Au Bonheur des Dames 299
Para que serve um blog?
Pois, às vezes, para isto!
Caro Paulo Santiago, leitor atento e generoso ofertador de um leitãozinho no mais apropriado dos locais, ou seja, no Vidal, em Aguada de Cima.
Aproveito esta boleia, esperando ser lido por Si, porquanto, por boas (?) ou más razões (sobretudo essas), não tenho o seu telefone, o seu mail, enfim, nada de nada. Ora então comecemos: quis V., com essa natural generosidade dos leitores amigos e dos veros bairradinos obsequiar-me com uma almoçarada de leitão que ao tempo que já leva de promessa e de aceitação mais parece que foi deglutida, digerida e esquecida do que ainda em projecto. Tudo isso, há que dizê-lo, pela minha inépcia em aceitar prontamente, marcar data e aparecer na sua casa já de babete ao pescoço e fome de três dias.
Todavia, tudo isso seria passado sem demasiada importância não fora o facto de V ter simpaticamente insistido e mesmo marcado um par de datas próximas e eu, na minha estúrdia habitual ter dito que sim, tudo bem. Tudo bem, Deus meu? Tudo mal.
Veja, meu caro PS, veja com os seus próprios olhos este desvario em que ando e que aliás, tem origem, nefasta origem, numas vagas obras cá em casa. De facto, tudo começou por uma ideia pacífica: mudar o antigo quarto de dormir (que era a divisão mais a norte da casa por um outro, o mais a sul, que obviamente é ligeiramente mais quente. A CG queixava-se do frio, coisa mais que natural numa criatura que está magra que nem um cão abandonado. Claro que essa mudança tinha um “pequeno” senão: o outro quarto, o novo, estava forrado a estantes o que significava sessenta metros lineares de estantes! Sessenta! Faz V ideia do porradão de livros que isso leva? Não faz? Nem eu fazia até ao momento fatal (este!) em que depois de os ter carregado todos, mailas estantes e o resto me apalpei todo para ver se ainda tinha um músculo, um só, menos dorido. Foi uma trabalheira épica. E, perguntará V, tive ajuda? Bem, ajuda houve mas quase nem dei por ela. A minha excelente mulher a dias, ao ver-me carregar com os primeiros cem ou duzentos volumes, ofereceu pressurosa a ajuda do marido. Eu, desconfiado, recusei mas ela insistiu e a CG ajudou à festa. E lá veio o cavalheiro. Apanhou-me a tomar o primeiro café da manhã e, logo ali, enquanto sorvia um “pingo”, explicou-me que era uma pessoa muito doente, mesmo se o seu aspecto sólido e direito parecesse dizer o contrario. E lá viemos os dois. Ele á medida que eu esvaziava (sozinho) uma estante e a carregava para o seu novo sítio, encarrapitava-se num escadote e com lentidão e mestria, aparafusava a parte de cima da estante á parede. E eu ia carregando os livros. Ia pondo os mesmos no lugar certo enquanto o bom samaritano perorava sobre uma hérnia desconhecida que o apoquentava. E lá ia eu por mais uma estante, por mais uns livros e a criatura ia fazendo pequenos biscates pela casa, ás ordens da CG que tanto se afligira pelo meu eventual cansaço. À hora do almoço peguei em vinte euros e mandei-o almoçar. E aí pelas cinco da tarde, foi buscar a mulher que nesse dia estava em casa da minha enteada e que, ao chegar, mesmo cansada, me ajudou a transportar os últimos livros.
Depois deste esforço, ainda montámos a cama no novo quarto onde terei dormido derreado umas boas oito horas. No dia seguinte a CG descobriu o que era mais que evidente. Tínhamos que pintar o novo quarto. As paredes, pelos furos e o resto “porque sim”.
Ainda com os lombos em estado de choque, disse sim a tudo. E quando digo tudo, sei, com esta experiencia de muitos anos de mulheres amantíssimas, o que isso significa. Lá veio o pintor Barbosa com o filho e entre ele e a CG logo se descobriu que “já agora” (o famoso ´”Já agorismo” que em termos políticos e financeiros nos levou como país para os cafundós tenebrosos do euro e do fmi) havia que dar un jeito à sala. E ao teto da cozinha. E aos corredores. E a duas ou três portas. E às paredes da lavandaria. E aos lambris das janelas. E a duas persianas. E, já que se fala em persianas, ás fitas das mesmas. E...e, e mais e.
Já que a CG entrara numa órbita de desvario pictórico, entendi que a situação me obrigava a um esforço heróico para me manter ao mesmo nível dela. E comprei um bilhar. Bilhar livre, expliquemo-nos. Para celebrar uma data próxima, como também ainda lhe explicarei.
Dizer que a casa (que é grande, enorme, mesmo) andou em bolandas é ser lacónico, espartano ou, no mínimo, discreto. V faz ideia do que é tirar das paredes umas largas dúzias de quadros que obviamente terão de ser postos no mesmo sítio depois (“Mas só depois de limpos” exigiu a CG) de os pintores terem posto as paredes impecáveis (honra lhes seja) e eu ter agora de andar a medir tudo de novo para ver se coisa fica mais ou menos direita e, “já agora”, melhor do que o que estava.
As obras acabaram na passada sexta feira mas ainda há uma parte da casa que está de pernas para o ar, quadros amontoados, sofás e maples que foram para arranjar ou forrar, móveis para restaurar, enfim, isto parece um caravanserail (seja lá o que isso realmente for). E o bilhar impecável no seu sítio, mas ainda sem o respectivo candeeiro, e eu a dar umas cacetadas ás pobres bolas, recordando pouco a pouco jogadas. efeitos e carambolas perdidas na memória sob o olhar critico e vigilante de duas gatas que querem á viva força entrar na jogada e que já apanhei a rebolarem pelo bilhar, felizmente tapado pela cobertura que isto de bilhares novos tem pelo menos uma vantagem (trazem tudo junto, tacos, bolas, marcador, giz e coberta).
Nesta desvairada série de acontecimentos esqueci-me que o meu aniversário coincidia com a data combinada e que, queira eu ou não, não há hipótese deescapar a um almoço com antigos funcionários meus (uma tradição que já leva uns bons quarenta anos!!!) e mais pequenas festividades familiares de que não consigo livrar-me. E digo pequenas porque detesto aniversários. MAS a CG, a enteada e o lambão do novo membro da família (um cavalheiro enorme que é mais guloso do que um urso formigueiro) exigem pelo menos um jantarinho... ou seja, estou peado e incapaz de me locomover como desejaria para um sítio mais aprazível, digamos o Vidal, e um menu mais simpático, digamos leitãozinho.
Será possível adiar as festividades porcinas por uma semana? E, na passada, obter o seu telemóvel, o seu e-mail enfim essas trivialidades que nos permitiriam comunicar sem ser por este meio espalhafatoso? Até a sua direcção se perdeu na voragem dos últimos e penúltimos acontecimentos. Isto, este post mal amanhado, é uma espécie de mensagem numa garrafa lançada ao mar cor de vinho dos antigos gregos. Dos antigos que os de agora, fora falar uma língua praticamente diferente, andam num rebuliço que nem os persas antigos causaram às terras da Hélade.
Permita-me que, através de Si, peça ás leitoras gentis e aos leitores educados, desculpa por lhes invadir o espaço de leitura com esta carta carregada de desculpas de mau pagador, mas não tive outra hipótese. Se quiser até lhe apareço de corda ao pescoço.
Um abraço
* as imagens são, obviamente, aspectos parciais da nova sala com a parte da biblioteca dedicada a temas africanos, ao surrealismo e a mais um par de miudezas (etnografia, livros de viagens, cinema etc.)