no labirinto alfarrabista 3
Um general alemão
Ainda não convalesci desse vulcão chamado “Servidões” de Herberto Hélder. Nem espero convalescer, convenhamos. Ando com o livro debaixo do braço e só leio um texto por dia. Às vezes nem isso. Como uma criança com um bolo, esforço-me por fazer render o peixe. Bem sei que, em acabando, posso sempre recomeçar. Mas não será nunca a mesma coisa. À uma porque a leitura de HH é sempre diferente. Desde o momento solar em que li “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e arbusto de sangue. Com ela encantarei a noite...” (muitas graças se deem a António Carlos Manso Pinheiro, meu amigo, meu irmão nestas coisas, meu colega desde o 1º ano do liceu, levado por um cancro ignóbil que poupa os velhacos e nos rouba os melhores e que num dia alucinante me leu estas linhas – há de ter sido em 61 ou 62- o mundo nunca mais foi o mesmo)já senti essas palavras mudarem de cor, de volume, de sentido, mil vezes.
Não consigo imaginar HH, que conheci e frequentei durante algum tempo (tempo de espanto e lume!) aos 80 anos a criar mais outro momento único da poesia portuguesa. Mas criou!
Por isso o vou lendo, respirando, mastigando com a gulosa lentidão do que sabe que a poesia é para quem dela precisa.
Sendo assim, e continuando uma tradição comum a tantos leitores, vou entremeando HH com outros autores. O último em data é Paul von Lettow-Vorbeck(Memórias da guerra na África Oriental, 1914-1918). Dito assim, é provável que ninguém saiba quem é.
Mas é alguém bem próximo de nós, portugueses, pelos que estimam a História pregressa do seu país. Von Lettow foi o general alemão que nos derrotou sem apelo nem agravo, no Norte de Moçambique, durante a 1ª Grande Guerra.
Todavia, não nos derrotou apenas a nós. Com um exército que nunca teve mais de 300 a 500 branco e dois a quatro mil askaris (soldados negros de grande qualidade) Von Lettow derrotou sucessivamente exércitos ingleses muito superiores (chegaram a ter vinte vezes mais tropas do que as dele, invadiu a Rodésia do Norte (actual Zambia)) e numa das suas entradas em Moçambique, quase chegou às margens do Zambeze. Contra ele combateram sucessivamente 127 (cento e vinte sete) generais dos quais se deve destacar o sul africano Smuts.
Acresce que, em tempos tão difíceis como aqueles, a “força de protecção alemã da colónia do Tanganika” nem sempre teve o apoio dos políticos coloniais aí instalados. Em último lugar, se a guerra é sempre violenta e despiedada, valha a verdade que as tropas de von Lettow conseguiram ganhar a admiração dos adversários por não terem feito jus à má fama de gozavam os alemães. Os prisioneiros foram, regra geral, correctamente tratados e aos oficiais prisioneiros apenas se exigia a palavra de honra que, uma vez devolvidos à liberdade (às tropas alemãs em constante movimento não convinha manter prisioneiros quanto mais não fosse por nem sequer terem sempre os mantimentos necessários para se manterem em forma)não voltariam a pegar em armas contra os seus captores. Os soldados negros eram libertados rapidamente pelas mesmas razões (economia de meios)e porque, em muitos casos, o português é o mais evidente, tinham sido mobilizados à força e a sua fidelidade aos antigos chefes militares era, a existir, extremamente reduzida.
Acabada a guerra, declarado o armistício, foi o pequeno exército alemão, reduzido a cerca de trezentos europeus e menos de mil e quinhentos askaris, instado a cessar hostilidades sob a garantia de que isso não seria considerado uma rendição. Claro que, uma vez depostas as armas, a situação dos alemães pouco se diferenciou da rendição.
Quando regressaram à Alemanha, foram recebidos como heróis o que não é de estranhar num país acabrunhado pela derrota. Von Lettow passou pouco tempo depois à reserva mas, mesmo se nacionalista, recusou altivamente apoiar Hitler fosse de que forma fosse. Junker, prussiano, conservador mas demasiado apegado a valores que exluiam totalmente qualquer adesão ao Reich de 1000 anos e à infâmia do NSDAP. A edição portuguesa que encontrei depois de anos de procura (e depois de ainda há pouquíssimo tempo ter encontrado uma italiana) é ilustrada por desenhos e mapas de operações e está sublinhada a lápis pelo anterior leitor e proprietário que não se coíbe de comentar. Um “must”!