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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Frases que ficam

Incursões, 19.03.09

"Uma vida só se justifica pelo esforço, mesmo desafortunado, de melhor compreender. E melhor compreender é melhor aderir. Quanto mais eu compreendo, mais amo, pois tudo o que se compreende está certo" in O Despertar dos Mágicos

O leitor (im)penitente 43

Incursões, 15.01.09

Um rei mago passou por aqui

“Um pouco mais tarde, Alice disse:
Eu não sabia que os gatos do Cheshire sorriam. Aliás nem sabia que os gatos conseguiam sorrir.
Qualquer gato pode sorrir, disse a Duquesa. E a maioria deles fá-lo.”*

Os leitores da série “o gato que pesca” ter-se-ão surpreendido com um comentário de JSC que desconfia de gatas que escrevem. Erro forte dele. E fatal. Há gatos (e gatas!!!) para tudo. Desde Murr o gato escritor, até Felix o artista do cinema mudo. E ainda não referi o “Dueto para gatos” atribuído a Rossini. Há gatos contemplativos em mosteiros (os chartreux) há os gatos de Siné para não falar do Gato das Botas que tornou rico o seu dono.
Mas a prova provada do poder imenso dos gatos está aqui na minha mão: um pequeno livro de capa amarela, editado a (só) oitenta exemplares rigorosamente fora do comércio.
Eu desejava-o. O livro, claro. Não como livro, tenho demasiados, mas como um livro escrito por um amigo, cuja poesia subtil, densa, viajeira, me acompanha desde os anos sessenta. E é uma longa história, esta, a da poesia de Manuel António Pina que ficaria verde de raiva se eu me atrevesse a qualifica-lo “autor de culto” que já não é pois, apesar da excelente critica que a sua escrita suscita, tem um punhado alargado de leitores que o retira do pacífico anonimato onde tanto autor naufraga.
Esta é a segunda vez que recebo um livro dele, “fora do mercado”, um livro pensado para amigos. É também a segunda vez que, leitor impenitente e comprador compulsivo de livros, pedi um livro a um autor. A primeira foi ao Fernando Assis Pacheco, outro amigo (agora desaparecido da humanal vista embora se saiba ou pelo menos se desconfie que passa tardes a jogar ao voltarete com os senhores Voltaire e Rabelais. “E com o Rilke?”, pergunta a Kiki alvoroçada. “Com o Rilke joga bilhar às segundas feiras e vê futebol: o campeonato da Bundesliga, claro”.) antigo e poeta.
Escrevia acima que quis ter este livro, este especialmente. Não só por que julgo ter todos os outros livros publicados por MAP mas sobretudo porque o considero uma das mais fortes presenças poéticas destes últimos trinta ou quarenta anos. (Aliás já aqui o escrevi um par de vezes. Suponho mesmo que até lhe transcrevi um poema.)
Claro que já li o livro. Ou melhor: claro que já completei a primeira de muitas leituras que dele farei. O milagre da poesia é este: a cada leitura surgem coisas novas, não sei se é o poema que subtilmente vai mudando ou se somos nós que mudamos e continuamente o descobrimos, novo e primordial a cada leitura que dele fazemos.
E foi uma carta das gatas de cá para as gatas conviventes com o Manel que desencadeou tudo isto. Publicada (o gato que pesca 4, em Dezembro pp) pelos meus cuidados nesta barca chamada incursoes (sem til, s.f.f.), sob a forma de garrafa esperançosamente atirada ao mar cor de vinho, arribou a trezentos metros (a voo de pássaro) da minha casa, encontrou as destinatárias, estas miaram e ronronaram o que tinham que miar e ronronar e por intermédio do Arnaldo Saraiva, o livro fez uma perigosa travessia até ao quiosque onde compro o jornal. Hoje pela manhã, a caminho do primeiro café e dos jornais eis que ele me chegou à mão grata e comovida. Entretanto da almirante Kami recebia um mail do Manel António Pina perguntando se o livrinho vencera a aspereza do caminho. Venceu, pois claro, chegou cansado, dentro de dois envelopes mas mal o abri, sacudiu o pó do caminho e mostrou o oiro, a mirra e o incenso de que vinha carregado.
Da esplanada onde depois da bica, li a dedicatória e o primeiro poema, via-se o jardim embrulhado por chuva miúda e persistente. Todavia, olhando bem, adivinhava-se, não o sol de inverno que andará a passear por outros hemisférios mas um finíssimo toque de arco-íris. Não sei se alguém mais o viu, não sei se vocês sabem que quem for até ao fim do arco encontrará um pote cheio de moedas de oiro, mas garanto que no princípio, isto é ali na esplanada, aquecida e deserta o arco-íris começava num livrinho de capa amarela chamado “Gatos”.
Mas isto são coisas que só quem acredita em gatos que falam consegue ver...

* "Alice no país das maravilhas" Lewis Carroll

** Na gravura: fotografia (de Luisa Ferreira) de Manuel António Pina, incluída no livro "Gatos". Acompanha-o a gata Bé (?) se não erro.

estes dias que passam 134

Incursões, 27.12.08

Mesmo em época de defeso…


Como o título indica, nesta quadra excessiva, toda carregada de bons sentimentos e de fervorosas declarções de intenções para o ano que se avizinha, não se devia falar de coisas sérias.
Os dias que medeiam ente o Natal e os Reis são uma espécie de silly season. Toda a gente se apressa a “dar testemunho” da sua escondida predisposição para a bondade e a garantir que fará todos os esforços para tornar o nosso futuro ainda mais radioso.
Todavia, não é o cronista quem está a tentar fazer fogo de qualquer fagulhinha brejeira mas os acontecimentos que o forçam a sair do sério e, abandonando rabanadas e roupa velha, a vir chatear as leitorinhas. E se calhar até vos faz bem: esquecem por momentos os dois quilos com que as festas vos brindaram e que vão demorar semanas a desaparecer…
E vamos á vaca fria (isto é uma velha expressão idiomática portuguesa e não qualquer espécie de menção a quem quer que seja adiante citado(a).)
Umas criancinhas já com barba rija entenderam, numa sala de aulas, durante o que era suposto ser uma aula, apontar uma pistola a uma professora exigindo uma nota positiva. Supondo que a pistola (falsa) se parecia com a uma arma verdadeira, parece natural ou mesmo admirável que a professora sem se intimidar tenha primeiro recorrido a algumas advertencias e finalmente abandonado a sala e apresentado queixa.
As criancinhas, adolescentes retardados mas com barba no meio da acne devem ter-se rido à gargalhada e, para estarem em consonância com a quadra, mandaram o filme dos acontecimentos para o You Tube. Lá terão pensado que se eles se divertiam seria egoísmo não partilharem com o mundo que vê tais alarvidades a sua sã alegria adolescente.
Claro que o escandalo rebentou. A escola já está atarefadíssima a inquirir, diz-se que os rapazinhos terão pedido desculpas à “sôtora”, que esta as aceitou, mas que o inquérito prossegue.
A primeira declaração que me deixa perplexo é da sempre surpreendente directora regional de educação do Norte, aquela mesma que mandou borda fora um funcionário por este, num momento de ócio, ter chamado nomes à mãe do senhor presdiente do conselho de ministros.
A senhora dirigente, de sua graça Margarida Moreira, disse, e cito, que o episódio não passou de “uma brincadeira de mau gosto que excedeu os limites do bom senso”. Analisemos: será que há brincadeiras de mau gosto que não passem os limites do bom senso? Será que há bom senso no mau gosto de certas brincadeiras? Será que uma pistola falsa mas em tudo ou quase igual às verdadeiras não assusta um qualquer mortal? Será que quando nos apontam uma pistola devemos agarrarmo-nos à barriga, romper numa gargalhada e até, para mostrar que apreciamos o humor da situação, convidar o atirador a disparar, como em tempos remotos um francês burro e temerário fez (messieurs les anglais tirez les premiers, terá dito numa batalha que, obviamente, perdeu. Os bifes não se fizeram rogados e limparam logo o sebo a uma boa quantidade de inimigos...)?
Será que isto era só uma brincadeira? Será que trazer a pistola, ameaçar a professora, mandar o filme para o éter é apenas um gracejo de mau gosto, uma pequena judiaria que dada a época natalícia debe ser descontada na ração de rabanadas e bolo rei dos jovens graciosos?
Suponhamos que a professora tivesse tentado tirar a arma ao menino rabino. Teria este entregado a arma ou, à cautela e com um safanão, tentaria frustrar os impetos guerreiros e auto-defensivos da professora? E o resto dos hilariantes coleguinhas? Teriam continuado a filmar, ou pôr-se-iam virilmente do lado do pequeno pistoleiro?
É para isso que servem as aulas mesmo num bairro tão problemático como o do Cerco no Porto?
Agora a senhora presidente do Conselho Executivo, de sua graça Ludovina Costa, ao mesmo tempo que com uma mão manda instaurar um inquérito disciplinar vem com a outra mãozinha “desvalorizar o caso considerando que aquela turma é de miúdos simpáticos”. Ou seja para a dona Ludovina o mau gosto que excede (Jesus! Ninguém ensinará esta gente a falar português?) o bom senso não merecia tanta maçada. A chatice é que isto se sabe cá fora e portanto há que ffingir um inquérito para daqui a dias se saber que na tal escola está “tudo como dantes, quartel general em Abrantes”.
Porque é isso que vai acontecer, não tenham quaisquer dúvidas. Esta gente sempre pressurosa a cascar nos que dizem piadas sobre as autoridades legítimas, acha que os “meninos” mesmo se grandinhos são anjinhos de Rousseau, nada se lhes deve levar a mal. Ou quase: a idade e a “escola inclusiva” perdoam tudo, justificam tudo.
A senhora directora da educação do norte (sublinho este ponto porque esta educação tem pouco a ver com a outra a do dicionário, a que costumamos a ssociar à preparação para a cidadania, para a vida adulta, para o conhecimento, cultura e progrsso humanos) reforça, como aliás se esperaria, o clima natalício de indulgencia plenária. OS miúdos já foram reguilas mas agora, integrados num curso de Desporto (tiro ao alvo?) recuperam do insucesso escolar.
Eu não quero que fusilem as criancinhas, mesmo com armas de plástico, que os condenem ao degredo, sequer que os expulsem da escola. Todavia, estas desculpas que vão condicionar (ou anular) o presumível inquérito apenas servem para evidenciar a cobardia moral e cívica com que se encara o permanente estado de indisciplina nas escolas.
Claro que a grande batalha dos boys e girls que estão amesendados na Educação é outra: quebrar a espinha aos professores, demonstrar que se há indisciplina é porque são estes com a sua insensatez congénita e “corporativa” quem fomenta a ignorância de educandos, a incúria das famílias e o desastre da educação.
Nos intervalos vão fazendo “carreira” e com aplicação e esforço poderão abichar um lugarzinho melhorado (deputado, assessor ministerial) que se for levado a cabo com a mesma dedicação abrir-lhes-á as portas da administração de empresas boas, bancos mesmo, já se viu mais bizarro e ninguém protestou.
É desta farinha que se fazem igualmente os dirigentes do aparelho tal como ( e para não sair do Porto) aquele senhor que vai pescar um transfuga do Marco de Canaveses, indiferente ao facto da dita criatura ter sido o braço direito (ou o esquerdo, não discuto pormenores sórdidos) do ora arguido Torres.
As leitoras, ainda empanzinadinhas com a desbunda gastronómica natalícia, perguntarão se eu não exagero. Não queridas amigas, não exagero. Provavelmente peco por defeito. Faço, tão só, a crónica destes dias tumultuosos. É que, como dizia o Eduardo Guerra Carneiro,é assim que se faz a história: “pois da história se trata. E dos que a fazem. Por vezes pouco seguros de si próprios. Mas com a certeza do que está certo. A história anónima[…] A que nós fazemos. Agora sentados ao sol, á mesa do café.”
O Eduardo, como numa crónica belíssima dizia o Jorge Silva Melo, foi “o poeta que se atirou para as estrelas”. Cansado de muita coisa, da vida, de amores, mas muito, muito de tudo isto. Do quotidiano mesquinho e insuportável que é, queiramos ou não, o quotidiano deste país. Que parece sonhar com o regresso a uma idade cinzenta, com um chefe e muitos súbditos. Com respeitinho e partido único. Sem ideais mas com o lugarzinho assegurado a quem se portar bem. Um país onde os homens se medem pelo que valem em votos, à boca das urnas. Já um brasileiro político famoso dizia no seu manifesto. “Ademar rouba mas faz!”. Ora aí está um belo mote de campanha.

* “É assim que se faz a história” Assirio & Alvim, Lisboa, 1973.

Au Bonheur des Dames 146

Incursões, 29.10.08

Oh happy days!

Há dias assim; ou melhor fins de semana assim: estava eu sossegadinho da silva, a registar uns livros acabados de comprar com a ajuda sempre ineficiente da Ingrid Bergman, a gata amarela que não pode ouvir tocar em papel sem imediatamente se apresentar à espera de uma milagrosa bola (de papel bem amassado) para brincar durante horas, quando apareceu a CG seguida da Kiki de Montparnasse (a gata cinzenta) e, sem ter-te nem guar-te, disse: Vou mudar o meu escritório para a salinha de estudo da Ana. Não quer ficar com ele para pôr lá mais umas estantes e os livros que entretanto vai comprar?
As gatas estavam estupefactas e eu pensei que a CG estivesse a gozar. Uma sala belíssima, o segundo melhor quarto da casa, paredes laterais com cinco metros cada, ou seja sessenta metros de estantes prontas a encher, quem é que não queria?
Murmurei uma vaga aceitação, pois convém não mostrar demasiados arroubos nestas ocasiões. Pelo menos enquanto não soubermos o que a ocasional dadivosa criatura quer em troca.
Nada!, disse. Não queria nada. Ou coisa pouca, pouquíssima. É que, confidenciou-me, pensava que eu não quereria a estante preta que estava na parede esquerda.
A dita estante, se é que tal alboio se pode considerar uma estante, é uma monstruosidade preta (já o disse) de 3x2 metros com tábuas de sete centímetros de largura. Pesa um balúrdio, e veio de uma dessas lojas careiras onde ninguém percebe que uma estante é uma coisa para ter livros e não um o resultado da inteira desflorestação da Amazónia.
Mas a CG tomou-se de amores por aquela monstruosidade e achou que tábuas fortes eram o ideal para acomodar os muitos livros de arte que tem (A CG pinta, ganhou mesmo uns prémios e, nos tempos em que dava à paleta, ganhava o suficiente para ir comprando os carros ,sempre carrinhas para poder trazer as telas sem mexer no cacau que recebia pela profissão dominante). E vocês sabem o peso e o tamanho desse género de livros.
Portanto, a sala vinha inteira e virginal para este vosso criado, desde que eu desmontasse, carregasse e voltasse a montar aquela meia tonelada de madeira. Ai acham que não é meia tonelada? Então venham cá e vejam. Podem ser menos uns quilos mas eu que já não na primeira (nem na segunda) juventude sei bem o que carreguei. E há três dias que nem sinto as articulações.
Portanto, desmontámos a estante. Deitada no chão, claro para ver se não se morria de uma paulada das estantes. Depois carreguei as tábuas para a outra sala e toca de montar o objecto negregado. Como a sala é mais pequena tive de dar às meninges para ver qual era o modus faciendi mais prático. A parte mais larga, montou-se sem grande novidade, levantou-se e escostou-se à parede. Depois havia que lhe juntar uma parte mais pequena com cerca de um metro de largura que teria de ser ajustada á parte maior. O que significava, caso não saibam, fazer coincidir 10 parafusos (ou lá como se chamam com as estantes já montadas no alçado. E aí, digo-vos, aqui à puridade, foi o cabo dos trabalhos. À uma aquilo pesava que se fartava, depois, as estantes propriamente ditas tinham de ser mantidas a direito porwue com o peso podiam torcer os parafusos que as seguravam ao lateral. Enfim, um esforço hercúleo, quiçá o 13º trabalho do herói só que em versão lusitana e com um artista sexagenário! Perdi (foi a única coisa boa) cinco quilos de peso e dois anos de vida futura. Perdi ainda outros tantos dado o copioso número de palavrões que utilizei contra a estante e contra mim que caíra naquela asneira. Deus tem ouvidos, sobretudo ao fim de semana, altura em que os pecadores andam mais buliçosos e propensos ao pecado mortal.
Almoçámos já passava das três da tarde. Recuperei os quilos perdidos (cfr. supra) tal a fome que tinha.
A manhã passara totalmente preenchida com estes trabalhos de alta (e pesada) marcenaria pelo que só à tarde pude ver o correio. Então não é que um par de leitores e uma leitora entenderam afagar-me o ego a propósito das minhas pobres croniquetas com recados tão amáveis que me babei. Notem que eu não sou (nunca fui) modesto e muito menos humilde. Mas esta leitora, Manuela A. amiga de gatos e de jazz, o Alberto B., teólogo amador e leitor compulsivo e o temível e velho partner José (o leitor e comentador que me obriga a pensar e com quem tenho mantido cordiais diálogos por aqui) aliaram-se sem o saber para proporcionar a um escriba (a este escriba) um momento de prazer mesmo se (há que dizê-lo) tenham sido demasiado amáveis e exagerados nos cumprimentos que me fizeram.
Digamos que, apesar da estante preta, pesada, perversa, pavorosa e perigosa, o fim de semana foi glorioso. Quem ganhou com isto tudo foram as gatas a quem ofereci uma latinha de paté (para gatos) com que elas entraram em órbita e a CG que vai receber um sumptuoso álbum da primeira grande exposição de Matisse adquirido num leilão. Ela ainda não sabe mas este álbum é mesmo um caso sério. Excelentes reproduções, textos críticos de rara qualidade e a sombra luminosa e divertida desse mago das cores de quem Pimcrcasso disse uma vez que além de Deus só Matisse o poderia criticar com verdade e rigor.

a gravura representa, está bem de ver, as gatas cá de casa. O título (de um velho gospel) pretende homenagear os amadores de música negra e ocasionalmente os de música religiosa. E esta tema vale bem alguns outros magníficos de canto gregoriano, não?

O leitor (im)penitente 41

Incursões, 26.10.08

A minha avó era uma leitora sui generis. E uma contadora de histórias absolutamente abracadabrante. Capaz de tudo por um final feliz, um final como os que outrora uma escrava lhe contava. Uma escrava comprada para entreter a menina acabada de nascer. Uma escrava dirão? Sim, uma escrava ou algo igual e da mesma substância. As leis generosas e anti-esclavagistas só funcionavam em escassos sítios do Império e seguramente não funcionavam nesse Sul de Angola povoado por tchicoronhos (madeirenses), boers audaciosos e portugueses fugidos do Brasil onde um nacionalismo recente e exaltado não aceitava os portugueses que não adquiriam a nacionalidade brasileira.
A avó, além de contadora de histórias, tinha um fraco por pôr alcunhas. Era mesmo mortífera nesse exercício. Ainda me lembro de um desinfeliz a quem ela apodou de “batata rim”. A criatura nascera para aquele nome!
As escolhas literárias da avó, já o disse, eram inesperadas. Gostava do Ruben A (nos anos 60!...) e de um autor que nos deixava ( a mim e ao meu irmão) perplexos: Pires Cardoso. É que não conhecíamos ninguém com esse nome. O mistério durou algum tempo. Mais propriamente até ao dia em que ela exasperada pela nossa ignorância nos deixou um título: “O anjo ancorado”.
Mas é o Cardoso Pires, bradámos! Ou isso, respondeu a Avó que se tinha apoderado de uma “Retirada dos 10.000” na versão de Aquilino Ribeiro que me tinha sido oferecido por uma namoradinha chamada Judite. E continuou a ler.
Felizmente não conhecia Shakespeare, pelo menos em versão erudita, senão ainda nos tinha atirado com “o que é “um nome?” do Romeu e Julieta, para nos provar que a sua distracção quanto a identificações era uma mera formalidade dispensável entre pessoas de bem.
Lembrei-me de tudo isto ao ler hoje um belo texto de Vasco Pulido Valente sobre o Zé Cardoso Pires.
Eu também faço parte dessa confraria entusiasta de leitores. E isso desde um dia tristonho no colégio Almeida Garrett onde penava e tentava sobreviver lendo tudo o que me passava ao alcance. Numas das raras saídas autorizadas (para um concerto da Juventude Musical vira na livraria Divulgação (hoje Leitura) o livrinho, acabado de sair e, sem saber do que se tratava, gastara a mesada na compra do voluminho. Há exactamente cinquenta anos! Cinquenta anos em que gastei três edições do anjo. Uma dada como penhor de amorios juvenis, a segunda desaparecida por Coimbra, sabe-se lá graças a quem e a última comprada logo a seguir (pela data que ostenta) e que por milagre ainda habita uma estante da biblioteca junta com toda a restante produção do Zé Cardoso Pires.
Conheci-o mesmo e falei com ele um escasso número de vezes. Numa delas contei-lhe a confusão de nomes em que a minha avó persistia. E aproveitei para lhe pedir uma dedicatória um “Delfim” antecipadamente comprado na Opinião para oferecer à Velha Senhora. Nessa noite gloriosa, na “Trave” dos irmão Jaime e Santos, o Zé Cardoso dedicou com palavras carinhosas o seu livro para uma senhora de oitenta anos e assinou “José Pires Cardoso”.
What’s a name? That which we call a rose
By any other name woud smell as sweet

...

Incursões, 02.10.08

 

 From: Nuno de Campos <nunodecampos@gmail.com>

 Olá Marcelo, como vai?

 Queria dizer-lhe que abre na próxima terça-feira dia 7 uma exposição minha na Fundação PLMJ em Lisboa. Trata de uma história que talvez conheça:  Daniel Joaquim de Sousa Teixeira, que tendo participado na falhada operação da LUAR para tomar a cidade da Covilhã, foi preso e morreu na prisão de  Caxias no dia 24 de Outubro de 1968. Tinha apenas  22 anos de idade.

 

O projecto inclui também um arquivo online que vai ser lançado nos próximos dias. Nele vai ser reunida uma série de documentos da época acerca da operação da LUAR, da prisão e morte do Daniel Teixeira, assim como as cartas que escreveu da prisão. O arquivo será aberto a contribuições de pessoas com conhecimento sobre o assunto, ou que tenham em seu poder documentos relacionados com este caso, com a LUAR, com estudantes portugueses em Franca e na Bélgica, ou com esta época em geral. Algum comentário que queira adicionar seria muito apreciado. Queria também pedir-lhe que divulgasse o projecto entre os seus amigos que possam estar interessados.


 

Nuno


vi os desenhos mas como sou um desastre informático não os consegui transpor para aqui. Nem um!

Devo, todavia dizer, que são magníficos e que valem uma deslocação. Não hesitem. Nuno Campos tem um percurso confirmado nos Estados Unidos, onde reside e trabalha e esta é uma oportunidade excepcional de ver o seu trabalho sem a "maçada" de ir a Nova Iorque...  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

voz alheia 4

Incursões, 27.09.08


Eu sei que havia um bote no mar, o mar cheio de água, a água cheia de sal, eu sei, vi a perna baloiçar por sobre a transparência veloz do bote-barco, um semi-rígido com muitos cavalos, era a perna e o colete, era o riso esvoaçando nas alturas impróprias da hora em que os peixes almoçavam e queriam sossego, era isso e mais o limo no fundo do lago, o lago de mar aberto, saindo pela fissura de um canal de areias serenas. Havia o homem inteiro e azul e a mulher semi menina dois quatros de velha e meia pessoa era um ser periliquitante, parecia uma folha, saída de uma primavera. __ Mas espera, não era bem assim, era um tipo e uma miúda, calhou definirem a mesma ilha para se encontrarem, calhou dessa maneira pela razão coincidente de amarem com o mesmo ouvido, a força das ondas batendo no seu coração. Quase assim, estavam mais por ali sentados, cada um na sua ponta de areia, um com headphones a outra mergulhada numa revista, cada um com o seu silêncio fermentado de barulhos sonolentos, assim veio o skipper, assim ofereceu boleia, que venham dizia ele, que venham conhecer o outro lado da ilha, tem muitas terras, muita natureza, tem pescadores buscando peixe com o anzol, tem cabanas de caniço com TV a cores, venham, mostro-vos como as nossas mulheres organizam os filhos na beira do lago, e como o mar, o mar, canta músicas que batucam no centro de uma pessoa para nunca mais sair. Extasiados, levantaram-se e seguiram o senhor do bote, um meio barco valente que enfrentava o morno do sol sem calamidades, vestiram os coletes que não salvam a vida de ninguém, nem protegem o coração de arder pela magia de um bruxo simpático, ele aguentou-se de pé expectante, ela mais matéria de água, montou o bote como quem monta um cavalo marinho, sorriu, a cabeça enrolada numa onda de alívios insuspeitos. O pássaro súbito, cortou a nuvem e mergulhou no pé da moça, beijou um limo verde, falhou de apanhar um peixe, a moça, tocou-lhe com uma asa, mal abriu de regresso ao espaço. - Há coisas, que molham a alma, levam um homem a virar uma lavadeira, segurar o seu coração pela gola, batê-lo na pedra do rio e espremê-lo. É preciso um homem ter um cão que lhe guarde, garanta ao coração que pode ganir, se cair molhar no bico de um pássaro, se cair molhar nos pés de uma mulher. Pudessem os cães cheirar anjos de prata, pudessem luas enfeitiçar-se de lobos morenos, pudesse um homem ter o coração de um samurai. - Foi isso, o que aconteceu. Ela cimentou o homem por causa do pássaro.

Vanessa de Oliveira Godinho

Au Bonheur des Dames 131

Incursões, 11.07.08

Sweet smell of youth


Há dias em que as coisas nos parecem simples, luminosas e conseguidas. Como hoje. E digamos, desde já, que o dia, está mais para lá do que para cá. Há uma chuvisca impertinente, não chega sequer a ser molha-tolos, mas impede o escriba de gozar da sua esplanada favorita como gosta. E os habitués também não estão todos o que tira algum encanto a esta rotina do fim da manhã. Falta, sobretudo, o perdigueiro doido, freguês antigo e animoso que mendigava e conseguia sempre qualquer coisa dos clientes.
Todavia, não é desta manhã húmida que vinha falar mas apenas das primeiras críticas ( e elogiosas!) ao trabalho da Filipa César: “Le passeur”, instalação actualmente em exibição na “Ellipse Foundation” (cfr abaixo dois outros textos sobre o tema). Como disse, faço parte do filme juntamente com o Manuel Simas Santos, outro membro da tripulação do “incursões”. Mais do que isso, faço parte do “inner circle” familiar da Filipa. Sou amigo antigo, antiquíssimo, dos pais, os escultores Elsa César e Jaime Azinheira. Vi a Filipa (e os irmãos) crescer, acompanhei de longe a sua carreira, sou uma espécie de tio avô da Rosa L, a filhita nascida em Berlim a quem desde sempre associo o “Lied” “Röslein auf der Heiden”. Foram aliás essas as razões esdrúxulas que me fizeram aceitar ser filmado.
Sobre estas questões antigas, a batalha contra o salazarismo, o ter sido eventual “passador” de fronteira, durante os dois ou três últimos anos do famigerado Estado Novo, sempre pensei que o melhor era ser discreto. Já basta de tanta gentuça a pavonear-se por aí, pendurada num anti-fascismo as mais das vezes imaginado e silencioso. Os heróis do dia 26 de Abril sempre me pareceram mais rápidos do que o Lucky Luke, o cow-boy que disparava mais depressa do que a própria sombra.
Porém, a Filipa insistiu e insistiu. Em boa hora o fez, os deuses sejam louvados, que o resultado está aí para ser visto por quem se quiser dar ao trabalho de ir até à fundação já citada. E a merecer quase três páginas no “ípsilon”, suplemento cultural do “Público” de que já aqui disse algum mal (eu não entendo como é que num mesmo suplemento se junta tudo a trouxe-mouche, ornando a leitura penosa, complicada e sobretudo, porque o espaço é escasso, deixando muita coisa de fora. No entanto, desta vez há o milagre de duas criticas ocuparem o melhor de 3 páginas!...) que ao meu jornal favorito não perdoo nem uma gralha.
Confesso que me comovi ao ver o filminho (são 34 minutos, uma cagagésima parte do que nós quatro debitámos diante de uma camera atenta, sensível, encorajados pelo ar doce da Filipa e, no meu caso, pela frenética actividade de duas gatas novas para quem aquele estendal de fios era uma tentação absoluta): 2 ecrãs, num o rio corre alegre e inocente sem desconfiar dos dramas que se desenrolavam nas suas margens. Aquele riacho conheceu contrabandistas de café, refugiados da guerra de Espanha e dezenas de jovens portugueses que passavam a salto para fugirem à polícia, á guerra ou ás duas coisas ao mesmo tempo. No outro quatro pessoas de meia idade (uma mulher e três homens), contam tranquilamente a sua implicação cidadã e modesta na aventura de apoiar, proteger, transportar estes fugitivos desde o Minho até à Galiza. Ou, num contado caso, até Bilbau. A realizadora captou-lhes um “brilhozinho no olhar”, muita nostalgia, muita cumplicidade e – atrevo-me – alguma tranquilidade de quem cumpriu um dever de cidadania. Mas, eu estou lá dentro, não consigo ter distância. Se fosse apenas o facto de conhecer a autora, a dificuldade não seria grande. Exerci de crítico as vezes suficientes para não me deixar vencer por amizade, mas desta vez a coisa fiava mais fino. Muito mais fino. Felizmente, duas críticas, que não conheço de parte alguma, permitem-me romper o silêncio. E garanto-vos que isso me faz um bem danado. Estou feliz por mim, pelos meus amigos e, sobretudo, cela va sans dire, pela Filipa. E pela Rosinha, Röslein Röslein rot auf der Heiden...

Este texto vai para Cândida Laurinda Alves Simas Santos, “passadora” de fronteiras que hoje faz anos. Que os repita por muitos e bons.

Na gravura: ilustração de Christine Künzel sob o poema de Goethe que, aliás, está musicado por Schubert. Bons padrinhos, Filipa, bons padrinhos...

O leitor (im)penitente 37

Incursões, 24.04.08

O 25 A já o comemorei: de facto os encontros literários de Matosinhos com o nome de “Literatura em Viagem” realizam-se precisamente nesta altura para ficarem (como diz o Presidente da Câmara, Guilherme Pinto) encostados à data. Ora aqui está uma ideia interessante. E participada, como se comprovou pelos magotes de gente que apareceu durante os quatro dias de discussão, apresentação de livros e actividades conexas.
Este ano a chuva baralhou um pouco as coisas, convenhamos. Parece que o Vereador do pelouro do Ambiente ainda não conseguiu chegar a acordo com o boletim meteorológico e, pasme-se - que falta de qualidade! -, com o grande Manitu senhor das chuvas e dos ventos. Pelo menos pareceu-me ser isto o que ouvi ao Fernando Rocha, Vereador do pelouro da Cultura.
Intrigas municipais à parte, inventadas por quem não consegue encontrar um defeito naquela impecável organização, há que dizer, pela terceira vez, que foram quatro dias muito bem passados.
À uma, isto de umas dezenas de maduros se reunirem para falar de livros já tem muito que se lhe diga. E se lhes juntarmos, como é de inteira justiça, umas centenas de leitores que acorreram para ouvir e interpelar a rapaziada então parece que a aposta de Matosinhos está ganha e com futuro.
Este ano foi dado mais um passo: começou a publicar-se a revista do LeV. Chama-se “Itinerâncias” promete um belo número por ano e a CMM entra com os cacaus. Conhecendo como se conhece a política cultural da maioria das câmaras municipais um cristão fica de cara à banda. Será que Matosinhos está no mesmo pais que, por exemplo, o Porto do dr. Rio?
Como acima já deveria ter dito mas não disse, isto foi um reencontro com um largo par de amigos de há muitos anos alguns, recentes outros, mas todos tocados pelo feio vício solitário da escrita ou da leitura. Alguma vez contarei como aos nove ou dez anos de idade, na confissão que precedia a comunhão, à pergunta se praticava o “vicio solitário”, confessei a leitura às escondidas, e durante as intermináveis horas de sesta que me eram impostas pela minha mãe, de inúmeros Salgaris, Walter Scott, Verne, London, Twain e assimilados. E de como o senhor prior de Buarcos, ao fim de um acidentado percurso de perguntas oblíquas, se convenceu que eu, fremente de piedade e de reino dos céus, o estava a gozar, coisa que retrospectivamente me enche de alegria mas que, na altura, me mortificou terrivelmente. E, aqui para nós, muito à puridade, o verdadeiro e perigoso vício solitário não está essa inocente e juvenil libertação de algum esperma buliçoso, e consequente apaziguação, mas estoutro de ler sabe-se lá o quê.
Mas, regressando ao tema, foi bom reencontrar Fernando António Almeida que veio apresentar o seu “Fernão Mendes Pinto” digressão erudita mas ao alcance de qualquer um da vida e obra do grande viajeiro; o Luis Carlos Patraquim, poeta e critico talentoso, de quem aqui já falei; o António Cabrita que lançou nestes dias de festa “Tormentas de Mandrake e Tintim no Congo” (Teorema); a Isabel da Nóbrega, autora inolvidável de “Viver com os Outros” que já vai em 6ª edição; o Bandeira de Faria que no ano passado aqui apresentou “As Sete Estradinhas de Catete” que me impressionou vivamente; o Nuno Júdice de que também já por aqui falei e que é indubitavelmente uma das mais inovadoras vozes da poesia que se vem fazendo desde os anos sessenta (uma leitora censurou-me há meses por não ter lido o seu “Salomé” – Teorema – que ela entendia ser o melhor romance publicado em 2007. Não garanto que o seja pois faltaram-me muitos mas é definitivamente um excelente texto que não fica atrás da sua obra poética); Jorge Sousa Braga, já por cá citado.
Fora estes quatro primeiros contactos que me encheram de satisfação: conheci o Villa Matas de que sou habitual leitor e que veio apresentar (sempre na Teorema, isto parece publicidade!) “Exploradores do Abismo”, a Adriana Lisboa, o Mempo Giardinelli e o Pedro Mota (autor de "quatro ventos e sete mares" (corre meio mundo, pinta-se de cores esquisitas e trás fotografias e recolhas de histórias e tradições de toda a parte) : Nem sempre se devem conhecer ao vivo os autores que lemos e apreciamos mas com estes quatro não se corre nenhum risco. Espero que voltem mais vezes e que rapidamente se publiquem cá mais livros dos três últimos. Tinha cá em casa, à espera de vez, “Final de novela en Patagónia” e não resisti: estou a lê-lo a meias com as Tormentas de Mandrake... esperando que a cabeça não expluda pelo gozo que ambos me estão a proporcionar.
Nota final desta reportagem atrasada: o perigoso Vereador da Cultura de Matosinhos proporcionou-me uma visita às caves da Biblioteca Municipal para vermos como se tratavam as reservas e os espólios. Já pouca coisa me impressiona mas desta vez tenho de dar o braço a torcer: há ali muito trabalho, excelente trabalho!, gente que gosta do que faz e uma coisa absolutamente essencial para quem quer que lhe prestem um bom serviço público: há ali excelentes, quase únicas, condições de trabalho. Tenho sérias dúvidas que haja cinco bibliotecas melhores do que esta pelo pais fora. E digo cinco porque estou bem disposto e pronto a dizer aos meus camaradas de blog “o meu olhar” e JSC que em Portugal nem tudo é mau, medíocre ou, vá lá, sofrível. E, já agora, dizer ao José Carlos Pereira (JCP) que encontrei uma câmara socialista que fora eu seu munícipe teria sempre o meu voto. Sempre ou quase, depende de quem lá está e de quem lá continuará... É que às vezes a história repete-se e, como dizia Marx (ou como diria eu), nem sempre com bons resultados... E as autárquicas estão à porta coisa que remexe com muitos cavalheiros a quem ficaria melhor ficarem quietos no seu cantinho e perceberem que o seu tempo passou.
Verifico que comecei a falar de livros e acabei a falar de outra coisa: Os leitores contumazes são assim: viciosos e com a mania da política.
Termine-se todavia de modo mais alegre: Manuel Alberto Valente, um dos grandes editores deste país (D. Quixote e depois ASA) fartou-se de aturar as criaturas do grupo LEYA e bateu com a porta. Os amigos gabaram-lhe o gesto mas afligiram-se. Depois dos sessenta anos de idade estes arreganhos têm custos. No caso concreto, o desemprego de MAV durou pouco: é o novo editor literário da Porto Editora. Se isto não é uma boa nova então não há novidades boas em parte alguma. Os da Leya que se ponham a pau que a concorrência dos editores que gostam de livros começa a crescer.

* a belíssima fotografia de cima representa Matosinhos e foi pilhada à Starmoon. Uma beijoca ó Estrela da Lua, quem quer se sejas e onde quer que estejas...

Diário Político 79

Incursões, 08.03.08
Perplexo?
Nem por isso...


A Colômbia, debate-se desde há dezenas de anos com uma guerrilha persistente e tenaz que nunca conseguiu sair da selva, o que prova a sua escassa popularidade, mas que nunca foi vencida o que prova a escassa popularidade dos governos democráticos, ou nem isso, que se têm sucedido em Bogotá.
Ocorre que, de há muitos anos a esta parte, essa guerrilha larvar foi sendo progressivamente transformada numa milícia que se alimenta do tráfico da droga, do negócio dos raptos e tem perdido (se alguma vez a teve) a ideologia original de exercito popular de inspiração marxista (entenda-se marxista tendência latino-americana, o que permite uns pós de messianismo cristão, algum indigenismo e o que o che alguma vez chamou depreciativamente “romantismo revolucionário”).
Ocorre igualmente que mesmo depois da derrocada do bloco de leste, da modificação de inflexão da República Popular da China, do enfraquecimento notório do castrismo-guevarismo, subsistiram no continente americano, focos político-militares animados por algum anti-americanismo (ele próprio sustentando-se da sanha que os yankees despertam nos espoliados do sul) e da confusa e mal digerida herança da teologia da libertação.
A nova situação internacional não só isolou as guerrilhas remanescentes no cone sul e na zona centro-americana mas também as transformou. A ausência de perspectivas de êxito a curto prazo, privou-as de aparelhos políticos legais, de apoio de massas e ou as isolou ou as obrigou a abandonar a luta armada. Na Colômbia, como antes no Peru, a guerrilha que persistiu passou sem grande mérito a um bando que apenas lutava para sobreviver. No Peru, a prisão do principal líder do Sendero e a repressão violenta levada a cabo pelo governo Fujimori liquidou praticamente este grupo e se restos dele ainda subsistem já não é nem uma força nem um risco.
Na Colômbia, país que conheceu um século XIX com doze guerras oito das quais civis, uma “violência” que quase o destruiu entre 1948 e finais dos anos 50 e que tem a mais antiga guerrilha do mundo a que se atribuem, por baixo, 30.000 mortos, para já não falar nas contra-milicias de direita que fazem o possível por igualar as malfeitorias das FARC, é difícil falar de ordem ou de democracia. Todavia o último quartel do século passado e os primeiros anos deste permitiram pelo menos circunscrever as zonas de combate, acantonar uns milhares de ex-guerrilheiros e levar a cabo eleições que não foram demasiadamente escandalosas. Isso fez com que se começasse a tentar resolver o problema da luta armada não só porque os apoios externos começaram a falhar mas também porque o governo “democrático” do país conseguiu algum isolamento dos guerrilheiros.
É neste contexto que irrompem em cena dois factores destabilizadores: a Venezuela bolivariana e o Equador igualmente presa da fúria revolucionária. A guerrilha colombiana sempre tivera alguma facilidade em passar as fronteiras destes países e estabelecer aí os seus santuários, os seus campos de transito e de descanso. Claro que se isto era mais ou menos conhecido não é menos verdade que tais refúgios eram precários uma vez que as autoridades locais não davam apoio político aos membros das FARC. Não davam mas com o advento de Chavez e a progressiva radicalização deste e com a vitória dos seus émulos e seguidores no Equador as coisas mudaram.
A prova, tardia, foi dada há dias pela destruição de uma acampamento guerrilheiro chefiado pelo numero dois das FARC no Equador, o elo mais frágil do novo revolucionarismo bolivariano.
A indignação do governo equatoriano por este atentado à sua soberania seria cómica se não fosse um exercício de hipocrisia. O Equador era o hospedeiro, a todos os títulos benévolo, de uma organização considerada “terrorista” pelas organizações internacionais a que pertence e onde tem voz e assento. Pior, veio alegar que estava em negociações (secretas?) para a libertação não se sabe de que reféns. Para qualquer pessoa de bom senso, a cobertura a uma guerrilha que destrói paulatinamente um pais vizinho com que se têm relações diplomáticas normais, parece configurar um acto de guerra ou pelo menos um acto preparatório. Se alguém se devia mostrar indignado é o pais vítma dessa guerrilha recebida em festa pelo vizinho.
Não foi esse o entendimento do Equador e muito menos o do tonitruante Chavez que já mandou avançar tropas para a fronteira. Também isso é, á luz do direito internacional, um acto pelo menos inamistoso, tanto mais que não consta que o Equador tenha solicitado o seu auxílio ou que houvesse entre os dois países algum pacto militar de entre-ajuda.
Os países da zona, e a OEA, tentam pôr água na fervura. A Colômbia adoptou um perfil baixo mas obviamente não pode, neste momento, deixar de explorar o sucesso que a execução do vice-comandante das FARC representou e provavelmente o conjunto de informações que terá obtido no ataque ao quartel guerrilheiro e que parece terem-se traduzido já na eliminação de outros dirigentes guerrilheiros.
O escândalo pela incursão no Equador parece ter escondido o outro igualmente grave que consiste no apoio de países terceiros à guerrilha.
Fiquemo-nos por aqui antes que alguém entenda que estamos a apoiar os interesses dos Estados Unidos que é o que normalmente se assaca a quem tenta perceber em que mundo vive.
Cabe ainda uma referência ao governo francês. Ao que parece Paris entende que a acção colombiana no Equador diminui as hipóteses de libertação de Ingrid Bettencourt, cidadã com a dupla nacionalidade colombiana e francesa. Paris parece esquecer que além de Ingrid há mais dois ou três mil reféns da guerrilha e que o enfraquecimento desta é preferível ao seu fortalecimento. Por outras palavras, conviria saber se Paris entende dever salvar a sua cidadã a troco de deixar em paz os raptores que poderão dedicar-se a raptar mulheres só do terceiro mundo. Os direitos humanos, versão Sarkozy e Kouchner, têm destas bizarrias.