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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

Au Bonheur des Dames 52

d'oliveira, 22.02.07
Inês posta em seu desassossego

Anda por aí um autor matreiro que escreveu qualquer coisa como “os almoços nunca são de borla”. Confesso que o título chama a atenção e desperta a curiosidade, mesmo se refere um “mundo cão” (título de um filme de há quase cinquenta anos que terá – se bem me recordo – um assinalável êxito. De todo o modo, há nesse pequeno cinismo literariamente servido uma visão do mundo que está nos antípodas do meu e do dos meus amigos. E é por isso mesmo que resolvi celebrar os almoços de borla. Mesmo os não comidos como se vai ver.
De facto aproveitei estes dias carnavalescos para ir ver a família e tentar encontrar a perigosa Kamikaze, bandeira das malas artes que anda muito arredia destas paragens com a desculpa que está a pôr de pé um centro cultural lá para o Reino dos Algarves. Vai-se a ver e está mas é a preparar a independência desse território além Caldeirão.
E a propósito de independência, antes de entrarmos no assunto que aqui nos traz, que tal darmos já a independência à Madeira, satisfazendo quiçá os apetites do soba local que se demitiu em protesto contra uma lei. Logo ele que nunca respeitou as leis da república e a que, no descoco verbal que pratica chama Cuba ao país que lhe sustenta as bizarrias, vem agora, fulminante, ameaçar com eleições! Que as faça, que diabo, e que vá chatear o indígena para Porto Santo mas que nos deixe em paz.
Algum leitor menos afoito (e reparem que disse leitor, masculino, que se isto fosse com as leitoras, já Alberto João estava há muito posto com dono...) e pouco dado a sangrias na pátria madrasta virá escandalizado dizer que a Madeira é como o Minho ou o Algarve. Falso, leitor, falso, refalso e contra-falso! A Madeira é uma espécie de fenómeno do Entroncamento, dirigida por um cavalheiro que só fala para pedir mais dinheiro, mais regalias, maior diferença. E se não lhe derem ameaça com a independência da “colónia” explorada por Lisboa.
Ora quem já descolonizou forte e feio pode fazer mais um esforço e deixar a “pérola do atlântico” nas mãos da sua ostra. E ala que se faz tarde, arreia-se a bandeira e o senhor ministro da república recolhe a penates. Aviado que está o senhor Jardim voltemos às nossas encomendas.
A minha querida amiga K. tinha-me enviado um mail onde ficávamos de nos encontrar, sic rebus stantibus, durante a minha estadia lisboeta. Sussurrou-se mesmo a ideia sempre fresquinha de um almocinho ainda que com a Kami, os almocinhos são sempre almoços, ágapes, como de resto a senhora poetisa aí de baixo pode confirmar.
O problema, nisto eu tenho um galo incomparável, azar antigo e severo, aquilo que um amigo meu chamava “crespo”, ou seja um galo que além de nítido, culposo e evidente acerta numa criatura e expande-se contra descendentes ou ascendentes (se os primeiros faltarem...) era a data do nosso encontro gastronómico. Claro que, os leitores já adivinharam que a data proposta pela Kami teria de coincidir com a minha completa impossibilidade. E assim foi. Eu a ter de regressar ao Norte na terça pela manhã e a Kami a acenar-me com um almoço nesse exacto dia.
Zás!, contratorpedeiro ao fundo, como se dizia nos saudosos tempos em que a escola era alegre e franca e os meninos, nós todos, ou pelo menos, alguns, jogávamos à Batalha Naval enquanto lá para frente o professor debitava coisas importantíssimas.
Mas isto não pára aqui, e por isso eu ser obrigado a qualificar de “crespo” o tremendo galo que me assolou na manhã de terça feira. Partimos de Lisboa com considerável atraso porque nisto de pontualidade a minha mais que tudo tem uma teoria definitiva: chegar ou partir na hora aprazada é de mau gosto e porventura prova de má educação... E daqui não sai, excepto quanto ao trabalho: aí o terror horário de um largo grupo de amigos e familiares, é definitiva: chega mais cedo mas compensa saindo mais tarde, muito mais tarde. Se isto fosse virtude, ela já era santa ou pelo menos beata. Mesmo antes de esticar! Condoo-me diariamente com a sorte dos seus (dela) subordinados.
Portanto, nós a caminho, já com a certeza absoluta que teríamos de parar durante a viagem para meter uma bucha que nos enchesse a malvada e toca, alvissareiro o telemóvel. Era a Inês ou alguém por ela a cominar-nos para um riquíssimo cozido à portuguesa para a hora do almoço. E nós longe, longíssimo, casa do catorze, cornos da lua, cu de judas!
Que isto de cozidos tem a sua hora certa, não pode esperar. Ora como a convidante, abençoada seja, calculava que estaríamos a menos de meia hora de caminho, telefonava para que déssemos à perna quanto antes para depois já refastelados darmos ao dente. Desta vez, sempre na metáfora da batalha naval, foi o porta aviões que apanhou com um porradão de zaragatoas. Impossível chegar a tempo, mesmo dando ao pedal. Lá se foi um cozido com todos os matadores...
Parámos para almoçar, tarde e a más horas, na Mealhada. Serviram-nos uma coisa a que, por ledo engano de alma (sempre a citar o épico, por via da querida Inês), teimavam em chamar leitão à moda da Bairrada. E às tantas estariam certos. Basta que o actual leitão tenha um vago sabor a sabão amarelo e a consistência de uma pastilha elástica de segunda mão (aliás de segunda boca, para ser mais (neo)realista. Uma ofensa culinária, triste e mesquinha (estão a ver...?) que nós comemos por mera cortesia e muita fome.
Quando finalmente arribámos ao Porto do nosso descontentamento, só parei para descarregar a luz da minha vida e respectiva herdeira, lavar a dentuça e, ala que se faz tarde, para Vilarinho onde, passado que estava o cozido se anunciava um bridge com três parceiros que esperavam ansiosos.
A leitora dirá que depois de um Lisboa Porto sempre a abrir, de um atentado gastronómico a meio caminho, nada justificava ir ao local onde deviam jazer os restos do cozido para jogar cartas. Engano, leitora, engano forte, vê-se bem que não é jogadora de bridge. Entre esta minoria esclarecida do referido jogo, há regras não escritas com o mesmo valor da Magna Carta britânica. Um jogador não deixa em caso algum três outros a olhar para ontem. Só excepcionalmente, em contadíssimos casos (morte de familiar muito próximo, tremor de terra de grau oito, tsunami ou erupção vulcânica de grandeza pompeiana) é que se pode faltar. Hoje em dia, tem-se desenvolvido a ideia que também é justificativo de falta a febre a mais de 38 graus, aneurisma, ataque cardíaco ou membros superiores partidos. Todavia, e como já disse, isto é uma teoria que ainda não obteve o consenso necessário para poder ser considera regra...
Portanto, uma alegre e galhofeira mesa de bridge em Vilarinho. Quatro amigos que andavam por aí um pouco à balda, sem se verem, a bater a bela cartolina durante umas horas. A meiga Inês tirava fotografias a tão insólito encontro. E nós a dar-lhe, usando e abusando de piadas velhas e gastas sobre o mau jogo do parceiro, o desastre dos adversários, enfim o trivial. Já o imortal Terence Reese, grande mestre de bridge, dizia que o melhor de cada partida é no fim podermos insultar copiosamente o parceiro pelas asneiras que cometeu.
O dia acabou como todos os outros. Era já noite cerrada, um de nós tinha de vir para o Porto, a maioria estava abarrotada de cozido, eu enjoado com a coisa que tinha metido para dentro, enfim soou a hora do regresso a quartéis.
Convém dizer que agora com a auto-estrada o percurso é diferente. Saí em último pelo que achei que podia limitar-me a seguir o Luís que ainda por cima tem um Mercedes desses todos desportivos e pequeninos. E de facto, durante os primeiros quilómetros ele ia com tal gana que pensei, descansado, este sabe perfeitamente o caminho do regresso. Oh que fui eu pensar! A viagem que deveria ser curta, dada a proximidade da auto-estrada, converteu-se num circuito por estradas desconhecidas, por entradas e saídas em urbanizações entretanto aparecidas com as últimas chuvas, todas feias, todas tristes, todas uivando de vazio e mau gosto. Um percurso que não deveria ser superior a vinte quilómetros transformou-se numa corrida de obstáculos pior que um safari na Bechuanalândia. Às tantas comecei a temer que estívéssemos perto de Bragança, ou de Chaves, talvez Viseu... Até que subitamente demos de caras com a auto-estrada praticamente às portas do Porto. Que alegria! Que descanso!
Decidi que doravante, não seguirei nenhum médico caçador de perdizes, pescador de trutas e que seja dono de um Mercedes por mais quitado que este seja. Aliás quem é que, no seu perfeito juízo, pode acreditar que um neurologista doutorado é capaz de se entender com as vicissitudes da rede viária nacional?
Pela vossa cara já vejo que a culpa foi toda minha, como a Crazy Grazy me disse quando lhe contei esta peregrinação pelo país desconhecido. Ou por outras palavras não há almoços de borla. Melhor dizendo: não há almoços de qualquer espécie. O mundo está feito para os régulos da Madeira e para quem os deixa continuar assim.

Vai esta para a Inês Amorim, flor das hospedeiras amáveis e rainha dos cozidos à portuguesa e dos patés maison. E para o Zé Portocarrero sugerindo-lhe um bridge para breve.

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