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Incursões

Instância de Retemperação.

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Instância de Retemperação.

Diário Político 127

mcr, 08.11.09

“Die Mauer ist weg”. E o resto?

 (texto escrito em 1989, muito provavelmente em Novembro)

 

 

O Dr. R. foi a Berlim ver o muro com imensos buracos. E tirou fotografia. E pariu texto no Expresso. Tudo isto com dois ou três dias de visita.
 O cronista também já foi a Berlim  - viveu mesmo dois meses em Wedding que, para quem não sabe, é bairro de grandes tradições no sector francês mesmo junto ao muro. Posteriormente o cronista, que há 20 anos se presume de berliner, voltou à cidade dividida e conseguiu, pagando de seu bolso, dormir um par de dias no Kempinsky mas já não havia espiões como nos bons velhos tempos.  Não escreveu para jornal algum mas atafulhou-se de arenque e cebolas e passou ao estreito uma impressionante quantidade de cervejas incluindo no lote umas canecas de Pilsner Urquell von Fass (isto é: à pressão) que é a melhor cerveja do mundo.
 O autor ainda viu a prisão de Spandau nisto ganhando ao saltitante político que, lembrado dos seus tempos de fervoroso salazarista, bem poderia ter vertido uma lágrima por Rudolph Hess o último filho da puta nazi que na dita prisão acabou os seus dias.   Que a terra lhe seja pesada!
 Em resumo o muro esboroa-se e, fora fotografias de circunstância, ninguém em Portugal diz mais nada.  Ou melhor diz que se calhar vai haver problemas com os fundos da CEE.  Donde se prova que a liberdade dos alemães de leste só é boa se não esgotar a teta da vaca leiteira comunitária federal.
 Mas há mais e há pior: sem os espantalhos d'além cortina de ferro como é que o Dr. Cadilhe, o Dr. Cavaco e outros doutores vão poder viver?  Só com a sombra titubeante e gasta do Dr. Cunhal?  A Sibéria passa a começar logo ali em Salvaterra de Magos?
 Mudemos de rumo: e os nossos rapazolas do PCP como é que vão de amores? Afinal sem tanques, sem grândola vila morena sem a inefável gaivota que voava, voava, o pópulo búlgaro, húngaro, polaco, checo, alemão e eslovaco - está a mandar para o caixote do lixo da história a cambada sevandijo-leninista que se governou (desgovernando a peonagem) durante uns largos decénios. Então e os amanhãs que cantam, o paraíso dos trabalhadores,  a sociedade sem classes vai tudo pelo cano da latrina libertária afogados no jorro impetuoso do autoclismo da soberania popular e da representação democrática?
 E agora?   Restam o sinistro Ceausescu, os gangsters chineses, o imortal Kim Il Sung e o pirata das Caraíbas da ilha donde se foge a nado.
 Estou, todavia, a ver alguém de dedinho em riste e acusador a lembrar-me que ele há o Chile, a África do Sul, etc..., etc... Há pois, e à demasiado tempo, embora com algumas notórias diferenças:  de facto nunca se concedeu ao general Pinochet ou aos dirigentes boers qualquer atestado de boa conduta democrática. Direi, aliás, que, mesmo quando nestes locais sinistros houve um qualquer sinal de tolerância, de abertura, nunca ele foi, sequer, valorizado positivamente. Vejamos. Na República Sul Africana há uma imprensa crítica, manifestações de rua, comícios do ANC e o arcebispo Tutu. Chegam-nos diariamente pela televisão os ecos da sua luta como também quotidianamente vão chegando notícias do desmantelamento insuficiente (sou eu que o sublinho) do apartheid. Há anos que a RSA não consegue fazer-se ouvir na ONU e muito menos participar nas Olímpiadas - dir-me-ão que isso foi conseguido pelo metaforicamente chamado bloco afro-asiático. Não é verdade não só porque o bloco apenas funciona conjunturalmente mas, sobretudo, porque o seu peso político nunca correspondeu (até por divergências internas e insanáveis) ao peso numérico. A verdade verdadeira  - e isto desde Allan Patton (autor de "Cry beloved country") e Albert Luthuli (primeiro prémio Nobel da Paz, negro e sul africano)-   nunca a quadrilha boer se atreveu a negar a existência quer da imensa maioria negra esmagada quer o facto de, lá mesmo, haver uma minoria  branca anti-segregacionista.  Os townships, as reservas, os bantustões e toda a vilíssima estrutura político-jurídica foram, desde sempre, denunciadas de dentro, pelos jornais, pela televisão, em livros e panfletos. O senhor Desmond Tutu tem podido, apesar de tudo, ao longo destes anos fazer a denúncia de um sistema injusto, cruel e estúpido. Dir-me-ão que, no entanto, persiste o facto de cidadania ser continuamente, denegada a três quartos da população. É verdade e o facto de se saber isso no estrangeiro não consola de certeza o habitante do Soweto. Mas também não é menos verdade que qualquer negro, indiano ou mestiço sul-africano sabe que tem ao seu lado uma imensa maioria mundial   - tem razões para ter esperança, sabe que o mais pequeno protesto ocupa as páginas dos jornais estrangeiros e, por vezes, nacionais.
 Tomemos agora como contraponto a europeia Roménia onde, de há vários anos a esta parte, só há duas horas de tv  por dia, água quente uma vez por semana. Onde se destruiu todo o centro histórico de Bucareste para construir uma mastaba elefântica para o ditador. Onde vinte mil aldeias estão a ser destruídas e substituídas por um par de centenas de complexos agro-industriais.
 Não há na delirante África do Sul quem se atreva a chamar ao presidente Botha ou a De Klerk Danúbio do Pensamento, Condutor do Povo, Sublime Guia da Liberdade, ou os restantes 28 ditirâmbicos títulos com que essa blasfémia viva que dá pelo nome de Nicolae Ceausescu se auto-baptiza.
 A Roménia é um imenso campo de concentração  onde nem sequer o silêncio é permitido  - há que bradar todos os dias um viva, um hurra, um hossana à família reinante. Na Roménia houve uma greve, a de Brasov que se soldou em milhares de mortos. À mesma escala na RSA já não havia sequer um negro para contar como foi.
 E se não é bom comparar horrores, porque de horrores se trata, também não é de todo tolo dizer que, mal por mal, antes a RSA.
 Mas a  Roménia vai às Olimpíadas e ganha medalhas. A Roménia tem assento na Unesco e na ONU e subscreve todos os tratados de Helsínquia que lhe apresentam.
 Nenhuma empresa está proibida de comerciar com a Roménia e os seus próceres são recebidos em toda a parte. E são escutados mesmo quando o público apenas bate palmas de circunstância.
 E os países africanos, que sempre acusaram a RSA, aceitam embaixadas romenas, agraciam o seu ditador, falam com ele como se desconhecessem que é pior ser húngaro na Transilvânia romena que preto em Joanesburgo.
 O cronista não sabe como é que tudo isto vai acabar. Espera apenas em nome da justiça histórica que o casal Ceausescu não morra na cama e que no Rand, no Transval, no Cabo e no Natal chegue o dia em que a palavra Uhuru não seja só dita nas cadeias. Espera que o lema um homem um voto se aplique  a todas as cores e que a tribo boer seja aceite, apesar de tudo, no concerto das restantes. É que é bom não se esquecer que, ao cone austral de África, foram eles os primeiros a chegar vai para mais de três séculos. E que até aos primeiros anos  deste século a miscigenação, não sendo porventura a regra, era, apesar de tudo, idêntica à do Sul de Angola.
E que, o avanço dos afrikaners para regiões aonde acabavam de chegar zulus, xhosas e outros, foi provocado pela fuga em massa ao domínio inglês.
E que foram estes, agora tão liberais, que introduziram no país, conquistado e dizimado, não só os campos de concentração (os primeiros da história) mas as primeiras leis de separação racial que, verdade seja dita, o Dr. Verwoerd, em 1940,  aproveitou e tornou monstruosas.
Tudo isto afinal para reafirmar que os muros são sempre muros, em Berlim ou em Joanesburgo, em Pyong-Yang ou em Santiago e que não há muros bons e muros maus e, muito menos, muros úteis e muros inúteis.
 PS: os Ceausescu não morreram na cama pese embora o desqualificdo julgamento a que foram sujeitos: não tinham, nem fizeram por ter, direito a mais. Esperemos que a Pinochet suceda o mesmo.

* os leitores terão de fazer o esforço de se reportar ao ano de 1989 para entender todas as referências feitas neste texto. É que não contrabandeio textos, não os alindo nem os mudo. Isto era o que pensava naquele tempo. Isto é que penso 20 anos depois. Na história, os canalhas estão em todos os lados, campos e sítios. 

** a fotografia representa turistas russos em Berlim (Leste)