Cartas sem destinatário que as perceba
mcr, 29/30 -09-24
A Juju Cachimbinha tem uma vizinha paralítica que vai combatendo a solidão da doença escrevendo cartas a um número considerável de amigos. Como tempo é coisa que lhe sobra, escreve também a um também numeroso grupo de criaturas (políticas, intelectuais etc.) mas rrserva essas cartas à leitura de um par de amigos. A justificação é a seguinte: “Aquela gentinha cristalizou no ortorrômbico e jamais entenderia as razões que me levam a escrever-lhes. É areia demasiada para a camioneta deles. Ainda não se descobriu mezinha para a burrice sobretudo se misturada com arrogância.”
Espevitadros pela Juju, que sempre foi uma perigosa pasionária, W, Y e eu mesmo, volta que não volta, juntamo-nos a essa infrene correspondência. W entende que esta tarefa faz vem aos humores bilioso e colérico, queira isso dizer o que quer que seja.
Hoje, por exemplo, lembrei-me daquele peru de província que se julga pavão e dá por Ventura. O homenzinho descobriu que uma atitude forte contra os imigrantes que demandam o nosso país, que são mal pagos e quase sempre malvistos dá direito a juntar uma turbamulta de imbecis patrioteiros numa gritaria contra ssa pacífica invasão. Sobretudo se a cor dos recém chegados os distinguir dos indígenas, Ou a religião mesmo se, como é o caso, Portugal seja cada vez menos um filho predilecto da Santa Madre Igreja.
A visibilidade dos imigrantes, o facto de falarem mal ou muito mal a língua, a pobreza que ainda é visível neles, fornece pretextos miseráveis para agressões, desprezo, racismo.
Ventura e a gentinha da sua laia ainda não percebeu (ou finge que não percebeu...o que é ainda mais grave) que essas centenas de milhar de pessoas que chegam tem sido a salvação de milhares de empresas agrícolas, hoteleiras, comerciais e industriaisque já teriam falido sem essa força de trabalho que, ainda por cima é paga abaixo da média nacional.
O principal argumento parece ser o da perigosidade dos imigrantes mesmo se, como se tem verificado, nos maiores centros que os acolhem a média de crimes e delitos seja menor do que a nacional. Também ainda não perceberam que a Segurança social ganha à fartazana com os descontos dos estrangeiros
Há centenas de escolas que correriam o risco de fechar se não houvesse felizmente as crianças (muitas delas já cá nascidas) que as tornam estabelecimentos de ensino viáveis.
Com outra vantagem: os descendentes de imigrantes que frequentam a escola são factores de integração deles próprios na sociedade portuguesa mas também dos pais e restantes familiares.
Esta iracunda multidão que protesta contra os estrangeiros esquece-se do consabido facto d Portugal ser, desde há séculos um pais de emigrantes. As comunidades portuguesas ou luso descendentes espalhadas pelo mundo contam milhões de nascidos em Portugal ou descendentes deles. Imaginemos por um breve momento que no Luxemburgo (com quase 15% de habitantes de origem portuguesa ) começasse a correr que os portugas eram ladrões, violadores ou vigaristas. Já estou a ver e ouvir a gentuça anti-imigrante a bolsar toda a espécie de insultos sobre o Grão Ducado. Juntemos-lhe a França, a Bélgica, a Holanda e a Alemanha onde são centenas de milhares os nossos cidadãos.
Nem vale a pena citar o caso dos quase 500.000 brasileiros (números oficias mesmo se sw suspeite que serão muitos mais) que preferiram vir para Portugal deixando um país que acolheu milhões de portugueses desde o século XVIII. Começa a ser difícil entrar num loja onde não haja um(a) brasileiro/a sorridente e disposto/a a ajudar. O mesmo se diga de cafés ou restaurantes.
Paralelamente, ouve-se uma queixa geral: há falta de gente para trabalhar seja em que ramo for, sobretudo em todos os domínios em que a esforço grande corresponde salário baixo. As confederações patronais avançam um número perturbador: Portugal precisa de 138.000 novos imigrantes anualmente!!”
É neste cenário em que as chegadas não andam longe das saídas de portugueses para a Europa que cerca de três mil ignorantes (para não qualificar mais e melhor as criaturas) desfilaram por Lisboa (e por algumas outras cidades mas em número muito reduzido) ululando ameaças e injúrias aos recém chegados, acusando-os de delitos imaginários, mentindo descaradamente sobre questões de segurança, em suma exigindo controlo severo nas fronteiras.
O impante cavalheiro Ventura lá fez das tripas coração e considerou a manifestação um êxito, repetiu todas as burrices com que orna os seus discursos . Em boa verdade, no ajuntamento político que criou é ele, e só ele, a única voz que se ouve. O mesmo, ou quase, sucede no parlamento deixando a todos a ideia que cinquenta deputados estão ali para levantar e sentar o dito cujo à voz do chefe. De quando em quando e mediante indicação ou licença prévia do “conducator” lá surge um abencerragem (ou uma aventesma, a escolha é do leitor...) que balbucia num português mais do que básico os narizes de cera do costume.
Nunca o parlamento foi tão vociferante como agora mas também nunca produziu declarações tão sem sentido mesmo se é neste pouco conspícuo grupo que o silêncio valeria oiro (e isto não se aplica só às hostes de Ventura , infelizmente. Dir-se-ia que a chegada em massa desta gentinha contaminou boa parte do hemiciclo).
Estamos a entrar no grau zero da política politiqueira e para tal basta recordar que vegeta por lá uma comissão que tem dedicado o seu tempo a uma ridícula qustão de duas gémeas patrocinadas por um familiar do sr Presidente da República.
Neste caso bastaria que S.ª Ex.ª ao receber o mail do querido filho tivesse, como devia, mandado aquilo para “o ventre da mãe terra pelo esófago da latrina” (cito Camilo) A recomendação (ou pedido , ou cunha ) extravasava largamente as competências do Presidente da República e o facto de vir de um familiar directo tornava a coisa ainda mais sensível e estridente. Nem o peticionário deveria ter caído naquela infantilidade nem o destinatário deveria sequer mandar aquilo para qualquer lugar que não fosse o caixote do lixo.
Este caso é, queiram ou não, um não-caso porquanto mesmo sabendo-se que as criancinhas luso brasileiras foram tratadas e que o tratamento foi caríssimo nada indica que tenham passado à frente de quem quer que seja e o facto de terem uma rápida e conveniente nacionalidade portuguesa permiti-lhes ser tratadas no SNS.
Obviamente a rapidez com que tudo se processou deixa um rasto de cheiro nauseabundo mas , convenhamos, não há de ter sido caso único.
Ver um grupo de parlamentares a fingir de inquisidores de meia tijela e a agitar-se em grotescas indignações e perguntas ociosas seria triste se não fosse, como é, ridículo.
No meio disto tudo, e mais uma vez, percebe-se que uma “mãozinha matreira” tenta manipular este pobre teatro de cordel e ou muito me engano ou a coisa tem muito a ver, outra vez, com o sr Ventura de todo o modo ajudado pressurosa e tontamente por gente de outras bancadas.
Será que os membros da comissão alguma vez viram o resumo dos seus trabalhos na televisão? E se viram não perceberam qu aquilo é uma farsa de faca e alguidar ou pelo menos parece assim? Felizmente a coisa passa em português língua difícil para estrangeiros, de modo que escapamos à gargalhada geral de uma plateia internacional.
Finalmente, será que os venturistas e outros istas indignados alguma vez pensaram que habitam um país que todos os anos envia para terras mais hospitaleiras dezenas de milhares de concidadãos que fazem lá o mesmíssimo papel dos desventurados que escolheram Portugal para trabalhar e viver?
Pela parte que me toca, o mais longínquo avoengo de que tenho memória foi um filho segundo das franças e araganças que, por não ter eita nem beira dado não ser primogénito, se juntou a mais outros cavaleiros como ele e veio espadeirar na península ibérica às ordens de D Henrique pai do nosso primeiro rei.
Vinte gerações depois ,um seu diirecto descendente que também se chamava João Martins aproveitou a boleia da família real fugitiva para o Brasil mas não se deixou enredar pelos encantos da corte e rumou ao Rio Grande do Sul onde juntou uma colossal fortuna. Ao mesmo tempo ou poucos anos depois um cavalheiro prussiano chamado Ernst Richard Heinzelmann rumava para as mesmas paragens munido de um canudo de doutor em Medicina. Um seu descendente casaria com uma descendente do fidalgote imigrante .
Desse casamento vem a minha avó Dora Martins Heinzelmann. Também ela casou comum imigrante Alcino Correia Ribeiro, filho, aliás, de outro imigrante nas mesmíssimas terras brasileiras de seu nome José Joaquim Correia Ribeiro. Inteligents, trbalhadores esforçados fizeram, tmbém ele, fortuna nessas terras e regressaram `átria prósperos e dispostos a continuar a fazer pela vida
Não param aui os imigrantes da minha família. Do lado materno, o meu trisavô José Costa Alemão, saiu de Coimbra ainda quartanista de Medicina, passou pelo Brasil e veio fixar-se no Sul de Angola onde criou uma próspera fazenda, foi capitão de segunda linha econtribuiu para o conhecimento geográfico da região por ter mapeado e publicado em relatório o rio Bero, afluentes e dado conhecimento sumário das gentes que habitavam a região. Uma neta sua de nome Aldina, minha avó casou com outro filho segundo, desta feita aalentejano de Niza, que inconformado com a vida religiosa que lhe reservavam, fugiu do seminário, assentou praça e fez toda uma brilhante carreira como oficial do Exército colonial. De certo modo também este meu avô Manuel imgrou. Como, de resto, o mesmo ou quase ocorreu com meus pais que também se mudaram da Figueira da Foz para Moçambique. De certo modo também essa brusca mudança de vida cabia nos limites amplos da emigração. O meu pai era médico e foi para Lourenço Marques reorganizar o serviço médico militar com a patente de capitão. Depois da comissão ficou por lá a exercero o seu mester de João Semana e só regressou em 1973 quando percebeu que havia uma guerra que nunca seria ganha e que o regime lhe exilava um filho e prendia com singular constância o outro
Dois tios e três sobrinhos meus andaram por meio mundo, Europa e Árfica incluídas, a ganhar a vida. Neste momento só uma sobrinha permanece em Inglaterra onde, aliás, estudou e se licenciou. Entretanto, há mais uma boa meia dúzia de primos que, também eles, se espalharam por essa Europa fora e lá continuam.
É em nome dos antepassados e destes actuais familiares que quero reclamar contra os odiosos e odientos inimigos de imigrantes que por aí se perfilam e anunciam milícias infames contra gente que apenas quer uma terra onde posa pacificamente trabalhar, viver, criar filhos e esperança. E riqueza, para eles e para a comunidade que deles necessita e os acolhe.