Leituras (3)
Fonseca-Statter, Guilherme da. 2011. O Preço das Coisas. Conversas à volta de um café... Lisboa: Página a Página. 287 pag.
1. Estamos perante um livro de Economia.
A sua temática pode criar, desde logo, uma desconfiança pois é afirmação frequente “se há dois economistas há duas opiniões”. Comecemos por falar um pouco sobre este assunto, interrogando-nos sobre o seu significado.
Em todas as ciências existem diversos paradigmas alternativos, diferentes maneiras de pensar cientificamente os problemas, sobretudo quando estes são novos, ainda mal estudados. Se se fala mais das divergências entre economistas é, em primeiro lugar, porque os meios comunicação − aquela instituição que molda a nossa maneira de ver o mundo e de nos comportarmos − nos conduzem a isso. Se assistíssemos com intensidade (frequência e interesse) a debates na televisão sobre o big bang e a criação do universo, sobre os buracos negros, sobre a inversão do tempo cosmológico, sobre a evolução das espécies ou sobre o aparecimento de novos vírus, facilmente constataríamos que a diversidade de opiniões sobre um mesmo assunto manifestar-se-iam de uma forma generalizada.
Temos que reconhecer que nas ciências sociais, incluindo a Economia, pode haver maior diversidade de posições: porque, embora essas ciências sejam maduras, são jovens; porque as interpretações dos factos estão associadas a interesses de grupos. Interesses defendidos como “vendilhões do templo” ou, o que provavelmente é mais frequente, como resultado da “consciência possível” dos diferentes economistas.
Além disso há uma razão fundamental para as diferenças entre economistas: Economia não é o que os economistas fazem, mesmo no exercício da sua profissão.
O economista pode, tradicionalmente, exercer diferentes funções: cientista (contribuir para o progresso do conhecimento), conselheiro (encontrar a melhor solução para quem o contrata), advogado de uma causa (a verdade esfuma-se na procura dos argumentos aceitáveis por terceiros), perito (dissecar um fenómenos em todas as suas vertentes explicativas e operacionais), vulgarizador do saber (partir da verdade científica para passar a informação, mesmo que isso imponha simplificações). Grande parte dos economistas que os “incautos” ouvem nos comentários de ocasião ou são “conselheiros” ou “advogados”.
A estas funções dos economistas ainda se podem associar duas outras, fora da utilização da Economia, mas socialmente relevantes: apaziguadores de consciências, guardiões do poder. Servem para dizer às pessoas que “não se preocupem porque tudo vai ser resolvido”, para repetir que “a decisão do Estado era a única alternativa” e, ainda, para tentar explicar como aumentar o desemprego cria emprego, diminuir a produção aumenta as exportações e outros absurdos lógicos.
O que é que tudo isto tem a ver com o livro acima referenciado?
O autor rejeita espontaneamente diversas destas funções, centrando-se na do professor (transmissor de conhecimentos económicos) sempre apegado ao do cientista (procura da verdade, assumindo que é a teoria que deve reflectir a realidade e não é o contrário – o que frequentemente é feito por economistas “engenheiros” e políticos”.
Aliás a forma como este livro nasceu reflecte o que aqui dizemos. Autodidacta com uma longa experiência da vida resolveu frequentar um doutoramento sobre a complexidade, para aprender, mas também para encontrar colegas doutras formações científicas que pudessem estar interessados em trabalhar em conjunto na modelização do sistema económico contemporâneo. Para conseguir o que pretendia teve não só que frequentar o doutoramento como conversar com os colegas de outras disciplinas sobre “as coisas económicas”. Este livro resulta, como o nome indica, dessas conversas à volta de um café.
2. Antes ainda de falar mais directamente do livro teçamos algumas considerações em torno de um filósofo: Gaston Bachelard.
É um autor essencial para o “saber fazer ciência” e separar o que é ciência e o que é, tão-somente, conhecimento corrente. Um filósofo forjado no estudo da Química que soube articular magistralmente o rigor da ciência com o encanto da poesia e do sonho.
Em alguma parte da sua obra diz alguma coisa como “as primeiras evidências são importantes… para serem deitadas fora”. Por outras palavras, quando nos defrontamos com factos novos e pretendemos descrevê-los ou explicá-los muito provavelmente temos tendência para encontrar um conjunto de explicações, que são lógicas, plausíveis e que estão de acordo com a nossa maneira de ver e estar na vida, o que é psicologicamente reconfortante. Contudo, se nessa primeira leitura encontro evidências é porque utilizei a minha opinião, os meus conhecimentos sobre outras realidades. Se assim é estamos ao nível do conhecimento corrente, ao nível do que já sabíamos, o que é um contra-senso na construção da ciência.
Fazer ciência é descobrir o que é novo, o que está para além do conhecimento corrente. Fazer ciência é não só descrever mas também interpretar. É não só reconhecer as relações mas explicitar a hierarquia dessas relações segundo diversos critérios, é encontrar as relações de causalidade.
Se fazer ciência é descobrir o novo que está para além do conhecimento corrente, do que já é conhecido, não pode haver, no início do processo, evidências. É preciso destruí-las através do “corte epistemológico”, através da descoberta dos instrumentos e metodologias que nos permitam captar o desconhecido, que nos permitam ultrapassar a análise “sensorial” dos fenómenos. É preciso uma análise metafenomenológica. É preciso construir modelos (utilizando a nossa linguagem corrente ou outra) explicativos e interpretativos, testá-los no sistemático processo de concretização e abstracção, de abstracção e concretização, elaborar teorias.
O que é que este livro tem a ver com tudo isto?
Algumas das preocupações de Bachelard estão presentes neste livro. Parte dos fenómenos económicos, dos acontecimentos do dia a dia. A partir desses fenómenos faz uma análise para além da mera descrição, para além do imediatamente visível, remetendo para “outro nível” de análise, para utilizar as palavras do autor. Depois dessa abstracção volta ao concreto, volta ao dia a dia, mas nessa altura os acontecimentos de que partiu deixaram de ser meros factos para passarem a ser partes de um todo explicativo.
3. Do que ficou dito é fácil concluir que é um livro que recomendamos vivamente. Recomendamos às pessoas que não sabem nada de Economia e que certamente aprenderão muito com a sua leitura. Recomendamos às pessoas que julgam saber de Economia porque habitualmente ouvem os comentadores na televisão e que precisam de um processo de desintoxicação da intelectual-dependência (ressalvem-se algumas poucas e honrosas excepções de comentadores, normalmente não “oficiais”). Recomenda-se aos estudante de Economia porque muitos deles começam a estudar essa ciência sem saber nada da realidade social e, por isso mesmo, acabam por não saber distinguir a realidade da sua leitura da realidade, filtrada pelos modelos que decoraram. Recomenda-se aos economistas para reflectirem e repensarem.
4. De facto, se quer saber porque é que ao comprar o livro paga um certo montante de euros, se pretende compreender porque há tanto desemprego, se intenta esclarecer-se sobre o que é a globalização, se ainda não lhe é inteligível a actual dívida dos Estados, encontrará contributos de explicação neste livro, que deseja apenas conversar, e que dá uma resposta lúcida a muitas das nossas questões quotidianas.
Lucidez que resulta de agarrar os factos e a descrição dos factos pelo que é essencial, enfrentando as dificuldades, expressando uma leitura integrada e coerentes de contributos de diversos economistas e de diversas ciências. Uma leitura de vários economistas que não é ecléctica mas integrada em torno do conceito de “valor”. Uma leitura de várias ciências que redunda numa leitura económica e interdisciplinar dos factos e uma correspondente construção dos conceitos.
Um desatar da complexidade social de uma forma simples.