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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Au Bonheur des Dames 266

d'oliveira, 17.02.11

 

Aventuras gastronómicas

Vou um dia destes jantar a casa de um gourmet que ainda por cima sabe cozinhar, inventa receitas, escreve crítica gastronómica, enfim, um perigo público absoluto.

Gentilmente, entendeu perguntar aos comensais (eu sou apenas um deles) de que é que não gostavam ou, melhor: se gostavam de várias coisas incluindo polvo.

Eu sei que vou ser trucidado por uma multidão de leitores mas acontece que odeio polvo. A razão é simples. Nos tempos da escola primária, fiz a duas primeiras classes perto de uma seca de polvo. Nesse tempo, era assim. Vocês, Leitoras gentis e distintos Cavalheiros , provavelmente nunca viram uma seca de polvo e se a viram, não estiveram perto. E se estiveram, estavam constipados a ponto de não sentir o medonho cheiro daquilo. É pior ainda que as secas africanas de peixe, para já não falar das de carne. O adjectivo correcto é nauseabundo.

Vem daí a minha ojeriza ao polvo feito seja de que maneira for. Não vou ao ponto de fugir de uma mesa onde o haja. Basta-me não ter de o comer. Tanto mais que tenho de reconhecer que hoje em dia come-se essencialmente polvo fresco e que o polvo cozinhado, tendo o seu particular aroma (reparem na delicadeza: aroma!) não faz fugir ninguém.

Tenho outras idiossincrasias alimentares. Não sou um entusiasta do vinagre mas aturo-o em dose côngrua, não morro por grão de bico, recuso-me a comer cabidela, não pelo sangue mas pelo gosto, e por aí fora. A cabidela, já agora, constituiu um dos piores campos de batalha que travei com a minha primeira sogra, uma mulher excelente e enérgica, demasiado enérgica, por vzes. Convencida de que o meu horror à cabidela era fruto de juizos pouco recomendáveis, resolveu que isso, essa aberrante mania, se devia ao facto de em anteriores tentativas o galináceo não ser do tipo “pica o chão”. Quando lhe disse que não, passou ao modo de cozinhar. E para provar que eu estava era mal acostumado, convocou para um especial ágape, uma cunhada, a tia Edite, recordista olímpica, a meias com uma empregada gorda e simpática, da medalha de ouro de cabidelas & assimilados. A tia Edite, o respectivo marido, um homem bondoso e sorridente que se chamava Celso, e a empregada desembarcaram em casa dos meus sogros perante um sentido e incontido “Ah!!!” que ressumava gula e concupiscência (E luxúria. E lascívia. E mais um par de pecados mortais que já não recordo...). Traziam todos os “precisos”, desde a galinha anafada até uma panela gigantesca. O meu povo babava-se de excitação. Eu, a um canto, aterrado.  Preparada com o esmero de que só as velhas tias do Norte são capazes, sobretudo se acolitadas por empregadas que valem o seu peso em diamantes (e esta, já o disse, era goooorda, cem quilos de carne limpa mais a ossada a condizer), lá veio a cabidela para a mesa. E eu aterrado.

Claro que á primeira e cerimoniosa garfada (com toda a gente suspensa) tive de dizer que continuava a não gostar mas que esta cabidela era, seguramente a melhor cabidela de que ao longo de uma vida de estúrdia e vício, eu provara. E comi a segunda e última garfada.  Sujei o prato e fiquei com uma fome negra.

Nos colégios por onde penei, por inteira culpa minha, vezes e vezes sem conta não comi o que me davam. A comida dos colégios desse tempo (colégios que não recebiam um centavo do Estado e pagavam se bem recordo forte contribuição) era ligeiramente melhor do que o rancho da cadeia de Caxias, e nesse género de prisões para subversores da ordem politica e moral do Estado Novo, a comida era ela própria um segundo castigo. Há mesmo quem diga que a tuberculose que me afectou no meu sétimo ano do liceu se devia á forçada dieta que me impunha. Pode ser, mesmo se eu desconfie da mão divina  por usar a capela para me evadir á noite daquele campo de concentração.

Não sou, creiam, um totó esquisito; como coisas vulgares, o meu peixe favorito é a sardinha, o marisco que mais me comove é o modesto mexilhão (já que só em dias festivos me atrevo aos percebes),  sou pouco de cozinhas modernas e não dou dois passos para essas esquisitices com imensos nomes a disfarçar um prato de carne com batatas e dois vagos vegetais.

Nisso sou quase como o meu saudoso amigo Rui Feijó que declarava que comia tudo excepto fígado de porco. A CG ainda no tempo do convite à valsa, declarou-me corajosa que até de fígado de porco gostava. Mania desta gente a de comer vísceras! Uma namorada holandesa, boa de ver e melhor de apalpar, entendia que eu devia comer ao pequeno almoço rins! Rins preparados por ela com carinho e eventual reconhecimento... Jesus, Maria, José, os sacrifícios que se fazem por uma namorada!.... Outra tentou convencer-me a comer dobrada! Dobrada! Fugi a sete pés. Alguém acenou-me com um almocinho de tripas á moda do porto seguido de... Chutei para canto. A gastronomia portuense tem ainda um outro prato detestável : a francesinha. Agora até há um festival da dita cuja. Uma vaga sanduíche de bifana, salsicha, linguiça, queijo e fiambre tudo a monte a nadar numa molhanga apicantada é a negação daquela velha cozinha burguesa de que o Porto se orgulhava. Digamos que a francesinha é a réplica em calão do hamburger. Que também não vai longe em matéria de gastronomia, Deus me perdoe.

O meu amigo gastrónomo e cozinheiro e amável promete converter-me ao polvo á micaelense queira isso dizer o que quer que seja. Tenho o maior respeito pelas gentes dos Açores, em geral, e pelas de S Miguel, em particular. Gosto da música açoriana, do chá que eles cultivam, dos vulcões com que eles se divertem, do sotaque. Estou até pronto a apreciar o dr João Bosco da Mota Amaral e a perdoar alguma brejeirice do senhor Carlos César. Mas para tudo há limites. E o polvo está bem para lá das fronteiras que estou disposto a atravessar. Bastaram-me numa vida de sacrifício, as cabidelas, os rins grelhados, a língua de vaca, as iscas de fígado e genericamente aquelas cartilagens  que metem no belo cozido á portuguesa só para o estragar.

Será que terei de levar um foquim (adorável termo piscatório, trazido da Terra Nova, para significar uma lancheira cilíndrica de madeira  pintada com motivos populares, onde se levava a comida para o barco) carregado de vitualhas que substituam a inominável bicheza à micaelense?

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