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Incursões

Instância de Retemperação.

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o leitor (im)penitente 47

d'oliveira, 28.03.09

Relembrar o Eduardo

 Como os jornais noticiaram, decorreu  hoje em Famalicão a homenagem ao  Eduardo Prado Coelho. A organização  do encontro pertenceu à Biblioteca  Camilo Castelo Branco que guarda numa sala muito bem arranjada o espólio legado pela família a esta instituição. Terá sido pela mão do Lauro António, outro velho amigo e notável cineasta, que o Eduardo conheceu a biblioteca e as suas gentes. E tão bem impressionado terá ficado que terá manifestado o desejo de ver ali instalada a sua biblioteca, os livros que foi recolhendo pela vida fora, que o entusiasmaram, que o obrigaram a pensar (e que bem pensava ele) que suscitaram textos, notas e criticas. É comovente passar pelas estantes e ver livros que lemos há tantos e tantos anos, livros que deixaram alguma marca ou que simplesmente tinham o perfume de uma época, a da nossa juventude, a dos anos de formação.

Pena é que não estejam lá todos. De facto, uma boa parte da biblioteca de E P C estava á guarda de alguém, noutro local. Foram, ao que parece, dispersos, num leilão. A cor do dinheiro (ou a sua falta de cor e de cheiro) é uma tentação a que poucos escapam…

A homenagem  simples, como felizmente se augurava, e que se segue a já algumas outras também aqui no Norte (Póvoa e Matosinhos), permitiu-me reencontrar um par de velhos amigos, desde os coimbrinhas da leva de 69 (da crise de 69) Artur Sá da Costa, esforçado assessor cultural da CM de Famalicão, e José Manuel Mendes, generoso como sempre, presente como sempre, até ao Lauro já citado, ao Nuno Júdice e ao Fernando Pinto do Amaral.

A CMF pela voz do vereador do pelouro da Cultura já anunciou a criação de um prémio anual de ensaio, com o nome de Eduardo Prado Coelho cuja primeira edição se prevê para 2010. Ora aqui está uma bonita ideia, um excelente projecto e uma oportunidade para o ensaísmo português.

Relembrar o Eduardo é relembrar alguém que sempre se pôs em questão, que sempre se envolveu na vida cultural e na vida politica. Ou na vida, tout court. De facto, para ser mais preciso, o Eduardo lia como respirava, escrevia como comia, admirava como sorria que ele era, além de bem disposto, bastante generoso. Não que não tivesse, como todos, os seus pequenos momentos de dureza, que ele num exagero (irónico?) traduzia por ferocidade. Citando de memoria, ouvi-o (ou li em qualquer parte) “Eu sou muito mau” ou “eu sei ser mau”. Não é verdade. Ou não é de todo verdade. O Eduardo adorava uma boa discussão, não desdenhava de uma polémica forte mas jamais à antiga portuguesa. Traçava limites de boa educação e mesmo quando era duro não era cruel muito menos violento. De resto há por aí um testo dele sobre a violência que diz muito do seu modo de estar no mundo  e na vida cultural.

Eunice Cabral, Professora na Universidade de Évora, acentuou  na sua comunicação a audácia de EPC, a sua irrequietude, a sua constante busca de novidade e o modo como era capaz de mudar de opinião e de se questionar. Eu, que comecei por ser seu leitor e que só o conheci nos inícios de setenta (72 ou 73, no Festival de Cinema da Figueira da Foz) e que só de longe em longe conversava com ele  tenho por certo que o Eduardo pouco mudou no fundamental. É verdade que sentia a moda, as novidades, previa ou futurava algumas atitudes culturais e politicas, mas no essencial, sempre o vi como alguém dotado de uma insanável curiosidade, de uma alegria de viver (e isso pede muito jogo de cintura, como sabemos) tumultuária, de uma gula irresistível fosse por doces ou por livros e filmes. É evidente que uma pessoa assim, mudará com o tempo, com as circunstâncias, com  a idade e as experiências. Mas, citando  a contrapelo  o Príncipe Salina, o de “O Leopardo”, é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma. Ou seja: no essencial, o Eduardo terá mudado muto menos do que parecia lendo-o. Era um intelectual, uma testemunha do seu tempo. Isso foi-lhe afinando o sentido critico, despojou-o de alguns eventuais falsos ídolos de juventude, mas o que aqui interessa sublinhar é a atitude, o estado de espírito perante o mundo à sua volta. E esses sentimentos manteve-os sempre vivos e alerta, mesmo quando isso (e a consciência disso) punham em causa certezas passadas. De resto, se o lermos com atenção (com mais atenção do que eu) veremos que para lá da espuma das palavras, para lá de alguns entusiasmos, de algumas polémicas, há, no que deixa por aí escrito, uma singular unidade.

Estou à vontade para escrever o que escrevi. Vezes sem conta, discordei dele. “Este gajo passou-se!”, “lá está ele!…”,  “este tipo cita demais…” etc… Discordava, como já disse. Irritava-me. Enfurecia-me, mas no dia seguinte, na semana seguinte, ou no livro seguinte, lá estava eu, leitor critico mas fiel, adversário momentâneo mas leal, a surpreender-me com uma frase, um conceito, uma ousadia. E até me comovia, de quando em quando. É que, de quando em quando, aquele diabo escrevia bem. Muito bem, até. Alguém deveria agarrar em meia dúzia de textos desses e editá-los numa pequena plaquette. Para os mais obstinados poderem ver que naquela honrada mina de níquel (metal excelente e bem cotado) aparecia muita e boa pepita de ouro. Como aparecia muita da melhor e mais certeira ironia escrita nestes últimos quarenta anos.

O Eduardo morreu há cerca de ano e meio, se as minhas contas estão certas. Morreu quando parecia que tinha vencido a doença pertinaz que o atormentara nos últimos anos. Morreu cheio de projectos, de serenidade, de esperança. Falámos bastante, enfim tivemos três ou quatro longuíssimas conversas nesse período onde pude perceber melhor algumas das suas qualidades. Rimo-nos a bom rir de nós, dele, de mim, da vida, das partidas que elas nos prega e de certas bem pensâncias  que assolam esta pátria madrasta. Prometi-lhe mesmo uma verdadeira peregrinação gastronómica aos segredos de um bom salpicão, a ele que, num almoço vigiado pela Maria Manuel, se via reduzido a um cozidinho insípido e desconsoladamente confessava uma antiga e secreta paixão por “chouriço” (ele dizia num falsete lutuoso: chóriço) que lhe estava proibido como tantas outras coisas. Prometi-lhe um salpicão dos verdadeiros logo que passasse aquela época de vacas magras. Tempos depois, quando parecia restabelecido, telefonei-lhe  e prometi que em breve esse salpicão lendário lhe apareceria em todo o seu esplendor. A morte chegou primeiro.

 

 

Agora, que ainda não nos habituámos à sua mudez, ao seu silencio violento nas páginas do Público, parece-me que é chegado o tempo de levantar o luto e de lembrar que, se ele viveu com alegria, será com alegria que o devemos recordar. 

 

*a fotografia foi rapinada do blog vává diando onde pontifica o Lauro. Boa leitura, manos, boa leitura..., gand'a Lauro

 

** parabéns Câmara de Famalicão: assim, sim!

 

*** por razões para mim misteriosas o texto saiu com variações de letra e de espaço! Desculpem a culpa é de certeza minha mas mais do que culpa aqui anda erro grosseiro, que vergonha!..

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