Au Bonheur des Dames 307
O Nuno e o Nuno
Às vezes uma notícia respigada nuim jornal dá azo a uma crónica mesmo que breve. Hoje, no “Público” o Nuno Portas fala dos seus trabalhos e, de passagem, refere dois outros amigos comuns: o Alvaro Siza e o o outro Nuno (Teotónio Pereira).
Trata-se de velhos amigos que conheci ainda nos anos 60 ou inícios de 70. Nada me predispunha a frequentá-los mas a política, sempre ela, e a escassez de gente do nosso lado fizeram que nos encontrássemos antes do estertor final salazarista. O Nuno Portas aparecia pelo Porto, numa missão evangélica dupla. À uma falava com alegria, vivacidade e rigor da “escola” do Porto que, de certo modo, ele inventou ou, pelo menos, baptizou. Se, para além do (re)conhecido talento que sempre teve e do refinado humor (de que quase ninguém fala, sequer reconhece) do Siza verdade é que alguém o “descobriu” Tal mérito vai por inteiro para o Nuno Portas. Por outro lado, o Nuno (este) andava metido nas “oposicráticas” e viríamos a encontrar-nos no MES de onde saiu com o grupo Sampaio. Depois encontrei-o muitas vezes numa roda de almoçantes no Hotel Florida onde o referido grupo conspirava furiosamente. Eram tempos de discussão, de tentativa de re-invenção da Esquerda que tiveram o seu apogeu na criação do GIS (Grupo de Intervenção Socialista). Fui um compagnon de route dessa malta e ainda hoje me sinto muito, muito, próximo deles. Dos vivos e dos mortos (Luis Nunes de Almeida, César Oliveira, João Bénard da Costa, para só referir os que, de momento me lembro).
Ora o Nuno (P) refere com galharda amizade e consideração, outro Nuno, o Teotónio Pereira que, de facto, só vim a conhecer depois de Abril de 74. E no MES, claro, mesmo se, ao que recordo, sempre teremos estado em posições divergentes. Mal ou bem, eu sempre o considerei ferido da “maladie infantile” que precipitou todas as cizões no pequeno partido e o atirou para uma vaga esquerda inepta e incapaz de se libertar dos maiores desvarios maximalistas que acabaram no 25 de Novembro, se é que não nas conspirações posteriores e vagamente terroristas. Todavia, estas discrepâncias de fundo e de forma não me fazem retirar a NTP a estima que, desde antes, mesmo sem o conhecer, tinha por ele. Era, é, um homem direito, empenhado, abnegado, um grande profissional cuja obra construída está mal conhecida e pior divulgada. O Nuno (TP) está velho, está doente e quase cego. Vi-o pela última vez no lançamento de um livro sobre a aventura do MES e troquei com ele duas palavras de circunstãncia. Toda a gente o queria ver, queria falar-lhe e recolher do último patriarca do MES uma última e definitiva palavra.
Antes que seja tarde, demasiado tarde, como é tão costumeiro nesta desgraçada pátria, quero deixar-lhe este abraço de um adversário que não oculta claras divergências nem as esconde atrás do tempo que já passou. Se a Esquerda tem alguma virtude, ela será esta: reconhecer sem medo e sem rodriguinhos as nossas opções, as nossas ideias e tirar daí as consequências necessárias. Com um toque final. E esse é a não diabolização dos pontos de vista do Outro. Pela parte que me toca (e creio que certamente pela do NTP) nós não fazemos parte dessa seita que só se reconhecia na ortodoxia pura, na condenaç~ão imedaita do adversário, no silenciamento das suas teses quando não no silenciamento tout court e definitivo.
Agora que as ideoologias parecem passadas de moda, agora que o salve-se quem puder parece ser a palavra de ordem, agora que o cifrão reduz tudo o resto, política incluída, a algo de risível, é bom saber que ainda há, mesmo velhos, cegos e doentes, amigos e companheiros que tiveram a coragem das suas opiniões e que por isso pagaram um duro preço.
O Nuno Portas tem uma exposição em Guimarães. É tempo de a ir ver, de o cumprimentar, de lhe reconhecer, a ele também, a singularidade de um percurso, a ousadia de um pensamento. E saudar nesse velho militante da liberdade e da crítica limpa um outro Portugal que quisemos construir, que falhámos mas que, cedo ou tarde, acabará por surgir. Provavelmente não será exactamente aquele com que sonhámos mas é seguramente algo melhor do que este em que vivemos e em que, mais cedo do que tarde, que já não estamos na primeira (nem na segunda...) idade, havemos de morrer.
(Leitores) “que haveis de surgir das cheias em que nos afundámos ... pensai em nós com indulgência...” (Brecht, Poemas de Svenborg )*
* os escassos leitores que ainda fazem o favor de me ler permitirão este pequeno entorse ao poema de Brecht que, aliás, relembra um outro bem mais longínquo de Villon.
**A gravura: máscara "kanaga" povo Dogon (Mali)

