leitor (im)penitente 62
Sobre um documentário dedicado a Jorge de Sena
Tenho por aqui todos os livros de poesia de Jorge de Sena, e pelo menos dois de ficção, para não falar de vários volumes de ensaios. Julgo, pois, poder incluir-me entre os apreciadores do poeta e, por isso mesmo, poder julgar se Sena foi ou não injustiçado pelo seu pais e, mais importante, porque mais sério e sentido, pelos portugueses que lêem.
Acontece que há por aí uma ideia peregrina que transforma Sena num perseguido, num incompreendido, num injustiçado, numa vítima de poderes ocultos, de máfias literárias e/ou intelectuais que lhe não perdoariam a grandeza, o à vontade e a independência.
Cita-se sempre o facto de, apesar de ter sido professor catedrático no Brasil e depois numa universidade californiana, a universidade portuguesa não o ter querido aceitar no seu seio. Ao que sei, apenas a Faculdade de Letras de Lisboa terá rejeitado a sua inclusão. Num documentário televisivo de há dias, asseverava-se que fora o Professor Jacinto do Prado Coelho (que não está cá para se defender) que recusara Sena por este “não ser um perseguido político”. Convenhamos que a historieta é pitoresca. Sena não terá sido um activista político ferrenho mas consta que esteve ligado à conspiração da Sé e é notório que escreveu, no Brasil, várias verrinas contra o governo português. Há, como é sabido, um processo dele na PIDE e era voz corrente e geral que se reconhecia (e era reconhecido) no universo oposicionista. Não creio que JPC ignorasse isso, que tivesse o desplante de o negar e que o seu parecer, nos anos confusos do PREC, tivesse vencimento quanto a isso.
Por outro lado, a Universidade Nova convidou-o e, se a memória não me falha, o mesmo ocorreu com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde Óscar Lopes, seu cunhado foi convidado para professor.
A verdade, quanto a isto, deverá estar no facto de Sena não poder aceitar um lugar em Portugal por o ordenado oferecido ser, como é sabido, uma miséria. Um homem com aquele desproporcionado número de filhos ver-se-ia aflito para chegar ao fim do mês. De resto, mesmo que em filigrana, isso perpassa no mesmo referido documentário.
A segunda questão que um honesto leitor de Sena deve referir é a sistemática (e não provada) acusação de Sena ser uma espécie de proscrito face aos “aparelhos” culturais do Portugal do Estado Novo. Cita-se a propósito o pequeno e dessorado universo situacionista e a chamada “esquerda”, “dominada” pelo PCP. Conviria lembrar que Sena era cunhado (e amigo, ao que sei) de Óscar Lopes, um dos mais importantes intelectuais comunistas que seguramente o defenderia de alguma conspiração estalinista; que se dava e correspondia com um impressionante número de intelectuais de esquerda; que colaborou activamente em revistas e publicações de esquerda; que traduziu muitos livros para editoras conotadas com a “oposição”. Contra isto parece risível e tonta a acusação de ser um maldito para a esquerda. Quanto à gente do regime, esclareça-se que o facto de não ter ali aceitação explícita não era coisa que afugentasse leitores interessados. E mesmo no reduzido número de escritores conservadores havia quem o considerasse. Sena participou nalgumas aventuras editoriais de gente não comunista ou sequer progressista (Cadernos de Poesia, por exemplo).
Parece, pois, possível afastar a ideia de conspiração política contra o autor de “Peregrinatio ad loca infecta”. O “anti-senismo”, a ter existido, terá outras causas.
Entre elas, há quem cite, a “independência” de Sena, a sua “irreverência” perante os estabelecidos na praça das letras. É possível mas não provável. Escritores reconhecidamente irreverentes e independentes houve-os sempre em Portugal e os anos 50, 60 e 70 não constituíram excepção. Aliás, passar uma certidão de “dependência” a uma boa parte dos escritores em actividade nesses anos é pura má fé que, também, não tem base de qualquer espécie. Cardoso Pires, Cesariny, O’Neil, Urbano. Abelaira, Redol, Hélder, Pacheco, Gomes Ferreira, eram acaso dependentes, reverentes e obrigados? Cochofel, Sofia, Cinatti, com quem Sena se correspondias, sê-lo-iam? Francamente...
Há em Portugal um hábito miserável: para levantar alguém tem de se dizer mal de outrem. Sena tem vindo a ser vítima disso. Foi, aliás, vítima disso ainda em vida e, eventualmente, ter-se-á sentido confortável nesse papel. Eventualmente, repito. Inconscientemente ?
No mesmo documentário, má obra, péssima obra, pelo menos para este leitor de Sena, fala-se de um atribulado processo de prémio em que Sena terá visto as suas “andanças do Demónio” ser preteridas pela “A gata e a fábula” de Fernanda Botelho. A propósito disso, um Saramago, pouco inspirado, teceu considerações infelizes sobre os méritos relativos dos dois escritores. Ao que dizem, o júri terá preferido um romance a um conjunto de contos. A ser assim, cai a acusação. Mesmo se, em edições anteriores, o prémio tenha contemplado livros de contos. Mais uma vez, já cá não anda ninguém que se possa defender da acusação de, neste caso, perseguir Sena. É o mal deste género de documentos: à falta de contraditório, passa tudo: verdades, meias verdades e mentiras.
Que Sena era orgulhoso quase até à arrogância não merece dúvidas. Basta lê-lo em poemas e, sobretudo, na volumosa correspondência que tem saído a público. Que tinha uma alta ideia de si, também não. Em certo momento ajudei Rui Feijó a preparar uma edição da correspondência de Sena com Cochofel. Ambos nos admirámos do cuidado com que Sena guardava cópia dos mais pequenos postais que, a partir dos seus 17 ou 18 anos enviou a Cochofel. Como se tivesse já uma clara ideia da eventual importância desses documentos e os pensasse escritos para um futuro longínquo. Nada disto é pecado mas dá, penso, uma ideia, da representação que se de si próprio fazia. Nesse volume (que não saiu pela mão de Feijó por razões que não recordo) havia também, e muito posteriores, várias considerações sobre temas de literatura portuguesa constantes de artigos encomendados por Cochofel para um Dicionário de Literatura em parte editado. Nelas constam notas e criticas acerbas a adversários literatos que defendiam, mormente sobre Camões, opiniões muito distantes das de Sena. Convém dizer que, quanto a isto, Sena é polémico mas extremamente interessante. Mesmo que se não concorde com as suas teorias camonianas há que referir que, sem ele, os estudos camonianos actuais seriam muito menos exaltantes.
Do documentário (na escassa parte que vi) não me pareceu constar uma desagradável faceta do enorme poeta que Sena foi e é: refiro-me a um volume publicado postumamente (por expresso desejo do autor, ao que sei) e que, sob o nome descolorido e pouco amável de “Dedicácias” Sena trava um último combate contra adversários que já não poderão responder-lhe, ou cuja resposta ele já não lerá. Além de serem desinspirados são grosseiros e passavelmente injustos. Os leitores de Sena obviamente não lerão ou não levarão a sério estas verrinas póstumas que só diminuem quem as escreveu.
E os defensores à outrance de um Sena gigantesco e ultrajado pelos contemporâneos deveriam pensar nelas e talvez perceber a razão de algumas quezílias literárias, e não só, que poderão afectar o retrato justo a que o poeta tinha direito.