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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

O samurai de serviço

Incursões, 21.10.04
Desculpem, mas não resisto a transcrever aqui esta deliciosa crónica:



A Cabala Involuntária


Por EDUARDO PRADO COELHO, o fio do horizonte

Quinta-feira, 21 de Outubro de 2004



O caso Rui Gomes da Silva continua a fascinar-nos. Há algo de tão invulgar e surpreendente na personagem que nós não acreditamos que possa ser apenas aquilo que está diante dos nossos olhos. Deverá existir uma armadilha, um alçapão, um truque escondido, que explique aquele comportamento obtuso. Afinal de contas, por muito fortes que sejam os laços de amizade, ninguém chega a ministro com um tal grau de aparente indigência mental. Tem de haver outra coisa.



É óbvio que Gomes da Silva executa uma tarefa de assassino profissional por conta do primeiro-ministro Santana Lopes. O primeiro-ministro abre os braços, num gesto de comovida inocência, e declara: "Eu? De modo algum, não é possível, eu até estava a dormir a sesta..." Entretanto, embuçado na sua personalidade de samurai de serviço, Gomes da Silva executa. É aqui que se coloca a pergunta: executa mal para que não se pense que ele acredita no que está a fazer, ou executa mal porque não é capaz de executar melhor? Como justificar uma "performance" tão canhestra?



O depoimento prestado à Alta-Autoridade por Gomes da Silva foi de tal modo desastroso que tudo parece levar a pensar que ele só pode fazer de propósito. Ninguém é tonto tantas vezes. Há um Guiness para estas coisas. Gomes da Silva acha que é um político (se a política fosse isto, melhor seria o suicídio) respondendo a outro político. Ninguém explicou a Gomes da Silva que, tendo sido bafejado pela sorte de ser membro do Governo, é como membro do Governo que fala, e deste modo compromete todo o Governo. Dar-se-á conta de que andam membros do Governo encostados às paredes para que não os associem a tais alarvices? Um membro do Governo não pode dizer certas coisas sem que isso tenha consequências que, se ele fosse um mero político, não existiriam. Donde, dizer que não há fundamento que legitime a relação entre o que a infeliz personagem disse e a atitude da TVI é totalmente ridículo: nunca uma pressão foi tão descarada. Não pode ser negada porque milhões de portugueses a viram: sequência é consequência.



Que Marcelo dizia "inverdades" (admirável expressão que ainda ninguém distinguiu de "mentiras") e Gomes da Silva explica quais foram: a formação deste Governo foi uma manta de retalhos (até Santana Lopes sabe que foi); "há falta de coordenação" (o que é tão óbvio que levou o primeiro-ministro, num gesto inédito, a dizer que coordenava); que o primeiro-ministro não tem perfil (até Durão Barroso sabe que não); que o Governo foi desastroso no caso da Galp (o que se mete pelos olhos dentro). Se estas são as tais "inverdades", Gomes da Silva está lélé da cuca.



Achando que era pouco, Gomes da Silva foi mais longe e conseguiu enriquecer mais uma vez o léxico português. Já se lhe devia o "contraditório", motivo de gáudio em toda a parte. Temos agora essa espantosa aberração semântica que é "uma cabala involuntária". Alguém teve a caridade de explicar a Gomes da Silva o que significa a palavra "cabala"? Não será melhor arranjarem um assessor de português? Mais um, menos um, não é por aí que desequilibramos as contas do Orçamento Geral do Estado.


"Sarilhada"

Incursões, 21.10.04
Segundo o Diário de Notícias de ontem, a transferência dos processos da justiça militar para os tribunais comuns, decorrente da recente entrada em vigor do novo Código de Justiça Militar, está a provocar um conflito de competência entre juízes e magistrados do Ministério Público.

Dá-se aí conta da opinião do porta-voz do Conselho Superior da Magistratura (CSM), Antero Luís, que admite que se está perante «um problema grave» que terá de ser resolvido em sede de recurso. Segundo ele, em despacho de 14 de Setembro, o vice-presidente do CSM, Santos Bernardino, definiu que os processos em instrução que transitaram da justiça militar seriam da competência dos respectivos juízes de instrução. Entre outros argumentos, Santos Bernardino apoiou-se no n.º 9 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, o qual estabelece que «nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior». Ou seja, como no anterior Código de Justiça Militar, os processos estavam sob a alçada de um juiz de instrução, os mesmos não podem transitar agora para a esfera do MP, refere Antero Luís.

film stillA ser verdadeira a notícia, e é sob reserva o que se diz a seguir, trata-se de uma visão com um só olho, à Moshe Dayan, quando o que se impõe é uma leitura multifacetada da Constituição, à maneira de um qualquer insecto, desses que vêem para todos os lados.

Não basta ler isoladamente o n.º 9 do artigo 32.º da Constituição. Impõe-se fazê-lo articuladamente, por exemplo, com o n.º 5 do mesmo artigo, que diz que o processo criminal tem estrutura acusatória, e, sobretudo, com o artigo 219.º, n.ºs 1 e 2, que diz que é ao Ministério Público que, com autonomia, compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade.

É preciso ter presente ainda que a instrução de que falava o revogado Código de Justiça Militar nada tem a ver com a fase de instrução tal como hoje em dia é entendida.

E, já agora, talvez não seja despiciendo ler o que diz a nova lei – sempre, é claro, à luz da matriz constitucional –, segundo a qual as disposições processuais do [novo] Código de Justiça Militar são de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro), não se podendo dizer que a conversão da anterior “instrução”, dirigida por um juiz, na correspondente fase do actual inquérito, sob a direcção do Ministério Público, seguida, eventualmente, da moderna instrução, da titularidade de um juiz, limita os direitos de defesa do arguido.

O que a Constituição seguramente não diz é que possa ser o Conselho Superior da Magistratura, ou um seu qualquer membro, a regular administrativamente a competência para instruir os processos militares em que não foi ainda exercida a acção penal, e, muito menos, que essa regulamentação o possa ser sem publicidade, como que à socapa.

Como não diz que os juízes das secções criminais de instrução militar, contra o que há de mais elementar, possam ser colocados clandestinamente nos respectivos tribunais. Aí, sim, pode haver verdadeira limitação dos direitos de defesa do arguido, que tem direito a um juiz natural.

Em suma (a ser verdadeira a notícia): o senhor vice-presidente do CSM criou uma grande “sarilhada”. Apareça quem a deslinde.