causas perdidas 1
Notas soltas
O partido do governo mobilizou as suas hostes, ameaçou eventuais indisciplinados e pariu com a cumplicidade de uma esquerda inconsequente uma lei que não é carne nem é peixe.
Se metade desta energia do PS e dos seus súbitos aliados se centrasse nalguns problemas que parecem mais urgentes como é que estaríamos?
Estamos com um crescimento exponencial de desemprego, há regiões inteiras a braços com despedimentos colectivos, temos na fronteira a ameaça de afunilamento das nossas exportações dado que o nosso principal comprador, a Espanha está em circunstâncias tão graves como as nossas o que, de repente, faz lembrar o mau rifão “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”.
Mas o partido do governo e os partidos com que não se entende sequer para aprovar uma lei que minore o sofrimento dos mais pequenos e dos mais frágeis, dos que não receberam da CGD ou de qualquer outra instância sequer uma parcela desses milhares de milhões que foram atirados para o buraco negro de dois bancos malfeitores. Deram hoje o espectáculo de uma discussão de lei onde valeu tudo e onde se disseram sandices inumeráveis. E, neste ponto, o da asneira livre e irresponsável, tiveram, há que referi-lo, o apoio da direita que também não brilhou nem pela inteligência nem pela razão.
Subsiste depois deste voto uma incómoda pergunta: deve ser o Estado a decretar as famosas” mudanças de sentimento social” mesmo se, como se desconfia, tais mudanças deixam grande pare da população indiferente ou claramente mobilizada contra a nova e inepta lei?
É que não entendo por que é que retirada a ideia de que o casamento tem por fim último a reprodução (coisa que os tempos tem demonstrado ser cada vez mais verdadeira) se impedem os casais homossexuais de adoptar? Haverá falta de crianças adoptáveis? Devem reservar-se estas para os casais heterossexuais, que até à data se têm marimbado para a sorte de milhares e milhares de órfãos “armazenados” em instituições públicas e privadas por todo o país?
Os jornais referem que pela primeira vez, se registam mais nascimentos fora do matrimónio do que dentro; que há mais, cada vez mais, uniões de facto podendo mesmo afirmar-se que já superam o número de casamentos, civis e religiosos. Assim sendo porquê esta última trincheira e, sobretudo esta urgência legislativa?
Será que corre por aí o receio que o pedido de referendo (que em escassos dias conseguiu a proeza de juntar mais de noventa mil assinaturas) se transforme em algo tão forte que seja impossível recusá-lo? Será que se teme que o voto popular tenha um sentido contrário ao voto dos pais da pátria?
Já aqui referi a minha posição sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não tenho nada contra. E nada a favor. O casamento deixou há muito de me importar, de me preocupar. Pessoalmente já dei para esse peditório e por mais de uma vez. Vivo em união de facto e, a menos que endoideça, não tenciono mudar tal estado. Assim sendo, compreender-se-á que este debate me pareça bizantino, pequeno-burguês e desfasado no tempo.
Mas há mais: acaso esta lei parola e mal feita resolve o problema da animosidade surda contra os homossexuais? Eu não falo nesse restrito grupo de “happy few” das letra e das artes que vivem em meios relativamente abertos, que pelo seu estatuto, ou pela sua posição social, se podem dar ao luxo de afirmar a sua preferência sexual sem sentirem da parte das pessoas com que se cruzam censura.
Esses há dez ou vinte, ou trinta (ou mais) anos saíram do armário e nada de especial lhes sucedeu. Os meios artísticos onde se movem não os excluem, não os criticam ou afugentam. O problema são os outros, a grande maioria, os que se movem nas zonas mais comuns e menos privilegiadas da cidade e que são atirados (os mais corajosos) para ghettos urbanos onde malvivem e pior sobrevivem. Alguém pensa que a lei agora votade lhes muda minimamente a situação de acosso e de desprezo a que se vêm votados?
E, mesmo entre os há pouco mencionados privilegiados nem sempre as coisas correm assim tão bem. Há uns anos, poucos, conheci uma pessoa de altíssimas qualidades humanas, culturais e politicas. Por isso mesmo, e porque era pessoa discreta, foi chamada a exercer funções politicas num sector da Administração Pública onde a homossexualidade é mais aceite. Pois, o simples facto de ser pessoa de convicções e de carácter foi-lhe fatal: alguns altos quadros dessa mesma zona tão ligada aos valores culturais cedo começaram a referir-se a esta pessoa com apodos mesquinhos que evidenciavam a sua homossexualidade (que como disse era discreta) tentando assim desqualificar a sua intervenção politica. Foi tal o nojo que aquilo me causou que entendi nunca mais voltar a trabalhar naquele sector. Se gente culta e habituada a lidar com o fenómeno da homossexualidade se portava assim, como não seriam os outros?
É por isso que, mesmo correndo o risco (aliás risível) de ser tomado pelo que não sou que entendo que o recurso ao referendo era o mais adequado. Por um lado permitiria ver claramente qual o pensamento da maioria sobre esta questão e por outro permitiria recorrer a soluções alternativas que salvaguardassem os principais direitos que estão em causa quanto às consequências de uma união entre duas pessoas. Estou tão mais á vontade para defender esta solução quanto como calculam não tenho qualquer dúvida em votar favoravelmente a proposta de permitir quer o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quer a adopção de crianças por casais homossexuais. Aliás, se algum dos membros dessa união tiver filhos como é que vão fazer? Tiram-nos a(o) progenitor(a)? Dão-nos a casais “normais”, como em Espanha (depois da guerra civil) e na Argentina há um par de anos, fizeram aos filhos dos “subversivos” mortos?
(este texto inauguram uma série de nome “causas perdidas” e significa panes que não se destinava a ser publicado. Todavia um desafio de João Vasconcelos Costa que mandou a todos os amigos dele uma observação sobre a falta de repercussão nos blogs da discussão parlamentar, fez-me mudar de opinião.)