Cartas a Ribeiro Sanches 1
Como de vez em quando me apetece escrever textos longos em resposta a alguns textos aqui publicados, decidi iniciar mais esta série (isto começa a parecer um armazém de Secos & Molhados...!) porque me parece não convir a forma de comentário. Já há bastante tempo que esta ideia me roía mas o texto do meu caríssimo amigo Delfim Cabral Mendes acabou por me decidir. Aliás o primeiro título pensado foi “Ad usum Delphini” mas essa expressão denota hoje uma explicação truncada e eu não como dessa broa. Escrevo como penso, tento ser honrado e não sonego os aspectos mais discutíveis ou frágeis das minhas opiniões. Adorava fazer esta facécia ao Delfim que é um homem de bem, culto, admirável administrativista, combativo defensor do que melhor há na função pública, católico apostólico romano sem apelo nem agravo, monárquico e, em questões políticas, absolutamente conservador. Temperemos este acervo de qualidades ou defeitos com uma ideia muito minha: as convicções conservadoras nem sempre terão suficiente base científica. E parece-me que o texto “ao que isto chegou" padece de desinformação ou de falta de informação.
A minha caríssima amiga Kamikaze já lhe saltou ao caminho com muita subtileza ao propor a leitura de Notícias do antigamente onde consta um texto meu de que nem me lembrava: “Para onde íamos em Maio? Para Abril!” E ao lado, um outro “Provisórios e Definitivos” cuja leitura ouso recomendar ao Delfim que ainda não nos frequentava.
Dito isto e apresentada a razão de ser desta secção (mais uma, santo Deus!) vamos às nossas encomendas.
Parece que o Banco de Portugal, versão outra senhora, em 74 e antes do 25 A publicou um relatório de onde CM respiga números lisonjeiros que contradiriam o estado agónico do pais. Do pais que nem uma sobrancelha ergueu para o defender.
Portanto: em 25 de Abril ninguém mas ninguém se deu sequer ao trabalho de defender um regime e um governo “cadaverosos”.
O BP diz que havia 500.000 accionistas na bolsa. Deixa porém no tinteiro a real situação dos mesmos. Ou melhor, esquece-se o queriducho BP que o papel comprado por esses 500.000 não valia sequer a tinta em que estava impresso. De facto, a especulação bolsista de anos anteriores tivera dois resultados, ambos funestos. Não só esbarrondara as pequenas poupanças que compraram por 10 o que valia 2 ou 3 mas também depois caiu a pique com grave prejuízo dos pequenos investidores.
A multidão de que o banquinho do Portugal dos pequeninos fala tinha papel mas estava a ver navios... essa multidão por outro lado era fictícia. De facto toda a gente dava o nome (até eu que tive cuidado de nunca meter nessa bolsa crápula e escandalosamente sobrestimada, dei o nome para outros poderem candidatar-se à compra de mais acções que eram rateadas entre uma população de ignorantes que nem sequer aprendizes de feiticeiro eram).
Os 500.000 deveriam efectivamente ser dez vezes menos ou nem isso. Aliás julgo lembrar-me de algo publicado sobre isso.
O poder de compra era de facto superior ao de 1960 mas o banco, não diz porquê. Esquece que as transferências dos militares (mais de 100.000) nas três frentes de guerra eram grandes e vinham acrescentar-se aos salários das mulheres entretanto entradas em massa no mercado de trabalho justamente para substituir esses homens mais o milhão de emigrantes saídos de Portugal nesses 14 ou 15 anos.
É bom que nos lembremos que saíram de Portugal, geralmente homens entre os 18 e os 40 anos que uma vez nas franças e araganças enviavam fortes somas à família. Ou seja tratava-se de riqueza produzida fora e investida cá dentro.
Há depois os réditos do turismo de massas que explodiu a partir dos primeiros anos da década de 60. Foi um maná!!!
O forte investimento estrangeiro de que o BP fala poderá referir parte do que acima se disse e também a tentativa de investidores turísticos e outros começarem a controlar algumas parcelas da economia nacional. Cuidado porém! Quem investe também desinveste como aliás depois se viu....
Em Novembro de 75 diz delfim que a sociedade estava cansada. Pois estava. Além do mais a população de Portugal aumentara em cerca de um milhão de refugiados vindos das colónias, sem eira nem beira nem ramo de figueira. Um milhão Delfim! Exactamente tantos quantos tinham saído durante década e meia.
Essa entrada de cerca de 20% do total da população residente foi um temível desafio à economia nacional depauperada pela fuga de capitais e pelo recuo sensível das transferências dos emigrantes.
Devo dizer que o que me espanta não é tanto o relativo pequeno empobrecimento dos portugueses (e nisso os retornados deram a volta a este pais) mas o ele ter sido tão ligeiro. O nosso caro Delfim parece esquecer ou desconhecer que a grande crise do petróleo foi exactamente coincidente com o fim do Estado Novo e com os inícios do regime seguinte.
Ó Delfim, então V não vê que se o investimento estrangeiro directo cai, se há fuga de capitais, se a população aumenta extraordinariamente, se os militares das colónias deixam de enviar dinheiro, se as transferências dos emigrantes baixam se o petróleo aumenta, que tem por força de diminuir o PIB, o rendimento nacional e tudo o resto? Ai essa economia política....
Vamos passar agora a esse “grande político” que V pensa ter sido o Dr. Caetano, Marcelo para meu desgosto. Delfim: Caetano era tudo menos um grande político. Não era sequer um médio político. Foi indeciso, deixou-se cavalgar pelo almirante Américo Tomás, nunca se impôs ao círculo dos ultras e foi continuamente desprezado por Salazar enquanto este foi vivo. Salazar sabia da poda, Caetano de Direito Administrativo. E basta. Dirá V que Caetano tinha uma cruz familiar de peso insuportável. É verdade. Que tentava fazer o melhor que sabia. Não duvido. Mas sabia pouco e conseguia menos. Porque estava tudo armadilhado à sua volta. Porque pensava que a brigada do reumático era o exército. Porque não foi nunca, ele um professor tão interessante, capaz de explicar nas tristonhas “conversas em família” aos portugueses, nada de coisa nenhuma. Aquilo era um purgatório, meu Deus! O homem tinha menos carisma que um urso amestrado de circo de estrada. Um urso? Uma cabra de saltimbanco! O Dr. Franco Nogueira ao lado dele era um mestre em comunicação.
Caetano em termos políticos era a ilustração viva do célebre panfleto de Lenin: um passo em frente, dois atrás! Morno, mortiço, sem garra nem chispa, sem autoridade nem apoios, manobrista (a célebre abertura aos deputados do grupo Sá Carneiro e o modo como os deixou cair tão depressa) e inepto.
Um político que se preze não se deixa emigrar à força para o Brasil, resiste, vai à luta exige um julgamento político e público. Caetano no Brasil escreve cartas lancinantes mas não se mexe, não conspira, não faz mais do defender-se molemente em cartas particulares que seriam muito interessantes se não fossem politicamente tão insinceras! Que diabo, o homem parece não ter compreendido o cataclismo que lhe caiu em cima. Para quem nos anos da mocidade era tão anti moderno, anti liberal anti inteligentsia anti não sei quantas coisas mais (e nisso já ia não uma verdadeira irracionalidade filosófica mas apenas uma atitude de poseur de costas quentes) foi triste vê-lo afogar-se numa poça de água pouca e pouco clara.
Mesmo o grito sobre as hienas capitalistas se dele é, é inconvincente. Como é inconvincente a condenação tout court do capital especulativo, se a houve. Então as manobras palermoides dos bolsistas de trazer por casa o que eram? E quando foram? Quando um capitalista vê uma hipótese de ganho aproveita. Se o especulativo dá mais que o produtivo pensa V que ele prefere a segunda hipótese? Por favor: tanta inocência não.
A terceira parte do seu texto, caro DLM não tem nada a ver com as anteriores. Também eu sou contra o desmantelamento do aparelho de Estado ainda que, como já aqui terei dito, ou alguém por mim, que há tarefas de que o Estado há muito não se deveria ocupar. E nem é preciso colocar os funcionários públicos no quadro de excedentes. Desde 97 que não há admissões, são já dezenas de milhares os CIT (contratos individuais de trabalho) e anunciam-se novas revoadas do mesmo. Conheço unidades (antigos “serviços”) onde quase quarenta por cento dos efectivos são POCs ou estagiários, ou seja no último caso, gente que vem por nove meses fazer uma perninha de serviço público. Quando já percebem qualquer coisinha, ala que se faz tarde: rua! Ora qui está uma maneira inteligente de perder gente experiente que custou uma fortuna a formar, de desmotivar ainda mais os jovens técnicos superiores, e de fingir que os serviços funcionam normalmente. Num pais sério isto seria um crime. Cá deve ser um virtuoso exercício de contenção de despesas. O dinheiro que sai em borbotões do bolso esquerdo entra às pinguinhas pelo direito. Esta foi a política do PSD/PPD e esta é a do actual PS versão engenheiro José Sócrates. O outro do mesmo nome preferiu tomar cicuta. Este limita-se a beber água. O outro passou à história. Este arrisca-se a ser atropelado por ela. E porventura a dar origem a uma notícia de 8ª página do género: peão ainda não identificado atropelado por uma carrinha de caixa aberta por circular fora da passadeira.
Assim vai o mundo.
A gente vê-se por aí...
Um abraço