estes dias que passam 198
"viva la muerte!" ou "Da pequenez indígena"
Uma coisa chamada “associação promotora do livre pensamento” organizou uma romagem às tumbas dos regicidas de 1908. Parece que os cerca de vinte manifestantes pretendiam homenagear a excelsa coragem e as cívicas virtudes dos dois assassinos do rei D Carlos.
Pessoalmente, sou republicano, laico e pouco dado a homenagens funéreas. Tenho pelo rei D Carlos pouca estima embora lhe reconheça alguns méritos, o menor dos quais não será o de entender bem a sua fraca opinião do país que governava. No resto, aparte a sua imensa curiosidade científica os seus razoáveis mas amadores dotes de aguarelista, pouco me resta para o lembrar. Aliás, se alguma coisa o lembra, é justamente esta, o assassínio perpetrado por dois tresloucados, alimentados por uma campanha de imprensa sanguinária e pouco fiel á verdade. O país, este país, vivia desde meados do século XIX num regime liberal, a monarquia era peada por uma constituição que, em seus inícios era mais republicana do que outra coisa, os partidos monárquicos davam sinais de evidente esgotamento e o partido republicano ia ganhando poder, eleitores e câmaras sem grande custo nem, diga-se de passagem, grandes propostas revolucionárias. A intentona do 31 de Janeiro, aliás, significou, mesmo para os seus mais férreos admiradores, que também os republicanos sofriam da portuguesíssima doença da impreparação politica, militar e cultural de que acusavam os seus adversários. Todavia, exacerbou os espíritos, clamou-se vingança pela repressão e esse clima não melhorou com a chegada de João Franco ao poder.
Não vale a pena dedicarmo-nos ao fútil exercício de pensar como seria o país sem regicídio. Como não vale a pena perder demasiado tempo com as extraordinárias aventuras da República e da "revolução" da Rotunda cujo êxito se deve mais à inércia do regime do que à força das suas tropas. Longe estávamos das guerras civis do século XIX mas porventura alguma da sua trágica lembrança terá decidido a tropa monárquica a permanecer no seu canto. A monarquia caiu sem um gesto que a dignificasse e a República foi-se proclamando as mais das vezes por telegrama. Depois, é o que se sabe, muita generosidade e muita burrice (a ideia peregrina de haver uma doença psiquiátrica que conduzia ao delírio jesuítico mostra bem a qualidade da discussão ideológica desses anos). Isto para não falar na perseguição aos sindicatos, no desprezo absoluto pelo campo, na entrada na guerra para legitimar aos olhos da Europa um regime oligárquico de barões e caciques republicanos que excluíam da eleição e da vida política mais de oitenta por cento dos portugueses (das portuguesas nem se fala) e da repressão contra a esquerda. Os dezasseis anos da Primeira Republica foram um reboliço, uma série de intentonas, duas ditaduras e uma semi-ditadura (bem violenta, por sinal), a do Partido Democrático de Afonso Costa que continuaram a alegre tarefa de destruição de um país arcaico até ao momento em que um general, mais um, republicano ainda por cima, montou num cavalicoque em Braga e só se apeou no Terreiro do Paço, ou no Rossio, sem dar um tiro, um único tiro, valha-me Deus!, e zás, República para o caixote do lixo da História, bom dia, dr. Oliveira Salazar e toma lá mais quarenta e oito anos de safanões dados a tempo. E a destempo, claro.
Celebrar com espavento a República já me parece uma toleima, juntar-lhe como querem os seus vinte admiradores do regicídio (e o senhor presidente da Câmara de Castro Verde!...) uma homenagem a dois pobres diabos fanatizados releva de um desprezo absoluto pelo que é a Democracia e a Liberdade. Só os velhacos celebram os assassinos. É preciso muita falta de piedade e maior falta de coragem para exaltar um gesto que sempre, mas sempre, repugnou aos homens de boa vontade. São só vinte, diz-se. São vinte a mais direi eu que não suporto esta gentuça odienta que, agora, em nome de um qualquer pensamento que é tudo menos livre, vem para a praça pública dar vivas aos pistoleiros. Que se juntem aos admiradores de Ravaillac ou do assassino de Jaurés para não ir mais longe. Ou dos assassinos de Machado dos santos, o “herói da Rotunda”. Ou dos sicários da famosa camioneta da morte que circulou por Lisboa, arrancando políticos à família e massacrando-os. E, já agora, dos assassinos que, todos os dias, com bombas, humanas ou não, vão enchendo as ruas do Médio Oriente de cadáveres. Mormente de mulheres e crianças mas isso não os incomoda. Ontem falei aqui dos assassinos nazis. A diferença entre eles e os Buiças deste mundo é que eles viam mais longe, eram mais disciplinados e sistemáticos. Os admiradores esses, são sempre iguais no desprezo pela morte dos outros e pela vida e felicidade dos cidadãos.
“Abajo la inteligência, viva la muerte”, Milán d’Astray está vivo nos corações de muita boa gente. Arre!
* na gravura: assassínio de Jaurés