Estes dias que passam 155
Carta ao meu amigo
Mário Brochado Coelho
Li, não sei bem onde, que o teu nome, o teu honrado e respeitado nome, corre pelos corredores do Parlamento. Alguém se lembrou de ti para Provedor e, vai daí, entendeu propor-te para esse cargo que além de honroso te assentaria como uma luva.
É que para Provedor, para defender os cidadãos das patetices da Administração, das sacanices da Administração, da inépcia da Administração, da denegação de justiça, pede-se um homem da tua estatura moral, com um passado como o teu, com uma experiência como a tua, forjada na advocacia, na luta e até numa provedoria do cliente dos SMTP do Porto.
Todavia, il y a quelque chose qui cloche la dedans. É que o teu nome é apenas, e só, isso: um nome brandido mas que, por razões várias não será tido em linha de conta. E não será tido em linha de conta não tanto porque os senhores deputados sejam uns incapazes, uns mentecaptos ou uns criminosos. Não digo que, entre aquela multidão que se acotovela nos Passos Perdidos, que vocifera no hemiciclo, que se veste uniformemente mal, que se levanta e se senta à voz dos chefes de fila, não haja gente de mal, gente a quem nem se devem confiar cinco euros para comprar meia dúzia de ovos e trazê-los inteiros e com o respectivo troco.
Eu sei que o Parlamento não é um casino, claro, nem, aliás, quero dizer mal dos casinos tanto mais que neles, nos oficiais, pelo menos, há regras e há inspectores e jogadores atentos. Ou seja, mesmo que o casino pertença a um mafioso ou a uma tríade chinesa, convém-lhe mostrar-se tão legal e tão cumpridor da lei quanto possível. Já lhe bastam os ganhos gigantescos à custa de uns atrasados que lá vão gastar o dinheiro que custa a ganhar, confiados na sorte ou numa martingala qualquer.
O jogo está viciado, caro velho, velhíssimo, Amigo, porque nesta matéria de Provedor ninguém quer um verdadeiro ombudsman (que é daí que vem a figura) mas apenas um gajo porreiro, dos nossos, da malta. Não estou a dizer que os anteriores provedores não fizeram coisa que se visse, muito menos que faltaram aos seus mais elementares deveres. Não. Deixaram, no meio da geral tristeza que é o campo dos cargos públicos electivos, uma esteira de dignidade e alguma obra. Pouca, porque a lei canalha que define a função e seus limites permite demasiadas escapatórias. E porque a Administração se está nas tintas. E porque quando a coisa toca em Ministérios, a luminária que por lá se passeia se ofende, sente-se agredida e manda pôr em prática a famosa inércia. Bem pode o Provedor gritar, uivar, arrepelar os cabelos, rasgar as vestes ou imolar-se pelo fogo. Do lado do poder respondem-lhe o silêncio ofensivo e a inércia cobarde.
Todavia, pelos vistos, o cargo é apetecível e tem sido um couto reservado do chamado Bloco Central. E continuaria a sê-lo não fora uma briga de somenos que, ao crescer, deitou por terra vários nomes dignos sem lhes dar sequer a oportunidade de serem realmente propostos. Não vou deter-me na inanidade dos argumentos trocados porque não dignificam quem os usou e estragam o apetite a quem os tem de citar.
Chegou-se pois a um impasse. Na impossibilidade de obter a maioria qualificada a que a lei obriga, e para tentar estancar o escândalo público em que esta eleição se tornara, entenderam os partidos com assento na AR propor cada um o seu candidato. E é aí que tu entras, pela mão do Bloco de Esquerda que, para o efeito teve uma boleia dada por alguns deputados do PS.
E começa aqui a bambochata: esses cavalheiros socialistas e deputados resolveram dar uma mãozinha ao Bloco mas desde logo preveniram que não te votariam. Ou seja: atiram azeite para as chamas mas não tencionam puxar pelo extintor. Eu, que me tenho por homem de uma palavra, um rosto e uma fé (onde terei ouvido isto?) pasmo. Então propõem um candidato e depois votam noutro? Isto é o jogo do chinquilho, ou quê? E o bloco, que te propõe, sabendo isto, aceita essas assinaturas que não valem sequer a meia folha de papel almaço onde grotescamente se espostejam? Sabe da marotice mas insiste? Afinal, quer ou não participar seriamente na eleição?
Somos amigos desde 1960, meu ano de caloiro numa Coimbra que desabrochava, via Associação Académica, para uma nova maneira de ver o mundo e intervir nele. Fomos companheiros no CITAC, um palco onde a Liberdade se acendia á luz crua dos projectores. Continuamos pelo Porto, fazendo advocacia sindical, defendendo estudantada e restante gente politicamente suspeita. Eu mesmo, farto de malhar com os ossos nas enxovias, constitui-te meu advogado para o que desse e viesse. Felizmente não foi necessário porque o 25 A veio antes. Depois, nem as divergências de posicionamento politico próprias desses anos setenta toldaram o nosso relacionamento. E aqui chegámos, mais velhos, menos ingénuos, mais marcados pelos anos e pela vida mas com a mesma curiosidade e a mesma disposição de combater o mundo que nos fez amigos há quase meio século.
E é por isso que te escrevo. Não critico a tua disponibilidade ainda que a não partilhe. Não aponto o dedo à tua temeridade em te deixares nomear para um circo de feras onde seguramente não te destinam o papel do leão. Ofereço-te, isso sim, um apoio sem reservas mentais e lamento que estejas a correr numa bicicleta sem rodas contra ciclistas veteranos e apoiados. Que desperdício!…
Recebe um forte abraço do
Marcelo Correia Ribeiro