Estes dias que passam 226
A teoria do dominó
Nos idos de sessenta, a sempre imaginativa administração americana inventou a teoria do dominó. No caso era o Extremo Oriente que estava na berlinda e a coisa enunciava-se em duas penadas: se o Vietnam do Sul caísse (nas mãos do Vietminh – ou seja do partido comunista que governava o Norte depois da derrota dos franceses), cairiam seguidamente o Laos, o Cambodja e a Tailândia. Com um pouco mais de imaginação a Birmânia (que ainda não se chamava Myamar) e as Filipinas poderiam também vir a arredondar a conta do eixo do mal. E por aí fora.
Foi nesse pressuposto que a administração Kennedy (Kennedy, reparem bem...) começou a auxiliar fortemente o viciado regime do Sul. A corrupção generalizada, a continua sucessão de golpes militares internos, a brutalidade policial, a exclusão de quase todos os restantes parceiros políticos, as exacções próprias do estado de guerra, a impreparação política do exército americano, juntamente com a crescente contestação dos civis e dos religiosos budistas deram no que deram. Os Estados Unidos saíram do Vietnam com cinquenta mil mortos (o Vietnam do Norte e as forças sulistas do Vietminh terão perdido um milhão de combatentes) e o Vietnam reunificado conheceu os horrores próprios do fim das guerras civis: milhões de refugiados, os “boat people”, uma repressão selvagem que não poupou ninguém, sequer os mais progressistas, o abaixamento do nível de vida e, coisa extraordinária, uma invasão sangrenta do vizinho Cambodja, ameaças ao Laos e guerra larvar na fronteira com a China.
Todavia, mesmo com os avanços dos comunistas (Pathet Lao) no Laos, com os Kmehrs vermelhos (mais uns milhões de mortos) no Cambodja, não se verificou a sinistra teoria avançada pelos mais brilhantes cérebros do Departamento de Estado, da CIA e dos diferentes think thank americanos. O Vietnam reabre-se lentamente, o seu partido dirigente vai passando do vermelho vivo para o rosa (sem porém perder o seu carácter autocrático), no Cambodja reúne-se hoje mesmo o primeiro parlamento civil pluripartidário, a Tailândia manteve-se na órbita ocidental e por aí fora.
As peças do dominó, mesmo se contíguas não caíram todas.
Agora, trinta e tal anos depois, eis que volta o dominó às conversas (e aos temores) ocidentais. Desta feita é o “mundo árabe” (como se tal mundo fosse homogéneo, social, política e religiosamente.
Agora, o medo tem outro nome: os islamistas radicais. A propósito de radicais e de islamismo, lembre-se a teoria infame e estúpida que levou à destruição do Iraque. Não que Sadam não fosse um canalha e um criminoso. Era-o, sem dúvida. Mas, parafraseando um político menos ingénuo do século passado, era o “nosso (deles, entenda-se, antes que metam no mesmo saco) canalha”. Boa parte do Ocidente, viu armas de destruição maciça onde elas não eram mais do que uma miragem (coisa propícia a paisagens desérticas...). e vai de entrar por ali fora, à bruta e sem perspectivas de médio ou longo prazo. Rebentaram com o ditador e com as suas estátuas, e de caminho não perceberam que o país e os seus frágeis equilíbrios deixara de existir. Agora chora-se o avanço dos chiitas, a intransigência dos curdos, os atentados diários, a economia destruída, a acumulada raiva dos sunitas. Ninguém se lembra de quem armou e apoiou Sadam. Ninguém se lembra do beneplácito que lhe foi dado para invadir o Irão. Também ninguém se lembra de que o Irão é o que é porque ao apoiar, sempre e cegamente, o Xá Reza Pahlevi, apoiaram a polícia política, a perseguição aos democratas, a morte de Mossadegh e aimpossibilidade de permitir a existência de um país que não era árabe mas apenas muçulmano e de uma população que queria viver com liberdade. Vai demorar anos a sair do pântano em que a cegueira ocidental meteu os desgraçados iranianos. Pode sempre dizer-se que farta ajuda tiveram do clero radical chiita, dos mollahs e de toda essa gentuça ultra-religiosa. Mas que políticas inteligentes (e aliás propostas e esboçadas desde sempre por minorias árabes, persas e ocidentais) tinham previsto tudo o que veio a suceder, não há dúvidas.
A Tunísia, elo mais fraco?, correu com o seu déspota de há trinta anos. Antes disso tivera outro, Burguiba, um pai da pátria e da independência, que também não fora exactamente um democrata.
Agora a febre passou para o Egipto. Um país em que 40% da população vive com menos de dois euros dia e que conheceu desde os tempos alucinados do rei Faruk, imbatível na frequência de casinos e de putas, apenas três líderes todo-poderosos, Nasser, Sadat e Mubarak, visto não se dever contar com o débil general Naguib, efémero antecessor do primeiro.
Fora a falta de democracia, de bens essenciais e de liberdade religiosa, aqueles noventa milhões conheceram tudo. Várias derrotas em sucessivas guerras com Israel, o assassínio de um presidente que tentou, apesar de tudo, modificar os termos da relação conflitiva com Israel e a esclerose anunciada e fatal do regime.
Agora, o povo está na rua. De dia para dia, cresce o número de manifestantes, atenua-se o medo (mesmo que já se contabilizem mais de cento e cinquenta mortos), a polícia vai-se esfumando e o Exército não parece totalmente disposto a morrer por Mubarak. Este jura que resistirá (para “o poder não cair na rua”!!!) e que não voltará a ser candidato (oferecendo para o penoso cargo de raïs um filho!...) e que as reformas políticas vêm a caminho.
Não há memória de nenhum ditador sair a bem. Não é crível que este venha constituir a primeira excepção. Mas, na verdade, tem aliados: há quem jure que se Mubarak cair aparece a “irmandade muçulmana” e com ela o radicalismo. Pode ser. Mas nunca será exactamente a mesma coisa. Para começar, este grupo que gozará do apoio de cerca de 20% dos egípcios terá de contar com as restantes forças que emergem lentamente dos escombros do regime. Depois, ao contrário do Irão, o Egipto não pode isolar-se do mundo que o rodeia. A sua prosperidade assenta no turismo, no canal de Suez e na privilegiada posição que detém entre o Magrebe e o Próximo Oriente. Fechar-se na cápsula de uma república islâmica de modelo radical custar-lhe-á demasiado. Finalmente, o Egipto tem, apesar de tudo, fortes minorias sociais e religiosas que eventualmente tenderão a contrariar a visão mais catastrofista de certos observadores ocidentais.
De todo o modo, tentar ajudar Mubarak sob o pretexto de que, sem ele, vem o dilúvio universal parece uma troça quando na rua cairota se acumulam mais e mais homens e mulheres que querem viver de outra maneira.
Quando se olha para o mundo árabe mais próximo, verifica-se que, mesmo sem o efeito imitação, as coisas estão, desde há muito, a mudar. Na Argélia, as esperanças da guerra de libertação foram amortecidas e devoradas pela série de medíocres ditadores saídos do partido mais forte, FNLA. Nunca resolveram os problemas da minoria berbere (que continua perseguida política e culturalmente) e também não conseguiram, por inépcia e por incapacidade, impor um limite às ambições dos religiosos radicais. A liberdade que recusaram à sociedade civil profundamente influenciada pela França, pela gigantesca colónia emigrante nesse mesmo país, teria sido fundamental para deter a vaga de proselitismo religioso. Os déspotas alimentam sempre as forças mais radicais e obscuras da sociedade que oprimem.
A Argélia corre o sério risco (“Inch Allah!) de ser a próxima pedra deste dominó.
Ou a Síria país inventado pelos franceses (que lhe retiraram o inventado Líbano) onde uma minoria alauíta, governa com mão de ferro e de pai para filho.
O finado Império Turco dividira as suas províncias numa espécie de vice-reinos onde avultavam quatro cidades Cairo, Damasco, Bagdad e Bassorá. Seriam esses (mais eventualmente uma quinta região com Meca à cabeça) os territórios que constituiriam o embrião de nações mais ou menos homogéneas. De lado ficavam os Emiratos do Estreito e o Yemen. A opção inglesa post primeira guerra foi diferente, como se sabe, e os franceses reservaram-se o mesmo direito na zona de influência de Damasco. Aliás é dessa altura a declaração Balfour que “aceitava discutir a formação de um lar nacional judaico” na Palestina, indo assim ao encontro sãs reivindicações do então recente movimento sionista.
É ocioso perguntar o que pensavam disto, desta divisão a regra e esquadro do império turco (fora da Anatólia) os habitantes. Não contavam. Ou só contava um escasso grupo de sheiks, emires & assimilados. O resto era paisagem. Irrelevante.
Sem se perceber isto (e as suas obrigatórias consequências ao longo de um século) não vale a pena tentar ler nas entrelinhas das notícias. Todavia, quando a realidade é expulsa porta fora pode tentar voltar a entrar pela janela. E com violência! Não é a primeira vez, de resto. No auge da popularidade de Nasser houve tentativas de unificar os movimentos revolucionários laicos árabes, com ou sem comunistas à mistura. Disputas de capoeira (e outros interesses estranhos à zona e mais obscuros...) reduziram esse ímpeto pan-arabista e varreram o lixo para baixo do tapete. E enterraram a vaga ideia de democracia que poderia ter eclodido há umas largas dezenas de anos.
E o efeito dominó? Se porventura existe é duvidoso que se desenrole como previam os “iluminati” americanos. As ditaduras tem a pele dura e aprendem mais depressa que as democracias. À medida que o tempo passa, organizam-se as linhas de defesa, muda-se qualquer coisa para que tudo permaneça semelhante (eis uma invenção também mediterrânica se bem que europeia ou, pelo menos, siciliana). Para a rua árabe e para os emergentes partidos democratas o tempo é limitado. Por isso conviria apoiar com todos os meios os que protestam.