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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au Bonheur des Dames 237

d'oliveira, 08.07.10

No tempo em que os animais falavam

Deveria sair daqui e ir comprar um molho de espinafres. É o que falta em casa para se fazer uma sopa. Com esta calma (“co’ a calma caem as aves”) o melhor é pôr a empregada a preparar comidas que só nos exijam um ligeiro aquecimento. Quem é que é capaz de cozinhar com um calor destes?

“está de ananazes!....” diz alguém. Discordo. Isto, hoje, está bem pior. Relembro, ou traio, uma descrição de Eça, em que o cronista se encontra com o sublime Fradique. O dia está que parece fogo. A rua transpira vapores e só um que outro galego bate a calçada. Convidado por Fradique combinam esperar por Marcos Vidigal nos aposentos do primeiro bebendo uma soda com limão. O cronista sobe penosamente escadas e escadas até aos aposentos de Fradique. Fala-se vagamente do calor que faz. E, diante daquele exemplo de uma outra, e melhor, raça, o cronista, derrotado, a bout de soufle, luzente de suor e pó e canícula, não consegue articular frase melhor do que esta: “está de escachar!”.  Ou isso ou uma outra ainda pior “está de derreter os untos!”.

Não corre uma aragem. Os meus untos correm líquidos mas sem o consolo de encontrar pela frente o alter ego de Eça. Ou de ser sequer uma pálida imagem do alter ego do alter ego...

E que bom seria encontrá-lo. Pelo prazer de uma conversa, só. E para, por exemplo, lhe dar conta de uma lenta, plácida e tranquila ideia sobre uma história que não cessa de nos bater à porta. Estamos a iniciar o cinquentenário da década de oiro e, de repente, eis que começam a surdir os primeiros balanços do esquerdismo soixante-huitard, do trotskismo de Krivine et alia e do maoísmo francês, o da Gauche Proletarienne.

Este que vos bate à porta da memória fez as suas armas de adulto nesses anos quentes e generosos. E teve, sob alguns aspectos, a melhor das situações. Vivia longe da família, desde os quinze anos, atravessara colégios horrendos de padres & assimilados de onde se aprendia a fugir pelo esconso de uma sacristia, pela balaustrada perigosa de uma parede avarandada, saltando muros apenas para, durante duas ou três horas de noites geladas se respirar o ar santíssimo da liberdade.

Devo a esses antros educativos um par de coisas que muito, e muito, me ajudaram vida fora. Um sólido conhecimento do latim, a ideia forte da lealdade a toda a custa aos companheiros e um desprezo total por verdades reveladas e impostas. E o cheiro, o cheiro profundo, da liberdade.

Dito isto, talvez conviesse ajuntar-lhe o amor da poesia. Nos “salões de estudo” as horas pareciam dias, e os minutos horas. Valeram-me nesses momentos de aflição e solidão, os caderninhos da “Seara Nova” e de outras colecções didácticas com excertos longos da velha poesia portuguesa, desde o formidável José Joaquim Nunes (será este o nome?) e o seu copioso estudo sobre a poesia medieval e pré-renascentista, até ao Rodrigues Lapa. Li tudo desde Sá de Miranda a Rodrigues Lobo, desde Bernardim à Crisfal, desde Ferreira a Correia Garção. E a História Trágico-Marítima, a Peregrinação, as Décadas da Ásia para já não falar dos cronistas. Ou seja, li do bom, do muito bom e do trivial.

A literatura e o bom português foram o meu Prozac, a vacina contra a angústia, contra a lonjura da família. E contra os desvarios da adolescência! Junto-lhe, recordo agora, os concertos da Juventude Musical. Fui lá ter apenas porque pretendia fugir do colégio. Todavia, o milagre da música cedo se impôs e relembro com alguma ternura uma certa D. Ofélia Costa, introdutora da JM no Porto. Espero que esteja entre anjos cantores, músicos amadores e um que outro grande instrumentista. Ela merece-o.

Quando arribei à Coimbra “de lavados ares”, substituindo o negrume do colégio pelo cinzento da Faculdade de Direito, o responso pela tom caviloso dos senhores lentes a recitarem uma sebenta imutável, que aliás comprávamos na “Almedina”, vinha pois vacinado contra alguns “mitos maiores e menores postos em circulação”. E entre eles, a ideia salvífica da revolução. Entendamo-nos: a Revolução é sempre, ou quase, uma boa coisa, mas, para a fazer, não é preciso entrar em ordens. Ou seja, a Revolução é do domínio da Razão e da Liberdade e nunca da Fé e do Dogma.

Para missas, responsos, novenas, exercícios espirituais e outras faenas do mesmo tipo, eu já tinha dado, e em abundância.

Entrei, pois, no movimento, de cabeça fria, disposto a estudar os mecanismos da sociedade nova porque nos batíamos, sem arroubos infantis, sem entusiasmos de converso e com uma fé mais que limitada nos postulados dos materialismos histórico e dialéctico. Li aplicadamente todos os clássicos (mas não O Capital de que só arranhei o primeiro volume, tão pouco os “Grundrisse” que, na época, suscitavam furor pasmo. Baldei-me igualmente ao medonho Materialismo e empirocriticismo, um emplastro leninista apropriado para abater melgas, traças e baratas mas indigesto até dizer chega e, para a revolução portuguesa, manifestamente inútil.

Todavia, não só de ensaios se faz(ia) a cultura revolucionária. O aplicado aspirante a transformador social, além de aprumado, limpo e pontual (como o bom filiado da Mocidade Portuguesa) havia de ler força de romances instrutivos e épicos sobre a época heróica que se vivia e os amanhãs que seguramente cantariam.

Dentre a cabazada de romances vagamente apologéticos de uma ortodoxia a toda a prova, relembro com desgosto (antigo e actual) O cavaleiro da Esperança, Les Communistes, Como o Aço foi temperado, para não falar nalgumas versões indígenas de igual pobreza estilística e narrativa.  E, esquecia-me, Os Subterrâneos da Liberdade, uma das poucas coisas que não perdoo a Jorge Amado.

Fora isto, o ar sisudo e uma barba condigna, a revolução fazia-se num diário combate nas estruturas associativas académicas, em organismos culturais, nas assembleias gerais. E em intermináveis, mesmo se instrutivas, tertúlias de café.

A informação de que se dispunha, quer sobre o país, quer sobre o estrangeiro era, por razões óbvias, escassa. A censura, evidentemente, mas também anos e anos de retórica reviralhista que fazendo tábua rasa dos “desastres” da 1ª República, das cumplicidades no 28 de Maio, incapaz de perceber as obras do regime, esquecida da política violentamente anti-operária (que deixaria República inerme perante o assalto dos novos arautos da Nação e da Ordem) e desmemoriada quanto à situação da Mulher (relembre-se que o voto feminino e as primeiras mulheres a entrar no Parlamento são posteriores ao naufrágio da 1926) mantinham a Oposição desarmada. Teórica e praticamente. As campanhas eleitorais até Delgado (e mesmo essa) martelavam a exigência do sufrágio alargado e do regresso às liberdades fundamentais mas eram omissas quanto a medidas concretas que se diferenciassem claramente da política do Estado Novo. Nem mesmo o meritório Programa para a Democratização da República (1961) preencheu cabalmente esta lacuna. A ausência de vida democrática, de uma imprensa livre e multifacetada, os silêncios tácticos, as ambiguidades estratégicas reduziram a oposição interior portuguesa a um conjunto de solilóquios que se ignoravam quando não se sobrepunham. O grande crime do Estado Novo terá sido exactamente esse: secou a vida intelectual própria e alheia. A Direita repetia Alfredo Pimenta ou vivia à sombra (e com os favores) do Regime. Tudo isso embrutecidamente envolvido num celofane católico e rural. A Igreja portuguesa ia a Fátima, publicava O Cavaleiro da Imaculada e outras necedades e não tinha no seu seio, sequer nas JOC ou na JUC, um contraponto de peso. Meia dúzia de contestatários sem raízes e, muito menos, eco na comunidade, não podem mesmo com a lupa histórica de hoje merecer mais do que três linhas. Aliás o catolicismo português estava descristianizado desde há séculos, era beato e amorfo pelo que pedir ao pilriteiro que desse peras era esperar apenas mais um milagre. E os milagres no segundo e terceiro quartéis do século XX eram exageradamente raros.

Não admira, portanto, que a juventude universitária, ou pelo menos a sua elite dirigente, que acampava na oposição, se mostrasse extremamente receptiva à propaganda do Partido Comunista.  Este propunha-lhe uma “teoria”, um exemplo heróico, uma mitologia e uma critica radical ao passado (du passé faisons table rase) cuja virtude era mais do que discutível.

Foi este o caldo de cultura que permitiu que em Portugal o radicalismo “esquerdista” nado e criado nas estruturas juvenis do PC, substituísse, ilidisse, banisse, qualquer arroubo social-democrata. Da França vinham livros e revistas  cuja leitura acrítica, inconfrontável com a realidade francesa que se desconhecia, introduzia ainda uma maior distorção na já depauperada análise da realidade nacional. Entre 1965 e os primeiros anos de setenta, a esquerda movente portuguesa, alimentou-se sucessivamente da revolução cubana revista pelo Che e pelo nefasto “révolution dans la révolution” de Régis Debray, pelo anti-colonialismo radical de Fanon e dos seus apóstolos europeus (e omite-se aqui piedosamente o nome de um maître a penser europeu que afirmava convicto que o colonizado que mata um colonizador liberta duas pessoas, o falecido e o assassino...), pela crónica romanceada mais além do absurdo da Revolução Cultural que nos transmitia uma China pujante que lançava hordas de jovens guardas vermelhos contra os burocratas, os camponeses, os citadinos, o aparelho do Partido e toda a cultura antiga do velho império.  Já antes, anos cinquenta, o Grande Salto em Frente e todos os desvarios a ele devidos, tinham sido celebrados como aceleradores de revolução. A felicidade presente era postergada pela futura, a fome actual era garantia de fartura próxima, a cultura velha era varrida pelo vigor bárbaro das multidões ululantes que empunhando um livrinho vermelho, papagueavam todos os solecismos revolucionários. Mao, o grande timoneiro, voltava a atravessar um rio impetuoso, nadando contra corrente e contra os cadáveres dos velhos combatentes da Longa Marcha. Dez, vinte, cinquenta milhões de mortos depois, os discípulos do velho revolucionário aturdiam a  Europa rica martelando slogans copiados de 1917 num mundo espesso e opaco em que o proletariado que eles queriam despertar ia para férias em Espanha e começava a gozar as delicias da sociedade de consumo. Felizmente havia o Vietnam, a luta heróica de um punhado de camponeses contra o grande Satã. Mais tarde, saber-se-ia, que o punhado de combatentes da sombra se compunha de dois milhões de soldados norte-vietnamitas, que a grande ofensiva do Tet se saldara com um infamíssimo e desnecessário número de mortos. Dez, cem, centenas, contra um, como os americanos não cessavam de afirmar sem que o mundo, ou a América, sequer, os acreditasse. Quando o mundo despertou (não para a justeza da causa vietnamita, mas apenas para a tragédia dos boat people continuava igualmente desarmado para enfrentar o problema.

A esquerda mais radical (e jovem) nasceu nisto, cresceu com isto e passou das crises de fé católica para o anúncio dos paraísos marxistas-leninistas purificados por Pequim e Tirana, sem dúvidas e muito menos hesitações. Eram guerrilheiros da Nova Verdade e não seriam os pequenos revezes de um quotidiano implacável que os abalaria. Não admirará que, o golpe militar de 25 de Abril (uma outra divina surpresa, recebida com desconfiança, deve dizer-se) a tenha lançado num surpreendente assalto ao Palácio de Inverno, numa ânsia de queimar etapas que durou, se durou, dois verões. Desconheço – e pouco importa – se, por exemplo o MES solicitou ao PC uma reunião urgentíssima para lhe comunicar pomposamente que a sua análise da situação política indicava que a Revolução estava à mão de semear pelo que, oh ironia!, propunha ao PC que este assumisse as suas responsabilidades bolcheviques. Quem antes inventara o juramento de bandeira do RALIS e colaborara no golem dos SUV poderia continuar o seu intranquilo delírio com esta e outras fantasias. Como partido, o MES era já só a organização de Lisboa e pouco mais. Na província, o confronto com o real imediato, desmentia os slogans e os jornais da organização. Nada era como se afirmava e tudo tendia a ser exactamente o contrário.

Porém, quem entra na Revolução como numa ordem missionária tem, para além da realidade tristonha de que descrê, uma fé. Vê jardins no deserto e multidões triunfantes num grupo de quatro gatos pingados. Alguns grupos políticos nascidos dos azares da esquerda órfã constituem-se em Frente de Unidade Revolucionária sem saber que apenas juntam o último quadrado de fieis para acompanhar um enterro. O do voluntarismo, do maximalismo, dos ecos da teologia da libertação e das pequenas crises recorrentes da universidade de Lisboa. Nada de grave, nada que com o tempo não passasse. A acne, mesmo revolucionária, cura-se normalmente com a chegada à idade adulta. É uma questão de tempo.

E foi. Não sem dificuldades e recuos. A ex-juventude revolucionária, ou que por tal se tinha, padeceu o 25 de Novembro, andou dois dias cozida às paredes, tentou explicar o explicável por absurdos golpes e conspirações contra-revolucionários, pela traição do PC (!) e claro pelo peso do clero reaccionário. As “massas” (obviamente revolucionárias) ou tinham sido enganadas ou manipuladas. A revolução estava só adiada mas jamais batida. A fé move montanhas, ou pelo menos é nisso que os crédulos confiam. A movimentação GDUP, a campanha presidencial de Otelo e a deriva terrorista que se seguiu, desde os assaltos a bancos á meia dúzia de bombas e atentados (a que a Direita aliás respondia com mais eficácia) não assumiram em Portugal um tom excessivamente dramático. O país era pequeno, os cuidados conspirativos poucos e pueris, a formação política dos quadros mais activos não ultrapassava meia dúzia de slogans primários e o cansaço, a necessidade de refazer a vida, de ultrapassar as consequências de um par de anos de medidas económicas tão absurdas quanto contraproducentes foram a par do fortalecimento dos partidos “centristas” o suficiente para apagar os pequenos incêndios de 75. A normalização democrática, a resistência da sociedade civil, a despolitização, melhor dito o refluxo forte que se seguiu à carga de adrenalina revolucionária do PREC, derrotaram inapelavelmente os romantismos prematuramente nascidos em 74.

Vá-se a uma lista de “personalidades” do quinquénio 74-79, e veja-se hoje onde a esmagadora maioria dos seus participantes estão. E o que dizem. E como o dizem. Na mais remota hipótese esquerdista estão na “situação” do governamental P.S.. Muitos dedicam-se aos negócios, depois de uma conveniente passagem pelos corredores do poder. Outros mantém colunas na imprensa e se tivessem lido Nizan perceberiam porque é que alguém lhes chama “chiens de garde”. Não leram portanto não sabem e não sabendo nem sequer se ofendem.

Antes isto, do que termos tido umas brigadas à italiana ou um fracção armada à moda alemã.

 

As leitoras que aqui penosamente chegaram que me desculpem. É o calor excessivo e a falta de espinafres na venda aqui do lado. Má disposição e idade avançada. Isto passa. Ou não.