Folhetins da riqueza e da pobreza (1)
Pontos de partida
1. Partamos de três hipóteses que podem ser provadas, mas que dispensamos de o fazer:
- Produzir é criar valor novo, é aumentar a massa do rendimento existente. Criar valor novo exige a realização de trabalho humano. Claro que na atividade produtiva não basta trabalho, tem de haver máquinas e equipamentos, matérias-primas, energia e organização. Todos estes recursos produtivos são importantes, todos estes recursos produtivos permitem que uns produzam mais do que outros e que, mesmo criando a mesma quantidade de valor novo se apropriem de mais ou menos do que os outros, utilizando para tal a concorrência, os preços. Esse valor novo depois de produzido é repartido (salários e honorários, lucros das empresas, juros, rendas, impostos, etc.) e utilizado (para aumentar a produção, para consumir, para doar, etc.).
- A sociedade não é homogénea, antes pelo contrário. Uns nascem em berço de ouro e terão tudo toda a vida sem necessitarem de trabalhar e outros trabalham duro toda a vida e não têm o que necessitam para tratar adequadamente da saúde, da educação, da habitação, da própria sobrevivência quotidiana. Chamemos a essas diversas camadas grupos sociais. Muitos dos comportamentos desses grupos sociais podem ser convergentes (ex. promoção da cultura, democratização do ensino, defesa das liberdades formais, etc.) e outros nunca o poderão, porque o que é bom para uns pode ser mau para outros (ex. liberdade material, aumento das diferenças na distribuição do rendimento, influência na atividade política, etc.). Há grupos sociais que têm características próximas de outros, há grupos que são radicalmente diferentes. Se falarmos em termos estritamente económicos podemos dizer que esses grupos são classes sociais. Se incluirmos nesta designação a autoconsciência da sua posição na sociedade, do que os diferencia e do que os aproxima, então muitos grupos sociais não chegam a ser classes sociais. Entre o grupo e a classe entrepõe-se a organização política e ideológica, a força dos meios de comunicação.
- A sociedade em que vivemos é capitalista, tendo definido os seus contornos modernos com a revolução industrial inglesa que progressivamente se espalhou por todo o mundo. Uns são proprietários de riqueza, de terras, de fábricas, de serviços, de títulos da bolsa, outros não têm nenhuma propriedade. Entre estes dois extremos há várias intensidades de propriedade. Propriedade é poder de múltiplas formas, desde maiores possibilidades de educação e a integração em redes sociais de elites, desde controlar a produção de coisas decisivas para as populações até terem maiores possibilidades de influenciar a forma como as pessoas em geral pensam, nomeadamente via meios de informação. Há pessoas que conseguem furar individual esta forma de organização fortemente hierarquizada, há muitas formas e processos de alterar a correlação de forças sociais, mas grosso modo poder económico, mais propriedade, e mais nevrálgicas, significa maior possibilidade de influenciar as opções culturais, as ideias que circulam e aquelas que nunca circulam, de fazer opinião pública, de “encostar a faca ao pescoço” dos interesses coletivos, de pertencer a uma elite que partilha entre si o poder político. Por palavras simples, de uma forma estrutural e global o poder económico influencia decisivamente e controla a atividade política e ideológica da sociedade. A democracia altera a forma como tal se processa (por exemplo, em vez da censura ou da proibição de divulgação de “ideias subversivas” organiza-se de certo modo os meios de informação e quase se silencia as leituras diferentes do “politicamente correto”.
2. É partindo destas premissas que vamos fazer uma incursão histórica sobre diversas formas assumidas ao longo dos anos o que podemos designar pela luta entre a vontade de aumentar a apropriação do valor novo por parte dos proprietários da riqueza e dos meios de produção (entenda-se, da grande riqueza e dos grandes meios de negócio) e as dificuldades com que se defrontam. Conflito entre querer ganhar mais e isso exigir ganhar menos do que desejariam. Conflito que desemboca em novas formas de organização do capitalismo, isto é, da sociedade em que vivemos. Incursão histórica que poderá ajudar a entender melhor a situação que atualmente vivemos.
Salários: custo e mercado
3. O primeiro conflito resulta do simples facto de que o aumento dos salários da generalidade dos trabalhadores por conta de outrem faz diminuir os lucros, mantendo-se tudo o resto constante. Assim sendo, e pretendendo os proprietários de empresas terem o maior lucro possível dentro das estratégias que definiram, o mais conveniente seria diminuir os salários. E como podem diminuir os salários? Uma forma é diminuir o montante pago em remunerações, não podendo ir abaixo do que é estritamente necessário para a sobrevivência e reprodução biológica no quadro de uma determinada sociedade. Admitindo que os trabalhadores não estão disponíveis para “solução” surgem diferentes formas de luta e embora os empresários tenham sempre mais força que os seus opositores, o que ganham por uma lado (pagando menos) perdem por outro, pelo menos em parte (greves, instabilidade organizativa, ausência de uma cultura de empresa, etc.). Então, como foi recomendado frequentemente, uma alternativa é através do aumento dos preços, aquilo que frequentemente se designa por inflação. Eis maneiras eficientes de diminuir o salário.
Surge uma dificuldade. Ter lucros não é só produzir mercadorias, sejam elas bens materiais ou serviços, é preciso vendê-las. Estando demonstrada a impossibilidade de só se produzir e vender bens de luxo, se diminuem os salários da generalidade dos trabalhadores por conta de outrem (e profissões liberais), grande maioria da população, estão a diminuir o seu mercado, isto é, a restringir as possibilidades de efetivamente terem lucros expressos em moeda.
“Preso por ter cão e presos por não o ter”. Um dilema, que poderia o bom senso tentar resolver dizendo uma frase sábia: “é preciso encontrar o equilíbrio, é nas opções intermédias que está a sensatez”. Afirmação que morre à nascença porque os capitalistas não raciocinam coletivamente. Raciocinam e atuam individualmente, num processo de concorrência dentro do sector, no país ou à escala mundial, mesmo entre sectores, procurando diversificar as atividades e aproveitar o que é mais rentável. Mas há sempre uma saída, um caminho que agrada a quem tem o poder económico e capacidade de levar à prática as grandes inovações.
A história mostrou duas saídas. Uma primeira é frequentemente atribuída a Ford: “salários mais altos e maior produtividade”. Por um lado aumenta-se estrondosamente a produtividade do sector industrial (ex. produção em cadeia, automação), o que permite que os lucros aumentem mesmo com a manutenção dos salários. Por outro lado o aumento da produtividade diminui os preços das mercadorias pelo que com os mesmos salários os trabalhadores podem melhorar o seu poder aquisitivo. Por outro estão criadas as condições para se poder também aumentar os salários nominais porque o aumento dos lucros permite isso. e assim se alarga o seu próprio mercado, criando poder de compra para absorver os bens que são postos à venda.
Façamos um parêntesis. Do que foi disto não se pode deduzir que só se pode aumentar os salários se houver um aumento da produtividade. Essa afirmação não é uma constatação empírica, é um juízo normativo: para se mantarem os lucros, para se manter a mesma carga tributária sobre as empresas e admitindo que tudo o resto se mantem constante só um aumento da produtividade permite um aumento dos salários. Uma normatividade que muitas vezes não se verifica, como muitos testes econométricos o demonstram. Além disso a relação entre produtividade e salários não é só daquela para estes. Também há a relação inversa: em algumas situações históricas foram os salários mais elevados que geraram desenvolvimento. Estes estimularam o aumento da produtividade, estimularam a utilização de mão-de-obra mais qualificada, estimularam a inovação.
Mas não se fica por aí as possibilidades de resolver o conflito. Infelizmente as empresas precisam dos trabalhadores, pensarão muitos que olham para as suas empresas não como um espaço social mas como um “porquinho de capitalização”. Ainda não há robots que não comem, não precisam de habitação, não têm ambições educativas e culturais e para se reproduzirem não precisam de sexo. E o tal desenvolvimento tecnológico exige trabalhadores mais qualificados, com mais educação. E a educação para além de conhecimentos transmite conceções de dignidade, de leitura da sociedade, de acesso a conhecimentos científicos “subversivos”. E se sempre que vão para o desemprego correm o risco a morrerem de fome pode gerar-se escassez de braços e cérebros para trabalhar, sobretudo em épocas em que os negócios correm às mil maravilhas. E se estão doentes, não se correrá também esse risco? Se precisam de trabalhadores que não morrem quando estão no desemprego, que se podem tratar e educar, só parece haver uma hipótese: pagar salários que permitam eles precaverem-se nessas fases funestas, que possam aprender e melhoras as suas capacidades. A não ser que… é verdade, há outra saída, ser o Estado a tratar disso: educação pública, assistência pública na doença, um conjunto de serviços pagos pelo Estado. Dessa forma poder-se-ia conseguir pagar menos salários, mesmo que uma parte desse valor retido tenha que ser gasto em impostos.
E assim se foi fazendo muitos anos. O que se designa frequentemente por Estado-Providência é o resultado de três movimentos totalmente diferentes, é uma “unidade na ação” de forças antagónicas. Por um lado esse expediente é uma forma de cada empresa pagar menos salários e de uma parte dos encargos com essas atividades ser suportada pelos próprios trabalhadores por conta de outrem. Por um outro corresponde às exigências desses mesmos trabalhadores, é um pequeno resultado da sua luta por uma vida mais digna, lembrando que são cidadãos e não mão-de-obra. Este seria um filme a ser contado noutras histórias, em que se constataria que o chamado Estado Previdência foi a expressão política da afirmação do individualismo, fundamental para a própria expansão do capitalismo.
Retomando o nosso fio da miada e resumindo o que dissemos aqui estamos num dilema: aumentar ou diminuir lucros? Melhor, como conciliar reduzir salários e aumentar as vendas? Este é o primeiro conflito, tanto mais grave quanto estamos num capitalismo em que o seu núcleo central é a indústria, em que o crescimento e desenvolvimento económico passam fortemente pela expansão do mercado interno.
4. Como esta conversa já vai longa. Na próxima procuraremos referir o problema do abastecimento de matérias-primas.