade, a António Trindade e o Centro Antiquário do Alecrim).

Conheço muitas cidades por via das suas livrarias ou oriento-me nelas seguindo caprichosos itinerários nem sempre planeados entre uma e outra.

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6) Continua na Praça Nova, Fig.Foz....JPG

 

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(a este respeito vale a pena contar que na última estadia em Veneza, andando eu ocupado em mostrá-la à CG, metendo sempre por ruas novas e inesperadas, calhou que, vindo do Rialto para o Campo di San Fermin, oiço a minha mulher soltar o medonho rugido da leoa esfomeada que vê um antílope apetitoso e descuidado. Era, à nossa direita, uma loja de lãs. Fiquei aterrado: a CG é uma temível tricotadeira e anda sempre em busca de algum mirífico fio. “Ai, Jesus, que isto é para uma hora pelo menos”, suspirei in imo pectore. Já me resignava ao inevitável quando, ao olhar para esquerda me deparei com uma livraria. Enquanto a CG avançava para as lãs, precipitava-me eu, em voo picado, para a salvadora loja. Era um verdadeira livraria dedicada a Veneza e história veneziana com extensões ao Veneto. Uma maravilha! Depois de visitar com detalhe um par de títulos, conversei com o livreiro sobre a sua excepcional, e cara!, mercadoria e à saída, ajoujado de compras e aliviado de mais euros do que devia, pedi-lhe um cartão da livraria para poder lá voltar. Espantado, descobri que tinha entrado na “Linea d’Acqua”, um livraria recomendada por um grande amigo e vizinho. E disse-o ao livreiro. Este perguntou-me de onde vinha e quando o informei que do Porto, retorquiu-me seguríssimo: “Ah, então foi o António Abreu! “

E, de facto era. O AA era um ávido leitor e um verdadeiro veneziano. Todos os anos, passava lá quinze dias, hospedado numa casa alugada no Cannaregio, o último sestiere acessível ao turista português. )

 

 

Voltemos, porém, às livrarias que desparecem. Não é de hoje esta doença mortal dos negócios que envolvem a venda de livros. Lembro-me, pesaroso, da excelente “Havanesa” na Figueira, poiso de livros e de tertúlias fieis. Em chegando à terra, o meu primeiro destino era a Havanesa, mesmo antes de ir vera família ou pousar a mala. Em Coimbra, desapareceram várias livrarias, entre elas a enorme “Atlântida” que enchia dois pisos, a “Luso-Espanhola” onde comprei os primeiros poetas de língua espanhola ou a “Cunha”, uma pequena loja cheia de títulos antigos e difíceis de encontrar. Em Lisboa vi morrer a “Opinião” (lugar de encontros inesquecíveis), a “Bucholz”, e a “Sá da Costa” (construída de raiz para ser livraria)bem como as alfarrabistas “Camões”, “Burnay”, “Barateira” e outras de que nunca soube o nome embora nelas tenha encontrado e comprado livros. E ainda, já há alguns anos as vizinhas “Portugal” e “Aillaud & Lello”. A Galiza passou é menos interessante depois do desaparecimento da “Michelena” em Pontevedra onde havia um cão que dormia junto das estantes (no plural!) de poesia. De Paris, então, nem consigo saber quantas foram encerradas. Tenho um vago pressentimento que, só nos 5º (Quartier Latin) e 6º (St Germain des Prés/Montparnasse) bairros creio que já contabilizei vinte desaparecimentos entre 1970 e 2000. Desde “La joie de lire” até à “Librairie du Globe” com obrigatória passagem pela opulenta “PUF” que de horas perdidas e encontradas na felicidade de folhear, cheirar, ler e comprar livro após livro. Outras, mais pequenas mas, por vezes, mais curiosas não conseguiram defender-se dos abutres do turismo e do luxo que contaminaram ruas inteiras com restaurantes de baixa, baixíssima, qualidade, de “hostels” quando não de boutiques de luxo onde se não vê viva alma. Neste capítulo Saint Germain bate tudo o resto.

Eu sou um leitor inveterado, viciado, possuído pelo demónio dos livros. Gastei, ao longo de uma vida que já vai longa, uma fortuna (no verdadeiro sentido da palavra) a encher esta casa de livros. Vai para cima de 24000 o que mais do que um exagero é uma tolice arrogante. Nunca conseguirei lê-los todos mesmo se neste grupo haja, à vontade, mais de 4000 títulos de obras de consulta que obviamente podem passar anos sem que lhes toque.

Quando me apaixono por um tema (e eu sou, nesse campo, um incurável pinga-amor) desato a comprar tudo o que lhe diz respeito, sabendo perfeitamente que esse excesso denota mais falta de critério do que razão e bom senso. Sou um biblio-adicto, isto deve ser semelhante ao que se passa com os cocainomanos, só que mais caro.

Todavia, a morte das livrarias, e de uma só vezada apontei seis mais acima, não desconsola apenas os viciados. Mostra, também, e com que crueza, o estado da chamada “cultura” no “torrãozinho de açúcar”. Cresceu muitíssimo o número de editoras mas baixou torrencialmente o número de exemplares editados de um mesmo título. Vendem-se, ou estão à venda, centos de títulos assinados por personalidades do jet set, da televisão ou da política que nos atormentam quotidianamente. Quase desapareceu a edição de poesia e a de teatro – se existe – vive na mais pura clandestinidade. Só de autores portugueses há uma boa centena desaparecida das estantes e das montras. Quem quer, vai por eles aos alfarrabistas. E esses mesmos vão sendo paulatinamente escorraçados da cidade. É o caso, gritante, da “Miguel de Carvalho” em Coimbra. Esta livraria estava na “baixinha”, muito perto das escadas dos gatos e da portagem num sítio que poeticamente se chamava “Adro de Baixo”. A livraria, quase paredes meias com outra (“Minerva”) era muito bonita, confortável e tinha no andar de cima um espaço para o comprador se sentar confortavelmente e folhear o que lhe apetecesse. O espólio era bom e o atendimento impecável. Miguel de Carvalho, o proprietário, pequeníssimo editor de obras surrealizantes, tinha a paixão da livralhada. Abandonara a engenharia pelo incerto comércio das espécies bibliográficas e mensalmente fornecia, por mail, um catálogo das últimas novidades adquiridas e postas em venda. Numa cidade universitária com mais de vinte mil estudantes não encontrou público que garantisse a sobrevivência da livraria. Assim vai a nossa universidade, assim vão os nossos intelectuais e as nossas futuras elites.

A “Leitura”, então é um caso medonho. Começada na década de cinquenta com o nome de “Divulgação” rapidamente se tornou um sério caso de sucesso. Comprei nela, com as primeiras e modestas mesadas, os primeiros livros. Lembro-me mesmo dos títulos de dois deles: “Alguém Mora na outra margem” (Carlos Gabriel) e “Sete poemas para Egéria e notícia para mim” (Helder Grilo Gonçalves -ou Gouveia?). Era obra de um grupo de amigos que, de facto, eram liderados por Fernando Fernandes, um livreiro de mão cheia mesmo numa cidade onde competia com Domingos Lima (Lello) e com três gerações Perdigão (Latina). O Fernando levava a profissão a sério, importava livros de todo o lado, fornecia (oh truque malévolo!...) o “bulletin du livre” a uma série de clientes que retorquam com encomendas volumosas. Outro dos seus hábitos era o de anotar vendas e pedidos de clientes que ele considerava “seminais”. O pedido vinha sempre em duplicado ou triplicado e o livro era proposto a clientes cujos hábitos de leitura parecessem semelhantes ao do primitivo encomendador. Convém lembrar que a “Leitura” começou por se designar “Divulgação” até, na sequência de uma crise de crescimento, se abrir a mais um sócio e se baptizar definitivamente. Morre, agora, anos depois de FF a deixar, sob o nome tolo de Leitura books and living, parvoiçada saloia que denunciava já um morte a prazo.

Agora, e eu pecador me confesso, as tradicionais livrarias começam a ser ultrapassadas pelos circuitos na internet, mormente pela amazon. A razão é simples: através desses gigantescos circuitos conseguem-se livros praticamente esgotados ou há muito desaparecidos das estantes. A Amazon, a Alapage, a Chapitre, a Decitre ou a Abebooks, respondem com qualidade desigual a essa necessidade. Em Portugal a Wook traz-nos a casa com desconto e sem portes de correio livros recentes ou até menos recentes. Todavia, nestes mundos da internet algo se perde e se arrisca: compram-se os livros às cegassem a possibilidade de com vagar os folhear e consultar. Só leitores empedernidos e sabedores do que pretendem se podem arriscar. E mesmo assim...

Depois, as livrarias foram (e algumas ainda são) centros de convívio para já não falar na descoberta sempre entusiasmante de livros de que nunca se ouviu falar. Basta correr as estantes mesmo com um olhar distraído.

(a este propósito recordo que na Figueira, sob o adro da Igreja de S Julião –a principal – havia uma livraria devota animada por duas senhoras mais católicas do que o monsenhor Palrinhas de saudosa (?) memória. Certo dia, nos idos de 60 descobri na montra entre missais e hagiografias piedosas “A semana santa” de Aragon! Todos os meus amigos foram visitar essa montra e ver o lugar de honra obtido pelo romance do comunista Aragon. O que nos divertimos!)

Em Portugal coabitam as mais extravagantes manias. Há anos foram os bancos que, numa ansia de abrir balcões (que agora fecham sem dar cavaco a clientes e trabalhadores), desalojavam veneráveis cafés e pastelarias e desertificavam ruas e praças. Agora, sob a ilusória luz de um turismo que durará enquanto durarem as guerras no Mediterrâneo e os baixos preços do alojamento e da restauração por cá, fecham-se livraria e outras lojas tradicionais. Há ruas que já ó tem prontos a comer de mais do que duvidosa qualidade. O seu tempo será limitado pela concorrência crescente, pelo fim do voyeurismo turístico e pela impreparação profissional dos seus novéis exploradores. As bolhas rebentam sempre mas o que foi destruído já não volta. E o deserto cresce...

 

As gravuras: a preto e branco o interior da ainda Divulgação mais tarde Leitura

Também a preto e branco "La joie de Lire" (Paris)

A cores -se estou certo, o interior da Havanesa (Figueira da Foz)

 

 

 

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