Au Bonheur des Dames 276
Bizarrias
Os brigadeiros políticos portugueses (cfr. Eça versus Pinheiro Chagas), observam a pátria com olhos húmidos de comoção. Tudo é paradisíaco no “torrãozinho de açúcar”, também chamado “jardim à beira mar plantado”. Quem for de longada por esses sertões pátrios verificará que, em matéria de jardins nem sempre as coisas são tão excelentes como á primeira vista poderia parecer, mas paciência.
É que, mesmo quando a Natureza se mostra despudoradamente generosa para com estes seus ingratos lusitanos, a regra é deixar andar. Aqui á frente, para não ir mais longe, os meus vizinhos que passeiam os cães acham natural que os pobres bichos caguem por todo o lado e que ninguém, ninguém!, lhes apanhe as caganitas. O jardim é da Câmara, ou seja de ninguém, pelo que competirá aos pouco briosos jardineiros que aparecem de longe em longe o tratamento dos dejectos. Se, porventura, uma crioança brinca no jardim sem a atenção previdente de um familiar, o mais certo é regressar a casa com a marca pouco aromática da passagem dos cãezinhos.
E quando os papás ou as mamãs, mais estas do que aqueles, vigiam a miudagem, tal tarefa apenas diz respeito ao cuidado para não pisar os excrementos. De resto, o jardim pode ser alegremente maltratado.
Em países menos civilizados, a França para não ir mais longe, grande parte dos jardins são gradeados e fechados durante a noite para evitar os estropícios de todo o género que humanos pouco cuidadosos e arrogantes cometem.
E há multas e proibições e cuidado com a propriedade público. A ideia é convencer o cidadão de que isto também lhe pertence e que ele é responsável pela qualidade de vida na sua cidade.
Deixemos, porém, a jardinagem que, no momento actual é o menor dos nossos desgraçados problemas, e atentemos na singularidade dos prazos que limitam a nossa escassa vida política. Por exemplo, os prazos eleitorais.
Eu não sei se em mais algum país da União Europeia haverá tão dilatados prazos para marcar eleições, apresentar candidaturas e apurar os resultados do acto eleitoral.
Nunca percebi por que é que o prazo entre a convocação de eleições e a publicação dos resultados demora 80 dias, quase três meses (e resta-me averiguar se esses dias são úteis ou se continuados. Não tenho aqui a lei e não vou perder tempo com isso. É verdade que o CDS propôs (com a aquiescência relutante de um ou mais partidos, já não recordo) a antecipação para 50 dias que, mesmo assim me parece excessivo. E parece-me excessivo por que não vejo como é que o apuramento do acto eleitoral demora dez dias. Estamos na época dos computadores, que diabo! Também recordo (ou julgo recordar) que há uma proposta para reduzir a quatro dias este disparate. Direi, todavia, que mesmo esses 4 dias são demasiados. É que continua a haver computadores, mesmo se algumas vezes, e seguramente devido ao clima propenso a tsunamis e outros desastres, nem sempre os computadores portugueses funcionem com a celeridade e eficiência que lhes é atribuída.
Outro prazo patusco (para usar uma expressão não ofensiva) é o que permite aos partidos gastar 40 dias para apresentar candidaturas. Quarenta dias! Tantos quantos Jesus passou no deserto a meditar. Só que isso foi há dois mil e tal anos, quando as pessoas andavam a pé e não pensavam no FMI, no PEC4 nas agencias de rating e noutras minudências do mesmo género.
Será que, em Portugal, ditosa pátria nossa amada, é asim tão difícil ter sempre pronta uma lista de candidatos ás eleições? Será que é nesses 40 dias de meditação partidária que tudo se resolve de cabo a rabo, como se nada tivesse antes sido pensado, estudado, decidido?
Nos sabemos como essas extraordinárias organizações funcionam (se é que o termo funcionar não é demasiado forte para definir o estado de latente letargia política e de frenética luta de bastidores que se costuma presenciar) mas isto esta absurda espera pelo fumo branco partidário apenas parece indiciar uma cultura de arranjismo, de combinatas à última hora, de golpes de teatro, de cumplicidades, silêncios e conspiração.
A própria marcação de eleições pelo Presidente da República tem um prazo peremptório de 60 dias!!! Dois meses!
Eu percebo que, nos primeiros anos de democracia se tenha pensado rodear estas delicadas operações do máximo cuidado. Era preciso habituar os cidadãos silenciados durante longuíssimos anos a pensar as coisas, a medir a importância da sua intervenção, a pesar os prós e os contras dos programas que lhes eram apresentados, a verificar a idoneidade dos candidatos.
Claro que tudo isto é sério e merece reflexão. Mesmo se, nos principais círculos eleitorais (Lisboa Porto, Braga Setúbal Aveiro e Coimbra – onde aliás rudo se decide) tal tarefa pelo menos no que toca à apreciação dos candidatos se mostre como impossível. O sistema tolhe qualquer hipótese de apreciação. Quem é que em consciência pode comparar as putativas virtudes e os possíveis vícios de uma multidão de candidatos (e dos substitutos), dos cinco principais partidos? Quem é que não sabe que os cinco, dez ou quinze primeiros candidatos nunca farão parte da Assembleia no caso de vitória do Partido que os arrolou. Vota-se numa duvidosa plêiade de pais da pátria e meia dúzia de dias depois da verificação de mandatos no Parlamento aparece-nos um ajuntamento informe e medíocre de segundas e terceiras linhas cuja única missão é levantar e sentar o traseiro durante as votações. E bater palmas! Às vezes de pé! E vozear, nem sempre com elegância.
Dependentes do Partido que os fez eleger, viciados na pobre prebenda que a situação de sentados à mesa do orçamento, os livra do anonimato e das profissões mal pagas, devem tudo ao Partido, não conseguirão nunca apelar aos seus eleitores porque os não têm, nem por estes foram responsabilizados, por que os desconhecem, eis que os parlamentares estão ali, como num curro. À voz e à ordem do seu dono.
Não é difícil que, assim, só se distingam os deputados dos pequenos grupos ou aqueles que, “por obras valerosas se vão da lei da morte libertando” (estava a pensar na lúdica actividade de roubar gravadores aos jornalistas ou aqueloutra de fazer de palhaço durante as intervenções de algum adversário. Isto sem querer relembrar um robusto talento parlamentar, de seu nome Morgado, que afiançou urbi et orbe que a cópula servia apenas para o acto de procriar.). O público, ou pelo menos, o público mais atento que ainda se dá ao trabalho de ler os relatos das sessões (será que ainda existe o “Diário das Sessões”, autêntica recolha de prodígios e anedotas?) que a imprensa mais séria ainda publica mesmo se em resumo, diverte-se ou fica chocado, ou as duas coisas ao mesmo tempo com o que lê da autoria dos seus representantes.
Todavia, e para voltar à vaca fria, esses cuidados adolescentes com a nossa democracia já não parecem ser necessários. Há trinta anos que se vive em claro regime parlamentar pelo que os cidadãos (ou os que ainda não se desiludiram completamente) já estão suficientemente rodados para não necessitarem destes longos e penosos prazos. É que, com tantas cautelas, a nau lá se vai afundando de rating em rating de notícia em notícia...