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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Folhetins da riqueza e da pobreza (1)

sociodialetica, 15.06.12

Pontos de partida

 

1. Partamos de três hipóteses que podem ser provadas, mas que dispensamos de o fazer:

  1. Produzir é criar valor novo, é aumentar a massa do rendimento existente. Criar valor novo exige a realização de trabalho humano. Claro que na atividade produtiva não basta trabalho, tem de haver máquinas e equipamentos, matérias-primas, energia e organização. Todos estes recursos produtivos são importantes, todos estes recursos produtivos permitem que uns produzam mais do que outros e que, mesmo criando a mesma quantidade de valor novo se apropriem de mais ou menos do que os outros, utilizando para tal a concorrência, os preços. Esse valor novo depois de produzido é repartido (salários e honorários, lucros das empresas, juros, rendas, impostos, etc.) e utilizado (para aumentar a produção, para consumir, para doar, etc.).
  2. A sociedade não é homogénea, antes pelo contrário. Uns nascem em berço de ouro e terão tudo toda a vida sem necessitarem de trabalhar e outros trabalham duro toda a vida e não têm o que necessitam para tratar adequadamente da saúde, da educação, da habitação, da própria sobrevivência quotidiana. Chamemos a essas diversas camadas grupos sociais. Muitos dos comportamentos desses grupos sociais podem ser convergentes (ex. promoção da cultura, democratização do ensino, defesa das liberdades formais, etc.) e outros nunca o poderão, porque o que é bom para uns pode ser mau para outros (ex. liberdade material, aumento das diferenças na distribuição do rendimento, influência na atividade política, etc.). Há grupos sociais que têm características próximas de outros, há grupos que são radicalmente diferentes. Se falarmos em termos estritamente económicos podemos dizer que esses grupos são classes sociais. Se incluirmos nesta designação a autoconsciência da sua posição na sociedade, do que os diferencia e do que os aproxima, então muitos grupos sociais não chegam a ser classes sociais. Entre o grupo e a classe entrepõe-se a organização política e ideológica, a força dos meios de comunicação.
  3. A sociedade em que vivemos é capitalista, tendo definido os seus contornos modernos com a revolução industrial inglesa que progressivamente se espalhou por todo o mundo. Uns são proprietários de riqueza, de terras, de fábricas, de serviços, de títulos da bolsa, outros não têm nenhuma propriedade. Entre estes dois extremos há várias intensidades de propriedade. Propriedade é poder de múltiplas formas, desde maiores possibilidades de educação e a integração em redes sociais de elites, desde controlar a produção de coisas decisivas para as populações até terem maiores possibilidades de influenciar a forma como as pessoas em geral pensam, nomeadamente via meios de informação. Há pessoas que conseguem furar individual esta forma de organização fortemente hierarquizada, há muitas formas e processos de alterar a correlação de forças sociais, mas grosso modo poder económico, mais propriedade, e mais nevrálgicas, significa maior possibilidade de influenciar as opções culturais, as ideias que circulam e aquelas que nunca circulam, de fazer opinião pública, de “encostar a faca ao pescoço” dos interesses coletivos, de pertencer a uma elite que partilha entre si o poder político. Por palavras simples, de uma forma estrutural e global o poder económico influencia decisivamente e controla a atividade política e ideológica da sociedade. A democracia altera a forma como tal se processa (por exemplo, em vez da censura ou da proibição de divulgação de “ideias subversivas” organiza-se de certo modo os meios de informação e quase se silencia as leituras diferentes do “politicamente correto”.

2. É partindo destas premissas que vamos fazer uma incursão histórica sobre diversas formas assumidas ao longo dos anos o que podemos designar pela luta entre a vontade de aumentar a apropriação do valor novo por parte dos proprietários da riqueza e dos meios de produção (entenda-se, da grande riqueza e dos grandes meios de negócio) e as dificuldades com que se defrontam. Conflito entre querer ganhar mais e isso exigir ganhar menos do que desejariam. Conflito que desemboca em novas formas de organização do capitalismo, isto é, da sociedade em que vivemos. Incursão histórica que poderá ajudar a entender melhor a situação que atualmente vivemos.

 

 

Salários: custo e mercado

 

3. O primeiro conflito resulta do simples facto de que o aumento dos salários da generalidade dos trabalhadores por conta de outrem faz diminuir os lucros, mantendo-se tudo o resto constante. Assim sendo, e pretendendo os proprietários de empresas terem o maior lucro possível dentro das estratégias que definiram, o mais conveniente seria diminuir os salários. E como podem diminuir os salários? Uma forma é diminuir o montante pago em remunerações, não podendo ir abaixo do que é estritamente necessário para a sobrevivência e reprodução biológica no quadro de uma determinada sociedade. Admitindo que os trabalhadores não estão disponíveis para “solução” surgem diferentes formas de luta e embora os empresários tenham sempre mais força que os seus opositores, o que ganham por uma lado (pagando menos) perdem por outro, pelo menos em parte (greves, instabilidade organizativa, ausência de uma cultura de empresa, etc.). Então, como foi recomendado frequentemente, uma alternativa é através do aumento dos preços, aquilo que frequentemente se designa por inflação. Eis maneiras eficientes de diminuir o salário.

Surge uma dificuldade. Ter lucros não é só produzir mercadorias, sejam elas bens materiais ou serviços, é preciso vendê-las. Estando demonstrada a impossibilidade de só se produzir e vender bens de luxo, se diminuem os salários da generalidade dos trabalhadores por conta de outrem (e profissões liberais), grande maioria da população, estão a diminuir o seu mercado, isto é, a restringir as possibilidades de efetivamente terem lucros expressos em moeda.

“Preso por ter cão e presos por não o ter”. Um dilema, que poderia o bom senso tentar resolver dizendo uma frase sábia: “é preciso encontrar o equilíbrio, é nas opções intermédias que está a sensatez”. Afirmação que morre à nascença porque os capitalistas não raciocinam coletivamente. Raciocinam e atuam individualmente, num processo de concorrência dentro do sector, no país ou à escala mundial, mesmo entre sectores, procurando diversificar as atividades e aproveitar o que é mais rentável. Mas há sempre uma saída, um caminho que agrada a quem tem o poder económico e capacidade de levar à prática as grandes inovações.

A história mostrou duas saídas. Uma primeira é frequentemente atribuída a Ford: “salários mais altos e maior produtividade”. Por um lado aumenta-se estrondosamente a produtividade do sector industrial (ex. produção em cadeia, automação), o que permite que os lucros aumentem mesmo com a manutenção dos salários. Por outro lado o aumento da produtividade diminui os preços das mercadorias pelo que com os mesmos salários os trabalhadores podem melhorar o seu poder aquisitivo. Por outro estão criadas as condições para se poder também aumentar os salários nominais porque o aumento dos lucros permite isso. e assim se alarga o seu próprio mercado, criando poder de compra para absorver os bens que são postos à venda.

Façamos um parêntesis. Do que foi disto não se pode deduzir que só se pode aumentar os salários se houver um aumento da produtividade. Essa afirmação não é uma constatação empírica, é um juízo normativo: para se mantarem os lucros, para se manter a mesma carga tributária sobre as empresas e admitindo que tudo o resto se mantem constante só um aumento da produtividade permite um aumento dos salários. Uma normatividade que muitas vezes não se verifica, como muitos testes econométricos o demonstram. Além disso a relação entre produtividade e salários não é só daquela para estes. Também há a relação inversa: em algumas situações históricas foram os salários mais elevados que geraram desenvolvimento. Estes estimularam o aumento da produtividade, estimularam a utilização de mão-de-obra mais qualificada, estimularam a inovação.

Mas não se fica por aí as possibilidades de resolver o conflito. Infelizmente as empresas precisam dos trabalhadores, pensarão muitos que olham para as suas empresas não como um espaço social mas como um “porquinho de capitalização”. Ainda não há robots que não comem, não precisam de habitação, não têm ambições educativas e culturais e para se reproduzirem não precisam de sexo. E o tal desenvolvimento tecnológico exige trabalhadores mais qualificados, com mais educação. E a educação para além de conhecimentos transmite conceções de dignidade, de leitura da sociedade, de acesso a conhecimentos científicos “subversivos”. E se sempre que vão para o desemprego correm o risco a morrerem de fome pode gerar-se escassez de braços e cérebros para trabalhar, sobretudo em épocas em que os negócios correm às mil maravilhas. E se estão doentes, não se correrá também esse risco? Se precisam de trabalhadores que não morrem quando estão no desemprego, que se podem tratar e educar, só parece haver uma hipótese: pagar salários que permitam eles precaverem-se nessas fases funestas, que possam aprender e melhoras as suas capacidades. A não ser que… é verdade, há outra saída, ser o Estado a tratar disso: educação pública, assistência pública na doença, um conjunto de serviços pagos pelo Estado. Dessa forma poder-se-ia conseguir pagar menos salários, mesmo que uma parte desse valor retido tenha que ser gasto em impostos.

E assim se foi fazendo muitos anos. O que se designa frequentemente por Estado-Providência é o resultado de três movimentos totalmente diferentes, é uma “unidade na ação” de forças antagónicas. Por um lado esse expediente é uma forma de cada empresa pagar menos salários e de uma parte dos encargos com essas atividades ser suportada pelos próprios trabalhadores por conta de outrem. Por um outro corresponde às exigências desses mesmos trabalhadores, é um pequeno resultado da sua luta por uma vida mais digna, lembrando que são cidadãos e não mão-de-obra. Este seria um filme a ser contado noutras histórias, em que se constataria que o chamado Estado Previdência foi a expressão política da afirmação do individualismo, fundamental para a própria expansão do capitalismo.

Retomando o nosso fio da miada e resumindo o que dissemos aqui estamos num dilema: aumentar ou diminuir lucros? Melhor, como conciliar reduzir salários e aumentar as vendas? Este é o primeiro conflito, tanto mais grave quanto estamos num capitalismo em que o seu núcleo central é a indústria, em que o crescimento e desenvolvimento económico passam fortemente pela expansão do mercado interno.

 

4. Como esta conversa já vai longa. Na próxima procuraremos referir o problema do abastecimento de matérias-primas.

Intento (28)

sociodialetica, 05.05.12
"Mais do que uma virtude inata a honestidade é o resultado de um constrangimento externo, fortemente proporcional ao grau de controlo social exercido”
Jean-François Gayraud,. 2011. La Grande Fraude. Crime, Subprimes et Crises Financières. Paris: Odile Jacob. pag. 198

Intento (27)

sociodialetica, 28.04.12
“A existência de uma classe oprimida é a condição vital de toda a sociedade fundada no antagonismo de classes. A emancipação da classe oprimida é a condição vital de toda a sociedade fundada no antagonismo de classes. A emancipação da classe oprimida implica, pois, necessariamente, na criação de uma sociedade nova”
Karl Marx, 1965. A Miséria da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora Leitur, pag 164/5.

Viva o 25 de Abril de 1974

sociodialetica, 25.04.12

 

1. Decorria o ano de 1971.

 

A União de Estudantes Comunistas preparava, obviamente na clandestinidade, mais algumas acções com os estudantes portugueses. Por sugestão do Partido Comunista foram editados uns postais em homenagem à liberdade com uma frase sobre a sua utilização na construção da Revolução Democrática e Nacional.

 

Por muitos esforços que faça não consigo recordar-me nem da imagem nem da frase que a subescrevia. Mas recordo-me da longa discussão que aquela iniciativa teve na Direção da UEC. Muitos de nós defendíamos que a missão das nossas vidas era lutar pela conquista da liberdade mas não acreditávamos que assistíssemos a essa alvorada redentora. Todos nós sabíamos que a liberdade seria obtida mas poucos admitíamos que fosse em nossas vidas. Todos sabíamos que o fim do fascismo era inevitável, mas poucos acreditávamos que estivesse para breve. Uma coisa eram as análises políticas que se faziam, que mostrava que o regime de então abria brechas em várias frentes (colonial, diplomático, económico, etc.), outra coisa era transformar essas leituras racionais numa convicção de curto prazo.

 

O postal foi amplamente distribuído. Continuava o fascismo, amolecido pelo sorriso e hesitações de Marcelo Caetano, mas com a continuação da PIDE/DGS, com as cargas policiais, com a censura, com a guerra colonial, com os mais salazarentos à espera do momento de disferir o golpe. Poucos sonhávamos que em nossas vidas assistíssemos à Revolução de rutura e pudéssemos lutar de face descoberta pela construção de uma sociedade que correspondesse aos oito pontos da Revolução Democrática e Nacional:

  • Destruir o Estado fascista e instaurar um regime democrático;
  • Liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico geral;
  • Realizar a Reforma Agrária, entregando a terra a quem a trabalha;
  • Elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral;
  • Democratizar a instrução e a cultura;
  • Libertar Portugal do imperialismo;
  • Reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência;
  • Seguir uma política de paz e amizade com todos os povos.

Mas foi em nossas vidas que tal aconteceu.

 

 

2. Quando o 25 de Abril de 1974 aconteceu estava em Paris, com minha companheira e dois filhos, um com mês e meio de idade.

Estava em Paris por um conjunto de acidentes.

 

O primeiro foi no início da década de 70 terem-me proposto que passasse à clandestinidade. Em termos práticos significava ser funcionário político, mudar de identidade, passar a residir onde fosse necessário, romper totalmente com a família e os amigos por questões de segurança, aumentar os riscos de ser preso e torturado com maior severidade. Estava de acordo com essa mudança de vida mas diversas contratendências impediram a sua concretização.

 

O segundo, e o mais importante, foi ter havido uma forte investida da PIDE/DGS contra a União de Estudantes Comunistas e vários dos presos terem-me indicado como responsável político por algumas Faculdades de Lisboa.

 

O terceiro, em 1971, na sequência da realização, em Budapeste, da reunião que levou à constituição da União de Estudantes Comunistas. Em Budapeste porque os elementos que iam de Portugal tinham que fazer vários despistes de viagem para não serem seguidos e num país socialista a segurança era maior. Em Budapeste porque assim foi proposto por Álvaro Cunhal e Carlos Brito, membros da direção do Partido Comunista também presentes. Tinha instruções rigorosas para saber qual era a minha “situação conspirativa” ao regressar a Paris, antes do meu regresso ao país. Entretanto soube que já tinha sido denunciado por diversos militantes presos e havia que avaliar se devia regressar ou não. O elemento de contacto em Paris, perante esta informação respondeu “mesmo que tenhas sido denunciado o que queres que eu te faça?”. Limitei-me a dizer “nada” e a apanhar o comboio em Austerlitz. Um pequeno acontecimento que me valeu vários meses de perseguições, ameaças de morte e sobretudo de inquietudes sucessivas para a minha filha, muito bebé.

 

O quarto foi ter fugido de Portugal com dois destinos que se não concretizaram. O primeiro destino seria Bruxelas onde pensava obter o estatuto de “refugiado político” e garantir uma vida relativamente estável com a família. Paris foi mais forte e aí fiquei durante vários meses à procura de emprego e depois a fazer contabilidade de custos numa empresa. Uma Paris que me acolheu na angústia do exílio e na mesquinhez perversa dos emigrantes políticos portugueses. O segundo destino seria Moscovo para onde não fui porque numa das visitas da minha companheira a Paris ela ficou grávida e a burocracia soviética queria alguém para trabalhar sem os impedimentos de dois filhos.

 

Enfim, estávamos em Paris, comigo a ganhar pouco mais que o salário mínimo nacional, a habitar em Bourg-la-Reine num casa com pouca coisa, mas agradável.

 

 

3. No 25 de Abril, as informações que nos chegavam eram de golpe de estado, transformado em revolução pelas manifestações, pelo aparecimento rápido dos partidos políticos que tinham estado na clandestinidade (PC, há décadas, e PS, recentemente), pela dinâmica das populações, pela forte atividade das organizações populares já existentes (como os sindicatos) ou então criadas (comités para isto e para aquilo).

 

Os dias entre o 25 de Abril e o 1º de Maio foram vividos com grande intensidade. Por um lado tudo cheirava a liberdade e ao fim do fascismo. Por outro apareciam os apelos dos militares à calma popular e a figura sinistra do Spínola. Sabíamos que este era uma figura importante no enfraquecimento do regime – pelas suas posições sobre a guerra colonial –, mas também sabíamos que não seria com ele que a liberdade efetiva chegaria.

 

Começámos a prepararmo-nos para regressarmos ao país. Fosse como fosse era lá que tinha que estar. Chegava de ir para a beira do Sena olhá-lo com a nostalgia do mar português. Chegava de não andar com dinheiro na algibeira para não cometer a loucura de comprar um bilhete de comboio para Portugal. Simultaneamente, os filhos exigiam-nos prudência e saída planeada. Na empresa, Ogimex, pediram-me para adiar a saída para encontrarem quem me substituísse. Talvez também para me oferecerem uma comovente festa de despedida. Entretanto chegou-me a convocatória para o serviço militar, mas só para Julho.

 

 

É assim que respondo à pergunta de Baptista Bastos: “Onde estava no 25 de Abril?”

 

Intento (26)

sociodialetica, 24.04.12
 
“Qualquer criança quando, após o aleitamento, se separa definitivamente da mãe e se torna um ser distinto, recebendo dos outros os alimentos necessários à sua existência, passa a ser um devedor. Não dará um passo ou fará um gesto, não alcançará a satisfação de uma necessidade, não exercerá nenhuma das suas faculdades de nascença, sem mergulhar no imenso reservatório de utilidades acumuladas pela humanidade. [sendo] devedor para com todos, [cada homem deve à colectividade um esforço de solidariedade].”
Léon Bourgeois, 1896, in Pech, Thierry. 2011. Le Temps des Riches. Anatomie d'une sécession. Paris: Seuil. pag. 169/70

Intento (25)

sociodialetica, 22.04.12
 “O incognoscível é o fundamento em que repousa todo o nosso conhecimento e todo o nosso saber”
Arthur Schopenhauer in Will Buckinghan, al., Tous Philosophes. Les grandes Idées tout simplement. Editions Prisma, 2011, pag. 136

A mentira sistémica

sociodialetica, 20.04.12
(Imagem retirada de Somente Is@)

 

Alguns portugueses estarão a favor do atual governo, outros estarão contra. É assim em democracia mesmo que a abstenção atinja 99,9% (o que não foi o caso), mesmo que se identifique os portugueses com uma equipe de futebol cuja eficácia dependa do treinador, mesmo que a memória seja curta e a desinformação muita, mesmo que se admire mais o sorriso, o sexy ou o vigor do candidato que as suas ideias, mesmo que se fique inebriado pelo ondular das bandeiras de uma certa cor no vento da manifestação encomendada.

 

Todos amamos a democracia, mesmo que lutemos contra esta forma de democracia. Por isso todos amamos que os membros do governo sejam honestos e sinceros. Quando assim não é estamos perante uma questão de moral, que a todos merecerá condenação.

 

Já não falamos do flamejante verde de esperança – que esvoaça e encanta, rola e rebola pelos corações durante a campanha eleitoral – que se metamorfoseia, por encanto do apregoado realismo antes desconhecido, num cinzento sem futuro, quando governam.

 

Falamos da mentira construída, elaborada, organizada, meticulosamente estruturada, planificada até ao detalhe. A mentira enquanto forma de fazer política.

 

Foi o que aconteceu com o corte dos subsídios de férias e Natal na função pública. O Ministro das Finanças anunciou o corte de meio subsídio em 2011 e afirmou perentoriamente que era uma medida excecional e que não se repetiria. Aqui ainda não mentiu, mas também não falou verdade. No futuro não seria metade, mas todo.

 

Depois o Governo anunciou o corte dos referidos subsídios em 2012 e 2013. Ainda só começava a aumentar a insolvabilidade de muitas famílias, que contaram com essas remunerações nos seus planos de despesa a longo prazo, já o Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares anunciava que se prolongaria para 2014. Poucos acreditaram nessa afirmação, habituados que estamos ao desbragamento linguístico e desfaçatez do mesmo. Quando o Primeiro-ministro vem falar em começar apenas a repor, parcialmente, em 2015 percebeu-se claramente que só a total anarquia governativa ou uma mentira muito bem acordada tinha sido estabelecida. Depois das declarações da Ministra da Justiça prevendo a continuação do corte para além 2015 percebemos que estamos perante uma mentira que devia fazer corar qualquer diabo nas chamas do inferno.

 

Concorde-se, ou não, com esta política, a falsidade e a mentira vai para além dos valores éticos de cada um de nós. Ou será que já nem os temos, até isso deixámos roubar-nos?

 

Crise (2)

sociodialetica, 10.04.12

Artigo anterior (»»»)

 

 

COMO SE MANIFESTOU EM PORTUGAL A CRISE DE 1929/33?

 

1. As crises em capitalismo são diferentes das existentes em modos de produção anteriores. Enquanto que estas resultavam frequentemente de fatores externos (seca, epidemia, etc.) e manifestavam-se por uma falta de produção, nomeadamente do sector agrário, as crises capitalistas resultam da dinâmica interna da relações sociais e caracteriza-se por um excesso de produção, centrado na indústria e nos serviços. Antes as crises eram falta de produção em relação às necessidades, depois passaram a ser um excesso de produção em relação às capacidades aquisitivas da sociedade.

No início do século XX Portugal ainda era um país agrário e atrasado mas o capitalismo já moldava a formação social. As infraestruturas de transportes e comunicações, a exclusividade da emissão de notas por um único banco e a adoção do sistema decimal de pesos e medidas tinham consolidado a existência de um mercado nacional. A estreita dependência da Inglaterra reforçava a participação de Portugal na evolução do capitalismo mundial, que tinha tido a sua grande prova de fogo anterior com a crise de 1891.

Por tudo isto seria de esperar que a crise também aqui se manifestasse quer pelas condições endógenas de funcionamento da sociedade portuguesa, quer pelo sincronismo das crises de então e o alinhamento conjuntural, como referimos, com a conjuntura inglesa. Eventualmente se manifestasse com especificidades. E assim aconteceu.

 

2. O ano de 1929 foi, por razões climáticas, um bom ano de produção agrícola, o que permitiu atenuar os primeiros impactos da crise, mas ela revela-se nos restantes sectores. A produção mineira em toneladas tem a seguinte evolução

 

 

Se conjugarmos estes dados com os da produção de carvão, fonte energética fundamental na época, da produção de pirite, com a produção agrícola em termos físicos, com a produção de cortiça, com as importações totais, vitais para o consumo interno e para o investimento, e as exportações totais, que refletem a articulação da nossa economia com o exterior, chegamos sempre à mesma conclusão: a cise de 1929/33 manifestou-se também em Portugal, começando mais vincadamente em 1930.

A crise 1929/33 chamou a atenção para a importância das cotações na bolsa, então de ações e obrigações, pelo que a partir de 1929 o INE passou a fornecer estatísticas das cotações mensais. Esses dados mostram que podemos considerar como início da descida de cotações na bolsa o mês de Fevereiro de 1929, sendo o mês de Agosto de 1932 o que apresenta o nível mais baixo. Só em março de 1935 é que retoma o nível de 1929.

Designando por depressão a fase do ciclo a seguir à crise, indo do momento em que o produto atinge o nível conjuntural mais baixo até ao momento em que aquele alcança um valor intermédio entre os pontos mais alto e mais baixo anteriores, constatamos que esta crise foi seguida de uma depressão muito longa, indo até 1938/39. Mais seis anos após o fim da crise. Seis anos que conheceram de imediato uma Guerra Mundial que alterou profundamente as condições de análise da conjuntura económica. Fica no ar a interrogação o que aconteceria à economia mundial se não se tivesse desencadeado essa guerra.

 

3. Durante a crise de 1929/33 há uma relação bastante estreita entre as quebras de produção e as baixas de preços e salários. Contudo os preços diminuíram mais do que os salários, pelo que os trabalhadores assalariados conheceram um aumento do poder de compra.

Veja-se o gráfico seguinte do rácio entre o índice de salários e dos preços

 

 

Este aumento do poder aquisitivo veio a funcionar com um amortecedor automático da quebra da produção, criando condições para um aumento do mercado interno de bens de consumo, com impactos desfasados sobre os restantes sectores produtivos.

 

4. Esta crise funcionou de início como suporte à propaganda do Estado Novo. No primeiro ano de crise o relatório do Banco de Portugal fazia o elogio da política orçamental de Salazar, considerando que todos os restantes países teriam entrado numa política de desvario e que deveriam olhar para o exemplo português.

Quando em 1930 a crise começa a atingir-nos mais fortemente e as associações patronais afirmam que a crise está a ser catastrófica (e note-se que ela também se manifesta pelo menos em locais e sectores nevrálgicos da colónias, como o porto do Mindelo, em Cabo Verde) a voz oficial para estes assuntos, o Banco de Portugal, entra numa série de ambiguidades.

No relatório de 1930 é obrigado a reconhecer que a crise também atingiu a economia portuguesa, mas logo de seguida afirma que as especificidades da nossa economia (existência de colónias e sua natureza rural) a protegeram bastante. No relatório do primeiro semestre de 1931 não se refere à crise. No do ano seguinte chama a atenção para o caracter universal do fenómeno, mas logo aproveita o ensejo para afirmar que em todos os países se está a procurar implementar medidas que em Portugal já estavam em curso, nomeadamente o equilíbrio orçamental (ao lado da política tarifária e acordo de dívida de guerra). Em 1932 diz que o desemprego está a diminuir. No ano seguinte volta a reafirmar esses princípios dizendo que felizmente a economia portuguesa continua à margem das grandes perturbações da crise mundial. No ano seguinte não há nenhuma referência significativa ao problema. Só em 1935, quando a própria crise foi utilizada para reforçar a instauração do regime, se tem que admitir que esta crise do capitalismo foi diferente das anteriores, bastante mais grave. Continua-se a afirmar que a situação melhorou, mas apresenta 43359 trabalhadores no desemprego (valor certamente subestimado).

 

5. O período de crise marcou igualmente alguma mudança nas relações internacionais, bem patente na gestão da moeda.

Portugal continua muito ligado à libra, pela importância das nossas relações económicas com a Grã-Bretanha e por princípios estabelecidos no próprio Estatuto do Banco de Portugal, mas desde 1931 começamos a desligar-nos daquela moeda e a reforçar as nossas ligações ao dólar, reforçada em 1933 e 1939.

 

6. Embora reservando para análise posterior a política monetária praticada durante a crise de 1929/33 é importante recordar como então Portugal evoluiu à revelia de toda a tendência de evolução mundial.

Num período em que o sistema monetário de padrão-ouro ia morrendo um pouco por todo o lado (a começar com as crescentes dificuldades de convertibilidade da libra, moeda ainda dominante na arena internacional, que iria desembocar na declaração da sua inconvertibilidade) em Portugal apostava-se no retorno ao padrão-ouro.

O padrão-ouro é oficialmente instaurado através do decreto 19896 de 9 de Junho de 1931. O seu objetivo fundamental é restabelecer a convertibilidade das notas (ou, pelo menos, a sua estreita ligação ao ouro) sendo para tal necessário o restabelecimento dos equilíbrios financeiros, a começar pelos do Estado.

Assim se inicia um período marcado por um comportamento do Banco de Portugal moldado pelos princípios clássicos de fidelidade à lógica do padrão-ouro: limitação da emissão de acordo com as disponibilidades em ouro ou em valores nele convertíveis, garantia da estabilidade cambial e, obviamente, subordinação do crédito interno a aquela situação prioritária. E tudo isto num período de início de rutura aberta da libra e do dólar (no plano interno) e em plena crise de 1929/33.

O cinismo político fez com que se declarasse a convertibilidade das notas em ouro, podendo um seu possuidor o exigir a partir de um determinado montante. Restrutura-se o Banco de Portugal de acordo com essa regra, mas muito pouco tempo depois, pelo decreto 20683 viria a “suspender-se” temporariamente essa convertibilidade, suspensão sucessivamente prolongada. Só muitos anos mais tarde é que se reconhecendo que essa convertibilidade nunca se efetuaria. No entanto as notas continuavam a indicar que representavam ouro, mantendo-se assim até ao 25 de Abril de 1974.