estes dias que passam 314
Deixem o panteão em paz na sua pasmada solidão
Como de costume, o panteão nacional, foi uma ideia copiada da França. Em 1916, a 1ª República entendeu dar conveniente sepultura aos heróis nacionais e a um punhado de pais da pátria. Entre estes, avultam, Sidónio Pais, Manuel de Arriaga e Óscar Carmona. Dos três, o mais lembrado é Sidónio, o Presidente-Rei, assassinado na estação do Rossio depois de ter protagonizado uma tentativa radical de reinvenção da República (a República nova, que nunca o foi e que caiu com o mesmo estrondo – ou falta dele – dos restantes cinquenta governos da 1ª República).
Manuel de Arriaga é uma sombra amável dos primeiros tempos quase inocentes da República. Distinguia-se entre os correligionários por não ser anti clerical e jacobino. Todavia, nem esse seu espírito conciliador lhe foi de préstimo entre os adversários políticos monárquicos ou conservadores. Eleito, Presidente da República em 1911, foi forçado a resignar três anos depois. Contra ele estiveram sempre os “democráticos” e a infeliz decisão de chamar Pimenta de Castro para o Governo. Porém, actualmente, é difícil imaginar decisão diferente dessa, sobretudo tendo em conta que foi tomada num momento em que com incursões monárquicas a insatisfação na tropa punha em extremo risco as (frágeis) instituições republicanas.
No tocante a Carmona, um marechal sem vitórias na frente de batalha, conspirador e mação, principal apoio de Salazar (que retribuiu promovendo-o a marechal) entrou em santa Engrácia por obra e graça do Estado Novo.
Não vale a pena referir Teófilo Braga, presidente provisório imediatamente a seguir ao 5 de Outubro e efémero sucessor de Arriaga. Escritor de escassos méritos, que já ninguém conhece, político sem grande rasgo e interventor menor na Questão coimbrã.
Escritores, que me lembre andam por lá quatro: Herculano, Garrett, João de Deus e Aquilino.
Heróis nacionais que me lembre está lá, e mal, Nuno Alvares Pereira cujo primeiro túmulo penso que estivesse no Convento do Carmo onde poderia muito bem estar, caso não o achem digno dos Jerónimos. No Carmo, em pleno centro de Lisboa, o Condestável estaria muito mais perto das pessoas e, sobretudo, estaria num local muito seu.
E finalmente Amália. Ali está a excelente senhora, longe do seu público, dos seus admiradores, do fado, amortalhada na pedra sem alma, duma não igreja que só é celebre pelo tempo que demorou a construir.
Faço parte da pequeníssima minoria que entrou lá dentro, levado por um pai que queria mostrar aos filhos uma outra Lisboa que em 1952 estávamos prestes a abandonar. Nunca mais lá voltei, de resto é difícil chegar lá a menos que se tome um eléctrico ou um táxi.
Os jornais noticiam que em 1912 terão lá ido cerca de sessenta mil criaturas. Ou seja cinco mil por mês cento e poucas por dia. Aposto, dobrado contra singelo, que nesse número deverão estar largos milhares de criancinhas das escolas que, coitadas, fazem tais visitas ao abrigo de umas excursões escolares que os devem chatear prodigiosamente.
Portanto o Panteão, importação francesa, como de costume, mal transplantado em Portugal, continua a ser um corpo estrangeiro no país que o ignora soberbamente.
Todavia, eis que por morte de Eusébio, o Panteão, casarão desconhecido de toda a gente, aparece subitamente em todas as conversas e mesmo aqui, há que confessá-lo. Passemos em revista os argumentos.
O primeiro, e mais ridículo, é que, com Eusébio, o Povo com letra grande entraria naquele medonho sarcófago. As alminhas que afirmam isto esquecem que o Panteão não se destina ao Povo mas justamente a uma elite que, no caso em apreço, parece escandalosamente reduzida. Mesmo se algum dos lá desterrados tenha por alguma razão saído do tal Povo (sempre com letra grande...). Ali preso, sem povo que o visite, que lhe leve uma flor, uma oração ou um qualquer gesto de reconhecimento, o pobre popular está medonhamente só e, apostemos, abandonado.
Em segundo lugar, como previa, a trasladação do esquife de Eusébio, já deu direito a uma despudorada manifestação partidária, aliás multipartidária. A gentinha política aboletada no Parlamento viu no caso uma maneira fácil e populista de mostrar ao Povo, às pessoas que genericamente a despreza ou abomina, que também ela a fina flor dos eleitos, adora o Povo, só pensa no Povo, nada mais vê que o Povo por interposta figura de Eusébio que se por cá andasse ainda ficaria seguramente siderado.
Convenhamos, alguém viu o parlamento e toda aquela turbamulta que o ocupa, empenhado durante estes anos todos em glorificar Eusébio? E se tiveram tempo e oportunidade...
É claro que, agora, morto e enterrado, Eusébio, já não é o “instrumento da propaganda” do Portugal multirracial e imperial, já não é o “cúmplice dos colonialistas” e outros mimos do mesmo género. Pessoalmente, e como o sabem todos os que me vão aturando por aqui, nunca me deixar embrulhar por despropósitos deste género mas que os ouvi, ouvi-os e não poucas vezes.
Tentar também, vir agora dizer que Eusébio foi uma ponte entre Moçambique e Portugal, entre pretos e brancos também obviamente não tem qualquer sentido. Nascido na Mafalala, no “caniço” que bordeja Maputo, Eusébio acabou por ser um cidadão português, quase um lisboeta, onde viveu quase três quartos da sua vida. Em Moçambique, algumas criaturas indignaram-se muito com o facto dele não ter ido para Moçambique depois da independência. Em primeiro lugar não foi o único nem sequer é caso raro. Depois sentia-se bem por cá onde tinha amigos e onde era geralmente admirado e respeitado. Depois, nas vezes em que visitou a terra natal, fartou-se de explicar isso. Será que Moçambique (e alguns dos mais assanhados ideólogos frelimistas cuja gana aos estrangeirados é conhecida) lhe ofereceria, pelo menos, um estatuto, e meios idênticos aos que Portugal (honra lhe seja, ao menos por esta vez) lhe ofereceu? É crime sentirmo-nos bem numa terra onde nos tornamos conhecidos, respeitados e amados?
A latere, recordemos só de passagem, e de mão no nariz, algumas infelizes declarações de personalidades políticas que terão exprobado a Eusébio a falta de cultura (provavelmente literária ou pictórica... ) como se isso fosse crime ou tivesse impedido o homem de ser um fabuloso profissional, um futebolista educadíssimo, e um cidadão modesto que se prestou a levar o nome de Portugal a toda a parte. Ou aqueloutra criatura que, canhestramente, meteu a pata na poça ao argumentar com os custos milionários da entrada no Panteão.
(os leitores apreciarão, assim o espero, o facto de apontar estas luminárias tão anonimamente quanto possível. Patetices não devem ser premiadas com nome e apelido dos autores.)
Pessoalmente é-me absolutamente indiferente a entrada de Eusébio no Panteão. A sua glória está feita e durará, pelo menos, uma geração. Depois, logo se verá. Que tenha mais sorte do que Herculano, Arriaga ou Teófilo que são desconhecidos para uma imensa maioria de portugueses. Que eu saiba, de Herculano apenas circula – se é que não está esgotada – a “História de Portugal”, duvido que haja alguma edição decente de João de Deus (um poeta admirado e querido por todos os seus contemporâneos e respeitado por qualquer pessoa que se preocupe por educação infantil. O “Campo de flores” é ainda hoje um excelente livro de poesia cuja leitura é amável e gratificante). Garrett, autor dessa extraordinária “Viagens na minha terra”, um texto absolutamente genial, tem mais sorte, se calhar porque algumas das suas obras constam dos currículos escolares. )
Tudo isto para significar que a estadia no Panteão não adianta um milímetro no conhecimento dos que lá estão, da sua obra, da sua vida, do seu exemplo. Armazenaram meia dúzia de glórias por lá e com isso os Pais da Pátria entenderam ter contribuído prodigiosamente para o culto dos nossos maiores. Fatal engano.
Finalmente, nunca me espantarei suficientemente, com o inusitado número de cidadãos anónimos que, mesmo sem saberem o que é, onde está e quem lá está para quê, opinaram gravemente, ou em alta grita, com o direito de Eusébio àquela augusta casa.