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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Diário Político 171

mcr, 26.11.11

Quando eu era estudante e, mais do que isso, quando, com outros amigos e companheiros, perdíamos noites inteiras a conspirar e a sonhar com um país diferente, acontecia aparecer, na nossa mesa de impetuosos revolucionários, o dr Orlando de Carvalho, professor da Faculdade de Direito e reconhecido oposicionista, já com uma ou duas prisões em cima. Nesse tempo, OC preparava com vagar mas com extremo rigor o seu doutoramento pelo que tinha bastante tempo livre para se dedicar a conversar com rapazolas generosos, atrevidos e ignorantes.

 

Recordo-me que uma vez em que navegávamos a todo o vapor sobre futuras quimeras revolucionárias a aplicar ao país, ele nos perguntou com alguma malícia: E que projectos têm vocês para a Educação? E para isto? E para aquilo? Como é que os vão aplicar?

 

Ficámos sem resposta. Tínhamos a cabeça cheia de teoria (Marx, Luckacs, Lenin, Gramsci, Lefebvre, sei lá mais o quê?). Sabíamos de cor e salteado o “Que fazer?”, “As duas tácticas” “O Materialismo Histórico” e mais dez, vinte clássicos. Mas não tínhamos uma ideia para o ensino primário, para a construção de escolas, para a formação de professores, para a reorganização das universidades, ou para o acesso ao ensino. E também não tínhamos quaisquer +respostas concretas para os mil problemas concretos que implicavam a democratização do país. como se isso não fosse connosco.

 

Essa pergunta de Orlando de Carvalho, depois subscrita por outros intelectuais que nos davam a honra de nos ouvir (Joaquim Namorado, Fernandes Martins, Paulo Quintela etc...) e que nos acolhiam no seu círculo, nunca mais me deixou de atormentar.

 

Agora parece que já ninguém se atormenta com coisa tão pouco importante. Fornecer explicações, respostas, formular problemas, interpretar a realidade, pensar a política com P grande e a outra de p pequeno mas igualmente importante, é com os outros e não connosco. Outros! Demitimo-nos de ser cidadãos e de intervir nas questões do governo da polis, do país.

 

Apenas nos interessa aquilo que em França se chama la politique politicienne, ou seja a politica ad hominem, a politica sectária, a política que não fornece respostas mas que em alta grita só sabe dizer não!, sem explicar o não, as raízes dele e a inanidade do sim dos que não protestam.

 

Portugal está num mau momento. Vive, se isto é viver, a soro, num coma induzido, ou quase isso. Dependemos, como nunca do dinheiro que uma troika desinteressada no nosso destino e no nosso futuro nos concede a conta-gotas. Se esse jorro parasse hoje, o Natal passar-se-ia à luz de velas se é que por cá ainda se fabricam e ainda há quem as saiba fazer. Isto não é uma imagem, é a fria verdade.

 

Sabemos como aqui chegamos! Anos e anos de má governação, de inacreditável optimismo, o optimismo dos tontos e dos que não sabem e não souberam jamais fazer contas. Anos de projectos grandiosos que não se esgotam nos infames estádios de futebol, nas auto-estradas desertas, nas capitais da cultura, nas Expo que iam dar lucro , nos mega centros de Belém, nos projectos astronómicos de TGV (até para Vigo, santo Deus!!!) nos aeroportos alucinantes que iriam acolher aviões de todos os destinos,  carregados de turistas ávidos de sol, sal e sul, de empreendedores que vinham admirar as nossas fábricas, as nossas artes e letras, a nossa alegria de viver e a nossa sabedoria. Não bastavam já os elefantes brancos de outros tempos. Tínhamos de encomendar mais alguns. Nem tudo é culpa de Sócrates, é evidente. Mas tentar fingir que estes últimos seis anos nunca existiram é obsceno. Existiram e em absoluto delírio. Claro que antes houvera a dupla Santana Barroso de curta duração. E Guterres, mais outros seis anos triunfantes. Com o triste fim que sabemos. Concedo mesmo que se recue até Cavaco que foi o benfeitor do “funcionalismo público”, das negociatas privadas, da ascensão de muita gentinha que depois se tornou conhecida por más e por péssimas razões.  Tenho alguma dificuldade em ir ainda mais para trás para os anos em que Soares tropeçava na Economia e chamava o FMI (parece que já ninguém se lembra...). Ou os anos do PREC do “práfrentismo” a todo o vapor que teve o fim que teve.

 

Uma coisa porém é certa. Agora, agora ainda é pior. Por isso, o recreio tem de acabar. Há que fazer pela vida, há que tentar evitar a quase certa morte e para isso, queiram ou não há que propor medidas se estas actuais não agradarem. Não basta berrar que assim estamos a morrer. Isso já nós sabemos. Agora convém dizer como é que se pode tentar evitar a agonia e virar as coisas. Por exemplo: devemos ou não sair do euro, quanto antes? Ou será que ainda se está à espera dos euro-bonds? Ou da revolução com R grande, com conselhos de operários e camponeses (que nos primeiros anos daquela experiência de há noventa anos produziram mais mortes por fome que habitantes temos por cá)?

 

Haverá ainda alguém que queira mais Europa, mais tratados refundadores quando os existentes já mostraram o que valem? Haverá alguém, como o tolo do dr Jardim, que também acredite que a fuga para a frente nos irá salvar, a nós e à Madeira?

 

Será que a situação é assim tão seráfica, com tantas folgas orçamentais, tantas margens de conforto, que até se pode dispensar essa atroz medida dos 13º e 14º meses?

 

Estou relativamente à vontade: ao largo de cento e setenta folhetins fui dizendo o que pensava, propondo uma que outra medida de bom senso, ou pelo menos, avisando do pouco senso de alguns projectos felizmente suspensos (o tgv, o aeroporto...) por absoluta incapacidade financeira e só!. Rebati aqui, algumas medidas demagógicas mesmo quando me favoreciam no meu escasso ordenado. Dirão que apenas me referi ao governo execrável de Sócrates. Infelizmente ainda não escrevia publicamente quando Santana e  Durão mandavam. Ou Cavaco. Todavia, fui metendo textos dessa pré-história bloguísitica entremeando-os com outros de actualidade (cfr. DP 1,2, 3, 5, 6, 13, 15, 18, 22, 24 e por aí fora) justamente para significar que a verrina contra as más práticas de 2005 e anos seguintes tinham antecedentes que remontavam aos anos oitenta. Pensei sempre a Esquerda como o livre exercício da critica mesmo se isso atingisse a nossa própria família politica. Ser cego perante os desmandos dos nossos amigos é o primeiro passo para a mais intolerável das ditaduras.

 

Há cerca de um ano, deixei anotado que nem todas as afirmações de Ferreira Leite eram despiciendas e que muito do que dela se dizia era por puro sexismo. Está escrito. Na altura não recordo qualquer conforto em comentários e tive muitos. Agora que Ferreira Leite critica quem a apeou, vejo com divertida surpresa que está a caminho de ser beatificada. The times they are a-changin’ dizia o Dylan. E com que razão! 

 

É evidente, mais do que evidente, se possível, que os actuais detentores do poder ignoravam (culpa deles, decerto, mas culpa também e maior de quem travestia a imagem financeira do país) o real estado da nossa Economia. E foram, portanto, imprudentes. E impudentes. E tontos ao virem apregoar que não iriam falar em responsabilidades passadas, como de resto acabaram por ter de fazer não tanto como desculpa mas seguramente como imperiosa necessidade.

 

Agora parece que se tentam diluir culpas por todos quantos se sucederam na governação e não tarda nada que se chegue ao dr Salazar, ao senhor Afonso Costa, a Fontes Pereira de Melo ou até ao Marquês de Pombal. Como se vê, entrámos no vale tudo. É a fábula do lobo e do cordeiro.

 

Assim não vamos lá.

 

D’Oliveira fecit, 26-11-11

 

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