Au Bonheur des Dames 250
Uma notícia ligeiramente exagerada
Tudo sucedeu há poucos minutos. A enteada Ana telefonou cá para casa perguntando misteriosamente “se estava tudo bem”. A mãe, sem perceber bem, terá respondido que continuava constipada, com tosse e arrepios de frio. Ao que, estou a imaginar, a filha terá retorquido: “então está tudo bem!”, "Bem uma ova, (eu de novo a imaginar) que ando sempre a assoar-me, com dores de garganta de tal modo que perdi hoje um belo almoço no “Rui”. Ainda por cima era o casal Zé e Zé M quem pagava...
Consternada, a filha explicou-lhe que o meu amigo Manel S. lhe teria acabado de ligar, com voz entrecortada (sempre eu a imaginar) perguntando "se estava tudo bem”. Perante a decidida resposta da Ana, o Manuel disse-lhe que acabara de receber um telefonema de um outro amigo comum, o Luciano V.P. que, alarmado, lhe comunicava que, por seu turno recebera, uma chamada dos Açores (vejam até onde chega o meu nome imortal!) onde, preto no branco, a Amélia C. O informava da minha morte! Alguém, uma Luísa qualquer coisa, tinha, aqui mesmo do Porto, achado ser seu dever comunicar o meu óbito. Pelas minhas contas esta história do meu passamento, começou a correr cerca das nove e meia, dez menos um quarto (da noite) justamente quando eu começava a ler o prefácio da “História da vida privada em Portugal” enquanto ouvia no canal mezzo “As Bodas de Fígaro”.
Convenhamos que não me importarei de morrer ao som do genial Mozart que é para mim o absoluto em música. E se for com as Bodas não será mal embora, se é que posso escolher, preferisse para uma ocasião tão bizarra o “Cosi fan tutte” pois não me julgo digno do “Requiem”.
Fiquei, como calculam, um pouco aturdido com a novidade da minha morte. Primeiro, pensei que estava no paraíso (com um bom livro e a companhia de Wolfgang Amadeus) mas rapidamente me dei conta que o ambiente me era demasiado familiar, o escritório, a gata Kiki de Montparnasse a dormir no maple, a CG em animada conversa telefónica com uma amiga, a gata Ingrid deitada de costas no chão (raio de posição) e um calo no pé esquerdo a chatear.
Depois, sempre nesse estado de abatido aturdimento pelo óbito de que eu era o actor principal, comecei a pensar que um incréu como eu nunca terá direito a paraíso (mesmo sem Mozart, nem J. Mattoso). Faço parte de um grupo de amáveis bebedores com quem tenciono ir cervejar na próxima quinta feira (caso se confirme a notícia da minha ressurreição) para discutir politica, conspirações e um eventual complot revolucionário para destruir sem bombas nem meios violentos e sanguinários, o actual governo da república. Todos eles são da mesma laia que eu: relapsos, réprobos, incapazes de ver a santidade onde a há, a virtude no engenheiro Sócrates e qualquer chama de génio no senhor Passos. Resumindo; carne para canhão sem direito a glória eterna e coros celestiais. às tantas nem direito ao inferno teremos...
Portanto, e para abreviar, venho cumprir o relativamente grato dever de comunicar que ainda não foi desta que passei do deplorável estado físico em que me encontro (gordo, lento, vista cansada, mau génio, azedume, e vísceras em estado mais ou menos imprestável, alem da falta de alguns dentes e do cabelo a branquear forte e feio) para outro mais hirto e imóvel. Por aqui estou e, salvo imprevisto de maior, por aqui continuarei mais algum tempo. Quanto, não sei e também não é coisa que me importe muito. Vou estando e, enquanto estiver como estou, não vejo razão especial para aspirar a outra eventual vida, digamos mais vegetativa.
Na impossibilidade de avisar pessoalmente a mensageira primeira da minha viagem sem regresso (pessoa que, pelo nome, não conheço) desde já a aviso que, quando passar ao pouco recomendável estado de defunto, virei pela calada da noite, como o fantasma da ópera, descobrir-lhe o pé. E provocar-lhe uma pneumonia que se não a levar desta para melhor pelo menos há-de recordar-lhe que, para passar uma certidão de óbito, convém, antes, ver se o defunto está mesmo finado.
No caso sempre possível, ainda que improvável, de, sem o saber, estar, afinal, já do outro lado, de todos vós me despeço até a uma eventual outra vida já que a esta não me parece possível voltar. Ressurreições, que se saiba, houve uma, há já muito tempo, mas, ao que parece, o seu feliz contemplado dispunha de poderes que, de todo em todo, me falecem (nunca um verbo desagradável foi tão bem empregado! viram como escrevo bem?).