Sendo dia de folga e, portanto, de jubiloso ócio, estive a ler Robert Walser (1878 – 1956), o autor de língua alemã que Kafka mais admirou. E também Musil, Herman Hesse e Walter Benjamim. Tem um livro de textos breves traduzido em português:
A Rosa (Relógio d’Água) e um conto delicioso na Revista
Ficções (número fora de série dedicado a ficções
de comer). Em 1933, desistiu de escrever e internou-se num asilo psiquiátrico até à morte. Consta que se justificou deste modo: «Não estou cá para escrever, mas para ser louco».
Esta separação tão lúcida, tão inesperada e tão humorística, entre a obra e a loucura, por parte de um pressuposto louco, levou-me a revisitar Foucault (
Histoire de la folie). Foucault põe em destaque como o mundo moderno mudou de atitude face à loucura, porventura constituindo essa mudança de atitude um traço fundador da modernidade. A frequência com que obras tão cintilantes nos domínios da pintura, da literatura, da música nos confronta com a loucura dos seus autores (Holderlin, Nerval, Nietzche, Artaud, entre tantos e tantos outros) diz ele que deve fazer com que a tomemos muito a sério, mas que não nos devemos enganar: não há reconciliação, nessa mudança de atitude, entre a
obra e a
loucura. Onde há obra não há loucura, embora possa existir contemporaneidade de uma e outra. Mas há um triunfo inegável da loucura: o mundo que pensava dominá-la, justificá-la pela psicologia, é, afinal, ele que se tem de justificar perante ela, medir-se com a desmesura de obras como as de Nietzche, de van Gogh e de Artaud.
Por associação, cheguei ao filósofo marxista Louis Althusser. Um homem de uma envergadura inegável, que escreveu uma obra marcante e deu um poderoso contributo para o pensamento
estruturalista, do qual também comungou Foucault. Como se sabe, matou a mulher, por asfixia, quando lhe fazia uma massagem. Desencadeado o processo-crime, chegou-se à conclusão de que era inimputável, por força de uma doença psiquiátrica de que era portador. Foi alvo de uma medida de segurança e internaram-no num manicómio.
Esta situação tinha, como era evidente, duas consequências, assim problematizadas: que valor tinha a sua obra pretérita, em face da sua constatada loucura?; que explicação (omitida) para o acto cometido? Foi o próprio Althusser que as problematizou, face à necessidade de, por um lado, recuperar toda uma coerência teórica para a obra de uma vida inteira, e por outro, a necessidade de apresentar e explicar o crime (também obra sua), tendo-lhe sido sonegado o julgamento público e, portanto, o momento de aí dar a sua versão dos factos. É que um louco, por definição, não pode explicar o seu acto, que escapa justamente a todo o esforço de racionalização. Como tal, fica privado de prestar contas à comunidade. Ora, foi para preencher essa lacuna (o lugar da abolição da consciência) que Althusser escreveu essa maravilhosa obra que é
L’Avenir est longtemps (tradução portuguesa da ASA, 1992:
O futuro é muito tempo, seguido de
Os Factos). Uma obra valiosa não só do ponto de vista teórico, mas também (e sobretudo) literariamente muito bela.
Mas terá logrado explicar o nó do problema, ou seja, a sua loucura, o seu acto tresloucado?
Seja como for, há aqui um esforço sério de autognose da loucura.
Artur Costa