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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Verão de 95

sociodialetica, 16.03.11

Estrada poeirenta. Montes de lixo desleixadamente acumulados junto às toscas habitações que traçam o desenho do percurso a seguir. No cimo do morro à direita os contornos do mercado Roque Santeiro, de mil cores e trocas, informal de nome, rico em negócios, poderoso em influências, formal, estatal, organizado nos apadrinhamentos. Caminhamos para Cacoaco no deslumbramento da cidade que fica no esquecimento das nossas costas.

Poucos quilómetros rodados a paisagem modifica-se. Há hortas, há plantas, há espaço. Também há empresas, pessoas e povoações.  Marcados pela urbanidade de um mundo selvagem de cimento, azáfama, esquema, loucura e intranquilidade estranhamos o que vemos, como se o rodopiar agreste da estrada nos impedisse de admitir que para além houvesse mundo.

As linhas de caminho de ferro que há muito não sentem o deslizar das rodas surgem aqui e além, entre estrume, mercados e a sonolência de hoje à espera do dia de amanhã que talvez exista. Linhas paradas mas que continuam a servir com as suas vigas para delimitar terrenos de nada, balizar imundices e esgotos onde as crianças brincam, pescam e ignoram que há um mundo diferente.

A pequena vila surge no desvio de um buraco do maquedame gasto. Azáfama de comércio rudimentar, face visível da produção que quase nunca nasceu. Pequenos restaurantes improvisados, de marketing apurado na captação dos poucos que vão chegando.

Depois de almoço tranquilo, mescla de sabores portugueses e angolanos confeccionados por patroa de grossas almofadas saindo pelos interstícios das roupas largas, procuramos onde labutava vidreira. É aí que nasce a esperança de encontrar lagosta em mercado conhecido.

Ei-lo à direita, em pequeno planalto, recuado na soleira do sol descoberto de cacimbo. Depois do ataque inicial de vendedores de limões, camarões, linguados e outros manjares, feitas as primeiras compras em saco plástico de ocasião, a preços que desconhecemos no contexto da sua ridicularia, percorremos as leiras entre montes de mamões, papais, jibungo, carvão, galinhas, medicamentos, quiabos, vinhos, garoupas e tudo o mais que a imaginação aprouver.

Ignorada a nova moeda são os velhos kuanzas que contam: muitos milhões por qualquer coisa. A nossa tez e maneira de estar e andar não os engana, habituados como estão à caça, ao assalto à presa desprevenida: temos direito à compra de outras mercadorias como de fardos de que se querem livrar. Aquela criança, um mês no máximo, é-nos oferecida por mãe solicita. O seu preço é em dólares. Quatro, que a vida está cara. Bem podemos recusar que o fardo está pesado. Mas a solícita mulher de sorriso de vendedor habituada a essas andanças não desarma. Afinal não percebe porque recusamos oferta tão vantajosa. Uma criança,  animal de leite, por quatro dólares nem está muito mais caro que as galinhas, linguados ou mamão. Até é mais barato que o camarão. E sempre valia mais despachá-la aqui do que esperar pelo novo mercado de fim de semana ou abandoná-la em local ermo da aldeia onde habita.

Como é diferente o mercado em Angola, porque hoje é sábado!

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