au Bonheur des Dames 306
Zeca, três momentos
1
Mandarim, praça da República, anos sessenta: entro no café, subo ao primeiro andar e vejo o Jaime Magalhães Lima a chamar-me. Ao lado dele um tipo mais velho com óculos.
"Olha lê isto", diz-me o JML. Leio, espantado, comovido, excitado, maravilhado as letras do “Meninos do bairro nego” e mais outra que sairá na mesma altura e que não tenho presente.
Durante uma boa hora, desfiz-me em cumprimentos ao autor, sem saber como se chamava. Quando saiu, perguntei ao Jaime: "Quem é este gajo?" – "É um tipo lá de casa, chama-se José Afonso e canta fados".
2
Jardins da Associação Académica, 1969 Abril ou Maio. O Zeca vem cantar numa sessão de apoio à malta em greve académica. Nessa altura, já somos amigos há um par de anos. Antes de cantar o António Mendes de Abreu e o João Nazaré vão, comigo. falar ao Zeca. E cantam-lhe um tema dele, belíssimo, ainda inédito. O Toninho e o João eram duas aves de rapina com uma memória prodigiosa e sabiam cantar. Ou, pelo menos, não desafinavam como eu. “eia ó sol de Verão/somos nós os teus cantores..”
O Zeca, ouve, entusiasmado e diz-nos “ó pá isto é mesmo porreiro!” já não se lembrava de o ter composto. E muito menos da letra. Em cinco minutos revisitou, com os meus dois comparsas, a música enquanto eu, fadigosamente, escrevia a letra em letras garrafais. E cantou-a como nunca, como se fosse a vez primeira...
3
Anos setenta e muitos, Madrid, estádio de Vallecas, ainda Franco era cadaveroso se não estou em erro. Diante de uma enorme multidão o Zeca canta enquanto o povoléu ruge entusiasmado. Depois, ao apresentar uma canção, não sei qual, diz dois ou três palavrões portugueses. No fim quando me junto a ele, pergunta-me, embaraçado: "Ó M., não achas que fui um bocado forte com aquele estardilho?"
Olho para ele, como quem olha para um menino e lembro-lhe que em Espanha coño se diz a cada três palavras. O Zé sorri, aliviado.
PS: anos oitenta, Auditório Nacional de Carlos Alberto, Porto. O Zé pisa pela 1ª vez um palco nacional, pertencente ao Estado. “Porra, M quem diria que nos encontraríamos aqui. Eu a cantar e tu de anfitrião”. – “E pagador Zé, e pagador com dinheiros públicos”. E rimo-nos.
Passavam vinte anos desde aquele dia no Mandarim.
E agora passam vinte e cinco desde que ele se foi. E trinta da morte do Adriano. E já um sem o Zé Niza. E dezoito sem o António Portugal. E... e...
*a gravura: António Portugal, grande músico, grande amigo que bem pode, aqui, representar os restantes, também músicos, também amigos queridos e também, ahimé!, mortos.
em memória do "Toninho" Mendes de Abreu e com um abraço ao João Nazaré que, espero, ainda por aí andará