Au Bonheur des Dames 313
Carta a CG
Minha querida, poupe-me a mais sustos. E se não for a mim, ao menos poupe as gatas! Que, como eu, se afligem demasiadamente com as suas aventuras e, mais ainda, com as suas desventuras. Essa coisa de depois de um grito quando estou na outra ponta da casa, a vir encontrar desmaiada à porta do quarto, pode ser melodramática quanto baste mas assusta-me. Muito.
Faça o favor de se lembrar que, quando postulei os seus favores (arre que esta frase saiu-me mesmo bem!) havia uma razão extra às vulgares (se é que vulgares são o reconhecer a sua beleza, a sua simpatia ou a sua inteligência. Ou mesmo essa sua inexplicável fraqueza de gostar de mim...) havia um forte sentido de oportunidade e egoísmo meus.
É que, bem contra a minha vontade, não estou a ir para novo, bem pelo contrário. Vou, em alta velocidade para “idoso”. Velho, como antes se dizia. “Sénior”, como umas inqualificáveis bestas, muito politicamente correctos, raios as partam!, agora grunhem.
Ora, para um cavalheiro avançado em anos e ciente disso, nada melhor que mulher nova. Enfim com a novidade possível que eu também não sou tão tolo que a vá buscar a escalões etários com metade dos anos que levo. Sei que isso está na moda, que tem sido moda, mas olhando a certos exemplos (e por todos cito o Borges, o Cela ou o Alberti, gente muito mais interessante e inteligente do que este seu chevalier servant) a coisa tem resultados demasiado incertos. Maus, mesmo.
Bem sei que se diz, “a boi velho, erva tenra”, mas uma coisa é a festa dos olhos outra um compromisso de vida. E, depois, V. vinha adornada de filha gentil e quase criada, evitando-me assim aquelas chatices de limpar cueiros, levar à escola ou aturar os primeiros sobressaltos da adolescência. Vi-me assim, sem qualquer mérito próprio, abonado de mulher e filha casadoira, preparado para ter quem me empurrasse a cadeirinha, quando (e que seja tarde, ou nunca, de preferência) eu já não puder vir por meu pé para a esplanada.
Ora estas maleitas que agora a afectam, mesmo se, como os médicos do hospital me dizem, já estão resolvidas, não ajudam nada a tranquilizar-me. E depois, V sabe que eu fico um bocado desamparado com uma mulher desmaiada. E ainda por cima, mesmo com essa sua magreza evangélica, V. pesa como chumbo. É que, repito, já não sou novo! Aliás, o senhor Marquês de Pombal terá uma vez dito que um homem, mesmo morto, precisa de quatro outros para o tirarem de casa. Quem diz homem, quererá dizer mulher, que agora, com a moda da igualdade de sexos, parece que V pesa quase tanto quanto eu. Aí com vinte e muitos quilos de diferença mas para efeitos de bem-pensância V pesa o mesmo. E manda o mesmo. Ou para ser franco: manda muito mais!
Aliás, ao contrario do que piedosamente, alguém quis fazer-nos acreditar, as mulheres sempre mandaram mais! Dando-nos a ilusão que éramos nós quem mandava! Mandávamos, o tanas!
Quando a ordem simples (que nunca é simples, claro) não funciona, eis que um pobre macho se vê enrodilhado numa teia de insinuações, de sugestões, de argumentos, de água mole em pedra dura, que o desbaratam tão completamente que acaba cedendo pensando que impôs a sua razão!
Neste momento há por aí alguns sisudos leitores a abanarem a cabeça de acordo a uma tal velocidade que mais parecem moínhos de água. E dois tolos a dizerem que sou eu o tolo! Que mal se conhecem.
Confesso que estes três dias já de ausência sua tem sido estranhos. À uma, apenas puxei as orelhas aos lençóis da cama, deixei o cesto do escritório com papéis e aumentei gozosamente a desordem na secretaria. E fui comer lampreia!...
Demasiada liberdade dá para desconfiar. E lamentar. Num filme do Buñuel, desculpe-me este facataz pelos surrealistas!, mais propriamente “O fantasma da liberdade” ouve-se de quando em quando um grito “viva’ la ca’ena”, ou seja vivam os grilhões. Parec e que os espanhóis do início do seculo XIX não apreciavam devidamente a “liberdade que o “rei” José Bonaparte lhes trazia na ponta das baionetas napoleónicas. O povo preferia, apesar de tudo, o horrível Fernando VIII, um cobardão!, à liberdade, igualdade e fraternidade sugerida pelos “franchutes” invasores. E vai daí iam-se aos ocupantes com o que tinham à mão inventando ferozmente a palavra guerrilha e, pior ainda, o seu selvático resultado.
Nós por cá, gatas e eu, estamos na mesma: antes uma CG mandona, repontona, com a mania de lavar o lavado, irrompendo em imprecações contra o nosso laissez vivre laissez passez, do que esta estranha calma, este silêncio desanimador que atormenta a casa. A casa vazia. A casa assombrada. A sua casa...
Volte depressa! Volte bem! Sem Si isto é um desconsolo, uma aflição, uma desordem.
Volte para os que a amam!
* fotografia antiga de três cúmplices intitulada "la grasse matinée" e devida aos meus próprios talentosos fotográficos!