Au Bonheur des Dames 289
Carta ao HABITANTE DA TERRA ONDE SE SABE ASSAR LEITÃO
Caro PS
Da sua terra, Aguada de Cima, só conheço o café restaurante Vidal. O Tal! O do leitão sem igual! Oh que bacanal!
Eu explico: nos idos de 80, estava eu muito descansado, a tomar uma bica em lugar sossegado mas muito trafegado por jovens casadoiras ou nem tanto, quando pára um carro à minha frente.
Nele, três ou quatro estúrdios, advogados bens dispostos. Perguntaram-me se queria ir com eles ao leitão. Ao melhor leitão da Bairrada.
Perguntas destas, estúpidas, burras mesmo, nem têm resposta. Encafuei-me na viatura e ala que se faz tarde.
Em plena viagem, perguntei como é que se tinham lembrado do diabo do leitão.
A resposta, segure-se aí, caro JS, foi a seguinte: iam a um funeral!
Funeral de leitão?, tentei galhofar.
Nada disso, funeral a sério, coisa de familiar chegado de alguém associado a um deles.
E é na Bairrada?
Que quê! O funeral era para Cabeceiras de Basto ou algo do mesmo teor e da mesma lonjura.
Mas nós estamos a ir para sul, objectei, lembrado da minha dificultosa e longínqua geografia de Portugal, onde ainda se aprendiam os rios, as serras, as linhas de caminho de ferro com todas as estações e apeadeiros e mais um par de coisas com igual utilidade.
Entre gargalhadas, explicaram-me que sempre que alguém conhecido batia a bota, eles, em vez de caridosa e solenemente o levarem até à cova, iam num pulo ao leitão.
Que tudo isso começara quando morrera a avó do JC (permita-me que só refira as iniciais de neto tão guloso quanto réprobo).
A anciã finara-se de morte natural e os compungidos colegas entenderam dar boleia ao inconsolável neto. Distraídos e na conversa, em vez de embicarem para o cemitério onde a pobre senhora descansaria eternamente, deram com eles na auto-estrada, enfim, no que era nesse tempo confuso, o projecto de auto-estrada para Lisboa.
Já que aqui estamos, por aqui seguimos, terão pensado. E como a fome apertava, alguém propôs um leitão propiciatório para encomendar a antepassada aos espíritos que governam o Além.
Terá nascido aí, a tradição de fazerem a cada morto conhecido, dos que exigem velório, missa e enterro cristão, um funeral de leitão. O morto já estava morto, eles vivos, vivíssimos da costa, e zás!, leitão em dose que se veja para a mesa do canto! Na Agua de Cima, no Vidal, cavalheiro que, nesse mesmo dia, conheci e de quem fiquei cliente certo e grato.
Recordo que, nessa época festiva de alucinada juventude tardia, o senhor Vidal servia um vinho, dito do incêndio.
Parece que o estabelecimento sofrera um fogo e que umas dezenas (provavelmente centenas) de garrafas tinham tido aquecimento excessivo mas não fatal. O resultado, vá lá saber-se porquê, foi que o vinho ficara melhor, muito melhor. Ou então éramos nós que ao quinto copo já o achávamos digno dos deuses pagãos, dos que se embebedam miseravelmente enquanto comem leitão à fartazana.
Esta a minha história da descoberta do Vidal, de Aguada de Cima e do infante porcino que o meu querido amigo e antigo colega, José Quitério gaba. Se calhar também lá foi à conta de um funeral. Assim quereria eu o meu: Sem choros mas com leitão, gargalhadas e muita vida. Dos outros já que, sendo eu a causa do encontro, já devo estar mais esticado que um arenque fumado. E sem direito a leitão...
Mas ao que vem esta carta e a historieta? Pois como pedido de desculpas.
Sei que V se apressou a mandar-me a direcção mas não faço ideia onde é que ela está. Queria mandar os livros, acrescidos de uma plaquete da minha autoria, mas nada, raspas de nada!
Olhe, perdoe-me o estouvamento e volte a escrever a direcção. Na caixa de comentários, se possível.
(a leitora Laura T e o leitor J. Ventura que não se atormentem: tenho aqui bem escritas as direcções deles. Irá tudo na mesma altura que eu ao correio só vou por sacrifício. Mas a encomenda vai. Eu cumpro, que não sou ministro nem deputado.)
* nas gravuras: Stanislau Ponte Preta e Delfeil de Ton. Dois cronistas deliciosos.