DANNY le ROUGE CORA EM AMSTERDÃO
Os juristas, quando novos, são praticamente idênticos aos restantes mortais ou, pelo menos, fazem por isso. Na década de 70, tirante as cabeleiras que eram mais curtas e uma certa predisposição para gravatas discretas, esta verdade já tinha foros de cidadania mesmo - aliás, sobretudo - entre a tribu jus-comparatista que acorria à Faculdade Internacional para o Ensino do Direito Comparado. Apesar dos estudantes se recrutarem, apenas, entre licenciados, estes ainda não tinham adquirido os hábitos de compostura que, ao fim de meia dúzia de anos, soem usar os profissionais do foro e similares (conservadores, notários, professores e investigadores).
Chegou a acontecer que a professores que já tinham ultrapassado o seu milésimo aluno chumbado (mínimos olímpicos nessa época) lhes puxasse, inesperada e subitamente, o pé para a valsa, e fossem apanhados a portar-se como seres humanos, bebendo-lhe um par de cervejas a mais ou aviando, em festas mais adultas, um par de slows mais langorosos que um espreguiçar de Marilin Monroe. Atrevo-me mesmo, já que o vosso silêncio cúmplice me parece encorajador, a confidenciar-vos que me chegaram ecos de namoros breves mas fogosos dando todo o sentido a uma tirada do turinês Pietro Bruno que, numa noite inesquecível em Madrid, durante a sessão de Verão do curso de Instituições Europeias, me disse num sussurro que aquilo (e não o belo filme de Zurlinni) é que era uma "estate violenta". Assenti e prometi nunca contar à noiva, e minha actual comadre, as aventuras do desbragado lombardo numa Espanha delirante que celebrava os últimos estertores do generalíssimo: no fim de contas, e dado que a parceira era espanhola e adulta, aquilo poderia ser tomado como a abertura de mais uma frente de luta contra o franquismo.
Basta, porém, de considerações irrelevantes e entremos na historieta da jornada. Dentre os muitos que aportaram à sessão de Verão de Amsterdão distinguia-se pelo ar seráfico um suíço cuja única aventura que se lhe creditava consistia em ter estudado em Freiburg na Alemanha, longe da patria potestas, das vaquinhas leiteiras e das raklettes. Adimitimo-lo no nosso grupo a pedido da Renata B. que, com um desembaraço todo germânico, nos fez perceber que aquele verão era a última oportunidade que a vida dava ao Daniel de ser jovem. -"Se ele sai da Holanda como veio de Freiburg até o glaciar de Zermatt passa a ser mais interessante!"
Perante este aflitivo apelo, um suíço, mais conservador que o queijo fundido, passou a pertencer ao nosso grupo sob o eloquente apodo de "Danny le rouge" que, modéstia aparte, se me deve por inteiro. Nem vos conto a nossa ruidosa e bem humorada primeira excursão em Amesterdão com D-le-R a tiracolo. No bairro da lanterna corou nos primeiros dez segundos e quando saiu parecia um tomate bêbado. No Paradiso queria por força beber um copo de leite e às 11 da noite (e à 2ª cerveja) jurou que amava a madrugada. Esquecendo-se que a Renata não falava espanhol a Montse Poblet, veterana de todas as sessões, disparou-lhe docemente -"Mira, Nati, que tio mas cachondo ese rojito!". Nossa Senhora de Babel inspirou a alemã que soltou uns significativos acenos de cabeça e pediu, na passada, mais uma caneca.
Ao fim da primeira semana a educação sentimental de D-le-R atingiu o primeiro patamar: industriado por um dominicano ( da República Dominicana, claro, que este texto é laico até dizer basta...) bem disposto, o suíço tratava as ibéricas por "mona" e "guapa" e os cavalheiros germanófonos e pouco dados às línguas peninsulares por "pendejo". Tudo isto com imenso sotaque e mais corado do que uma lagosta suada.
Ía a sessão jus-comparatista de Verão a todo o vapor quando, e por mero acaso, aconteceu esperarmos juntos, na faculdade de direito, um elevador que nos transportasse até ao refeitório. Conosco, na mesma leva, estava o brejeiríssimo Jean-François Brégi. O elevador chega, abre-se e, dentro -Buda seja louvado - abrigava-se sob um chapéu de abas largas a mais bonita euro-asíática que me foi dado alguma vez ver. Com o sentimento de impunidade que o começava a ganhar e graças aos parcos dotes linguísticos que adquirira eis que o nosso sonsinho atira em francês legítimo - "Oh qu'il est mignon le petit chapeau!"
E agora, leitoras e leitores, agarrem-se. Então não é que a proprietária do chapelão se desfaz num sorriso grato e tórrido em direcção àquele maçarico mais vermelho que o ás de copas, lhe agradece o piropo, pergunta-lhe, num francês oriental, nome, origem e estado civil, declara-se apta a almoçar com o meia-leca em mesa recatada como se nós dois restantes nem sequer existíssemos ou, existindo, não passássemos de paisagem, e, ala que se faz tarde, levitaram os dois num voo vermelho e nupcial para fora da gaiola do elevador.
No dia seguinte, eurasiana a tiracolo, corando a destempo, Danny le Rouge comunicou-nos, com a doce determinação dos tímidos, que desistia da Suíça, da neutralidade, da Nestlé e das lições de espanhol. E pedia, em nome de uma antiga amizade de quinze dias, que assinássemos por ele nas aulas da manhã...
Gaudeamus igitur!
vai esta para a amável Madame Min e, se ela o permitir para os companheiros e amigos bloguistas que desconfiam da Europa que eu defendo. Que querem? A minha Europa é esta que aqui vou pintando com dois toques de nostalgia e de fantasia, farto que estava de pide, fado, futebol e licença para uso de isqueiro...