Au Bonheur des Dames 179
Se isto não é azar não sei o que será…
Sou um leitor. Um leitor compulsivo, para não dizer guloso. E não digo guloso porque parece que a gula é um feio pecado. Ou era… mas para esses detalhes técnicos o melhor é perguntar ao meu camarada “Mocho Atento” que está muito ao par do catecismo da Igreja católica como já decerto repararam. Pelos vistos, o nosso público leitor é uma “terra de missão” e o meu colega lá vai dando o corpo ao manifesto.
Não partilhando as suas preocupações religiosas, aceito, porém que a palavra guloso talvez não descreva exactamente á minha pulsão livreira. Ou será livresca? O português é uma língua muito traiçoeira. É que agora chamamos livraria não a uma biblioteca, como era o seu primeiro sentido, mas a um local que vende livros. E que livros!
Ora, apostado como ando na recuperação de um português menos politicamente correcto, tenho por mim que salvar do esquecimento velhas palavras e expressões, combiná-las com o português vigoroso que vem de algum calão e da alguma linguagem popular pode ser útil quando se escreve num blog tão up to date como este. Por isso deixo ficar “livreira”. E vou recuperar a “gula”. Ao fim e ao cabo num mundo tão carregado de horrores, a gula até passa por um simpático hábito. Chamar-lhe pecado é quase desconhecer os actuais e mal identificados pecados que roem tudo desde as almas aos rendimentos, escassos rendimentos, dos pobres, dos que ganham o ordenado mínimo, dos que só têm, quando têm o subsídio de desemprego.
Portanto, eis-vos diante de um guloso leitor, de um leitor insaciável que corre que nem uma lebre atrás de um livro desejado. E livros desejados são muitos. Demasiados até. Um martírio se nos pomos a ler jornais e revistas estrangeiras, carregados de novidades editoriais que fazem um santo vender a alma ao Demo se é que as almas ainda têm cotação no mercado.
Mas mesmo em tempos de globalização não é imperioso recorrer à estranja. Por cá também aparecem ofertas escandalosas que põem em movimento uma multidão de alucinados leitores. Refiro-me a essa realidade paralela que dá pelo nome de alfarrabismo. A palavra não existe, claro, mas pode ser inventada. As palavras foram sendo inventadas á medida em que aparecia a necessidade delas, ou não?
Portanto como se não bastassem os meus antigos e estimados pecados apareceu-me esse há um par de anos. Poderia ser pior, por exemplo a próstata a dar sinais de si ou outra coisa igualmente patética que dizima os da minha idade.
Agora que, julgava eu, tinha mais tempo disponível, valeria a pena encontrar um par de livros e pôr em dia os conhecimentos sobre algumas coisas que sempre me fascinaram. Por exemplo o “esforço colonizador” português entre meados do século XIX e os anos vinte, trinta do século seguinte. Ou seja, a construção do “Império”. De facto, apesar de conhecer (e estimar) estudos de grande qualidade (por todos o Valentim Alexandre), apeteceu-me ler os autores da época, os soldados, os aventureiros, os políticos enfim todos quantos se chamavam entre si “os coloniais”. E digo-vos que é um fartote de surpresas.
O problema é que sabe-se como começam estas aventuras mas nunca se tem seguro o fim delas. Nem as ramificações que ocorrem, nem os novos centros de interesse que a busca subitamente pode fazer–nos descobrir. No mundo dos livros as coisas encadeiam-se segundo percursos sinuosos (Ainda hoje me pergunto se teria descoberto o mundo fascinante das sagas islandesas se não tivesse lido Borges…). E o que começara por ser uma mera pesquisa sobre um momento da história portuguesa foi-se alargando a outros campos cada vez mais distantes e diferenciados. Como único ponto comum o facto de serem os alfarrabistas os únicos fornecedores deste género de publicações. O que me obrigou a começar a pedir os catálogos. Que por sua vez me chamavam a atenção para mais e maior variedade de livros.
E é aqui que entra a queixa de hoje. Em princípio as melhores casas alfarrabistas publicam catálogos com alguma regularidade. Convém estar atento e não demorar demasiadamente a encomendar porque, neste mundo relativamente opaco, o livro que aparece é apenas um. E há sempre coleccionadores à espreita. O segredo é chegar em primeiro lugar, coisa que em tempos de internet tem as suas dificuldades.
Há em Lisboa, num local de acesso difícil, uma excelente livraria alfarrabista que apresenta nos seus catálogos livros definitivamente interessantes, definitivamente incomuns e, até á data, definitivamente for a do meu alcance. No mês de Fevereiro fui por meia dúzia de livros dos quais destaco dois curiosos dicionários sobre Moçambique de um AC Pereira Cabral. As edições são recentes (meados de 70) mas com óbice. Tratava-se de livros editados em Lourenço Marques pelo que se difundiram pouco e mal por cá. Não era a primeira vez que os buscava mas nem pelo facto raro de aparecerem os dois juntos tive sorte. Os restantes livros pedidos no mesmo momento também já não estavam disponíveis. Paciência, disse para os meus botões, para a próxima será.
E a próxima foi há dias. Recebi o catálogo e meia hora depois já estava no éter um mail a pedir três livros dos quais o raríssimo “Os negros em Portugal” de Brásio e “A campanha contra os Namarraes” de Mousinho. No meu imponderado optimismo pensei que o preço e a rapidez da minha encomenda me garantiam os livrinhos.
Poupo os leitores à descrição do meu descoroçoamento (a porcaria do dicionário do computador não conhece esta palavra: a culpa desta vez não é da Ministra mas, pelo sim pelo não, vou mandar-lhe um telegrama de protesto).
A melhor, ou pior…, história destes desencontros, tive-a há anos com “A ampola miraculosa”, um poema gráfico de Alexandre O’Neil de finais dos anos quarenta. Tive-o por tuta e meia, quando começava a meter-me no surrealismo mas mão “inimiga” (e sorrateira) tê-lo-á desviado da estante onde eu o guardava. Trinta anos depois dei com ele no catálogo de um leilão. Conhecendo-me como me conheço achei mais prudente confiar a um leiloeiro uma oferta assaz generosa para nã ocorrer o risco de me arruinar num despique. O profissional até me pediu a indicação de mais um ou dois livros pois achava que a minha oferta era irresistível. O livro saiu para a mãos de outro pelo dobro da minha oferta. Segundo leilão, de novo uma “Ampola…” e eu a triplicar a oferta anterior (que diabo, terei pensado, os malucos já acabaram no leilão anterior…). O livro saiu pelo dobro da minha proposta. Desisti. E em boa hora o fiz porquanto saiu uma edição fac-similada que me dá o mesmo gozo porque eu compro livros para ler e reler e não como investimento.
E para acabar num tom menos melancólico: apareceu por ocasião dos centenários, mais precisamente em 1940 um curioso livro de “poemas” exaltando a pátria com o título de “Grandezas de Portugal” da autoria de um esforçado militar muito chegado ás belas letras, o Capitão Joaquim António Pereira. Conheci-o por leitura graças ao António Alçada Baptista e ao Rui Feijó que sabiam dezenas de quadras de cor. Procuro esse livro há vinte anos. Estou disposto a pagar bem. Porque um livro assim já ninguém o faz. Deixo-vos a quadra LXXIX relativa à ínclita geração:
“do rei, rainha e prole,
-conjunto maravilhoso,
saiu uma grande mole,
Um livro destes merece bem uma inteira vida á procura dele. Quem me ajuda?
* a gravura é da série biblioteca procura espaço condigno