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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

au Bonheur des Dames 318

d'oliveira, 20.05.12

A prisão é uma chatice

 

( ainda por cima come-se mal)


1

 

 

 

 

 

We few, we happy few, bando f brothers

 

 

 

No dia, melhor dito na tarde de 19 de Maio de 1962, depois de uma tempestuosa Assembleia Magna, no Campo de Santa Cruz, um pouco mais de duas centenas de estudantes, entenderam reocupar as instalações da Associação Académica de Coimbra (AAC), entretanto encerradas pela policia na sequencia de uma numerosa série de incidentes provocados pela reacção da Academia coimbrã aos acontecimentos que mais tarde se chamariam “a crise académica de 62”.

 

Não vale a pena relembrar os factos mais conhecidos (estamos no ano do cinquentenário e os jornais – e aqui mesmo – já noticiaram o assunto) mas convirá saber-se que os efeitos do incidente lisboeta do Dia do Estudante provocara fortes ondas de choque em Coimbra. Proclamara-se uma greve de solidariedade, havia já numerosos processos em curso contra estudantes, nomeadamente contra a Direcção Geral da AAC, sucediam-se as manifestações, suspendera-se a praxe, decretara-se o luto académico, decidira-se anular as festas da Queima das Fitas e, em sucessivas Assembleias Magnas, votara-se a desconfiança nas autoridades académicas e sobretudo no Reitor (que não era de facto Magnífico) Braga da Cruz. A sede da AAC fora encerrada. Como já se disse, fora ocupada por uma multidão de estudantes a 9 de Maio e depois de uma saída negociada dos ocupantes fora novamente selada pela policia com o beneplácito do Senado Universitário.

 

As negociações para a saída da crise marcavam passo e, a cada dia que passava, tornava-se evidente para a minoria mais activista e mais solidária com a greve ininterrupta de Lisboa, que o saldo final do movimento estudantil se encaminhava para uma forte derrota.

 

Não vou polemizar sobre o bem ou mal fundado desta opinião que era a minha também. Professores com boa vontade, alguns lideres estudantis de segunda linha e eventualmente a maioria dos estudantes já cansados, sem festas da Queima e com os exames à porta inclinavam-se para um armistício com as autoridades que preservaria, segundo eles, o essencial, mesmo se isso significasse penas disciplinares para uns tantos, uma menor autonomia da AAC e uma paz académica podre.

 

A ideia de levar a cabo uma “acção exemplar” (a reocupação das instalações estudantis) de modo a tentar renegociar uma saída mais airosa para a crise, combinada com a tradicional ingenuidade e entusiasmo estudantis, levou esta pequena multidão à AAC.

 

Hoje em dia, é fácil descobrir os pontos fracos deste raciocínio. O corpus estudantil fora até onde era possível ir sem arriscar um ano de estudos. Aceitara não fazer a Queima, apanhara no lombo as bastonadas policiais, coisa, aliás, corrente na irrequieta Coimbra, aturara as recriminações da família longínqua mas pedir-lhe mais era difícil. Perder um ano, ser eventualmente (no caso dos rapazes) chamado para a tropa e malhar com os ossos em África onde se combatia numa duvidosa guerra (pouco ou nada contestada pela esmagadora maioria da população) nas matas do norte de Angola, já era algo mais, muito mais, sério.

 

Portanto, a ocupação. Desta feita, quem foi, foi conscientemente. Quem foi sabia que seria muito difícil sair dali como dez dias antes saíra. Não sei se alguém se sentia como um dos “happy few” bando de irmãos de Henrique V. Nem sequer sei se algum de nós teria lido Shakespeare. Mas, de certo modo o espírito estava lá. Sabíamo-nos poucos contra muitos, contra uma esmagadora indiferença, contra um pais embiocado, contra um sufoco que nos acompanhava desde sempre, longe da Europa que apenas conhecíamos pelo cinema, pelos raros turistas, pelos romances devorados com avidez. Pelas notícias cortadas por uma censura desajeitada e pela repressão sempre presente desde os inspectores dos isqueiros (que careciam de licença!) até ao cabo do mar que, nas praias, exigia decoro no traje de banho. Já não tenho bem presente se os homens na praia ainda eram obrigados a usar uma coisa chamada peitilho e que vagamente cobria parte do peito masculino numa ânsia desvairada de pudor que nos tornava risíveis e ridículos aos olhos dos primeiros turistas que lentamente descobriam um pais de bárbaros envergonhados. Aliás foi o turismo emergente que acabou com essa pundonorosa peça de vestuário e não a revogação da lei ou regulamento que a tornava obrigatória (às tantas ainda está em vigor...)

 

Sabíamos ,ou desconfiámos, que daquela vez, as coisas iam fiar mais fino. Que eventualmente seríamos desalojados à força, à bastonada, e que lá mais para a frente algo de pior nos poderia suceder. Talvez, até, temêssemos ser presos. Em Lisboa, dias antes, os ocupantes da Cantina Universitária, tinham sido expulsos de lá, conduzidos a um quartel onde tinham passado mais de 24 horas detidos.

 

A polícia de choque chegou como previsto em poucas horas. Em dez minutos arrombou as portas fracamente defendidas e, com surpreendente suavidade, deu-nos ordem de prisão.

 

Levou toda a gente que encontrou. E digo assim, porquanto um dos nossos companheiros (o Zé dos pregos) que já, como quase todos nós, estivera na primeira ocupação, teve o bom senso de se esconder no sótão do edifício entre duas vigas. Este “Zé dos pregos” capitaneara um improvisado bando de carpinteiros que em ambas as ocasiões pregara umas pibre madeiras nas janelas e portas da associação numa tentativa pueril mas divertida de converter aquele velho casarão, um antigo convento (dos Grilos) num bunker inconquistável.

 

Por onde andará este companheiro magnífico e louco, este artista do prego e da marreta, este clandestino dos sótãos, este companheiro dos morcegos, que aguentou a pé firme e prudente o seu clandestino poiso durante mais um inteiro dia até sair esfomeado mas livre do seu esconderijo? Onde quer que esteja, saravah!

 

E nós?

 

Pois nós, fomos conduzidos para o quartel da GNR, onde amontoados na cantina, perante o olhar ensonado deuns guardas e a vigilância mais apertada de vários agentes da PIDE fomos identificados. Depois desse passo, um selecto grupo de 38 Cavalheiros e 4 Senhoras da pior sociedade estudantil coimbrã foi separado da maioria dos seus colegas e amigos e conduzido para um destino menos lisonjeiro. As meninas recolheram aos calabouços privativos da PIDE coimbrã onde estagiaram longos dias. Os rapazolas foram metidos em dois autocarros da Policia de Choque e lado a lado com os policias armados de escopeta fizerma uma longa viagem até aos arredores de Lisboa. Era já dia quando chegámos à sinistra prisão de Caxias, onde, depois de fotografados e novamente identificados, fomos metidos durante algum tempo numa enxovia miserável. Nesse mesmo dia, separaram-nos em dois grupos desiguais e durante umas semanas de mau agoiro, estivemos metidos nas casamatas mais antigas do forte.

 

Foi a 20 de Maio que lá cheguei, há exactamente cinquenta anos....

 

(continua)

 

* nota: A História regista 40 presos masculinos e eu acuso apenas 38. A razão é simples. Os dois presos que não registei não estavam na AAC. Carlos Mac-Mahon Vitória Pereira, angolano, ex-presidente da Mesa da Assembleia Magna, depois deputado e bastonário da Ordem dos Médicos da República Popular de Angola foi preso em casa e levado a 21 para Caxias. António Mota prego, futuro advogado vimaranense e deputado pelo PS foi detido na baixa de Coimbra, onde entretanto se registavam manifestações duramente reprimidas e conduzido individualmente para a cadeia onde já estávamos. Por ironia, ele apenas ia para Guimarães obedecendo a ordens fortíssimas do pai que o queria longe daquela confusão coimbrã.  

 

 

 

  

 

 

 

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