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Incursões

Instância de Retemperação.

Incursões

Instância de Retemperação.

Cidade

Incursões, 02.01.06
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes e não vejo
Nem o crescer do mar nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Cidade a elevar-se

Sílvia, 02.01.06

A cidade eleva-se ao pôr-do-sol,
sobe e mergulha a cabeça na noite.
O Atlântico por baixo,
o sol dentro dele apagando-se,
e a cidade a subir para os rolos de céu negro.
Observo a cidade decolando na noite;
distante de mim meu rosto voa
tomado pela chama de tudo que é vivo.
Meus olhos miram o horizonte,
a transformação das coisas,
a bebê-las lentamente,
esquecidos das pessoas que se arrastam
pelo pó.

O poema se escreve.
Existe no silêncio,
independe das minhas palavras.


Silvia Chueire

Morreu um MÉDICO

Incursões, 01.01.06
Na minha agenda deste ano escrevi ainda o teu nome. Recusava acreditar no inevitável, que chegou ontem, pouco faltava para o fim do ano. Prefiro pensar que partiste de mansinho, assim como quem dá a mão e que mesmo a Morte se comoveu, ao passar ao pé dos bancos corridos onde te esperavam os doentes que atendias de graça todos os sábados de manhã no Hospital de Santa Marta. Que te terá perdoado mesmo aquele desconhecido, que ainda há uns dias lhe roubaste num café em Paris, estavas tu algaliado, devastado pela radioterapia. Que te terá perdoado o teu olhar de satisfação por mais uma vitória, a última.
Jorge Quininha, hei de sempre lembrar-me de ti, quando ouvir dizer que o que toda a gente quer agora é enriquecer, ter honrarias, subir na vida e esquecer os que sofrem. Não tu. Com a tua modéstia habitual, quase não se dava por ti, continuaste a recusar fechar os olhos à dor alheia e à injustiça. O mesmo espírito que te levara, já nos tempos de estudante, a lutar por uma sociedade verdadeiramente justa e fraterna, correndo os riscos de quem combatia o fascismo e o colonialismo.
Obrigado por teres sido o que foste. Até sempre!

PS. O funeral do Dr. Jorge Quininha realiza-se amanhã, dia 2 de Janeiro, no cemitério de Aveiro, pelas 15 horas

E pronto... outro ano

d'oliveira, 01.01.06
Então um cristão, ou algo parecido ou, como é o caso, nem isso, vai com a legítima passar o ano a casa da Laurinda e do Manel Simas que promete farta bacalhoada, doçarias mais perigosas do que uma epidemia de gripe aviária e pimba: atiram-lhe logo à cara com uns nacos de polvo à galega (polvo a la féria, Laurindinha, a la feria...) como entrante e começa logo por declinar que cefalópodes , está quieto ò mau, comam-no vocês que nanja eu. E sobradas razões tenho, que nos tempos da infãncia descuidosa, ia a a pedibus calcantibus para escola de Buarcos, lá nos confins da praia, e passava rente a uma seca de tal bicheza. Jesus, Maria, José! Credo! Abrenúncio! Aquilo cheirava pior que mal. Tresandava.
Para entreter a "malvada" fui roendo uns punhados de caju que a dona da casa misturara com frutos secos. Para o caju não se sentir desacompanhado mais um copinho dum tinto alentejano que estava que fervia. Os restantes deglutantes (ou seja a fifi, enteada do escriba que estas traça, e o furioso caçador Alváro maila a sua mais que tudo) iam louvando as qualidades do octópode... com esta marabunta esfaimada aquilo teve a virtude de durar pouco e passou-se pois, com forte aprazimento, para as coisas séria. Entrou em cena um bacalhau desses do antigamente quando os pescadores os apanhavam à linha em dóris minúsculos, no meio dos nevooeiros cerrados da Terra nova, ao som distante da ronca. Ah bacalhauzinho duma figa, anda cá que já te conto uma história triste. E que bom que estava o malandrinho, posta alta, lasca a descascar-se prazenteira,uns grelos cozidos como Deus manda, e o eterno vinho tinto, esse líquido que nos distingue dos do norte frio e que significa dez mil anos de trabalho, de sabedoria, de civilização.
Já as boquinhas dos mastigantes começavam a debitar as primeiras histórias, a minha Crazy Grazy, já se ria de lágrima ao canto do olho, aquela, quando se ri, é como o jacaré: chora. O caçador Alvaro, inimigo jurado do bacalhau, contentava-se com uma perdiz, devidamente assada que ele mesmo terá caçado (!!!???)e cozinhado(???).
A partir deste momento foi a desbunda.
Entraram na mesa um pancadão de doces: arroz doce, aletria, bolo rei, bolo algarvio de amendoa e ovos (quem o comeu jurou que aquilo podia rebentar o fígado de um elefante), brigadeiro de chocolate e umas rabanadas que nem vos digo nem vos conto. E duas imensas saladas de frutas... E.. sei lá que mais.
Modestamente a dona da cassa prevenia que lá mais para o Verão haveria queijo da Serra e ... olhem até já me esqueci.
A clientela, empazinada aceitou que se ligasse a televisão que como de costume tinha um programa digno de um jogo de solteiros contra casados: um horror. Se o mau gosto valesse dinheiro, Portugal era mais rico que a Suiça!
Pronto, lá soaram as doze badaladas, lá se fizeram os votos da praxe e a conversa ganhou corpo. O que os camaradas Simas e Álvaro contaram da sua estravagante juventude académica, dava para escrever pelo menos três capítulos duma enciclopédia erótica dos anos sessenta. As consortes ouviam-nos com a indeferença que trinta anos de casamento dão a estas memórias quase póstumas. E lá chegaram os queijos. E houve quem comesse. E houve quem bebesse. E houve tempo para destruir o governo actual, o sistema de segurança social, os candidatos á presidência da república, a ileteracia reinante, o sistema nacional de saúde e o consumismo desbragado que se vê por aí.
Às três e meia da matina, oito casais de meia idade chegaram à conclusão que já não tinham vinte anos, e resolveram recolher a quarteis. Ficou por encetar um chouriço Revilla de meio metro que a Laurinda propunha como fim de festa: os temps já não são os mesmos. A melancolia também não.
Mas...no fundo da noite, como uma pertinaz vela acesa, a amizade fez acto de presença. E a ternura. E a vida. E a esperança. E os amigos. Presentes e ausentes: todos. E vocês. Bom ano

mcr fecit, pelas 10 horas e vinte da madrugada de domingo, 1 de Janeiro do ano da graça de 2006

Crónica de um ano que começa

Incursões, 01.01.06
Foi um 31 daqueles, porque quando acordei ontem, desalmado, estava convencido de que era ainda dia 30 e que a passagem de ano era só a seguir e só percebi que não era quando vi que estava tudo fechado e não havia onde almoçar e disse para mim - que merda - é sempre a mesma coisa nos últimos anos.
Fiquei por casa a ler coisas e depois lembrei-me que tinha de jantar e que não tinha combinado nada com ninguém, é sempre assim!, e fui procurar sítios abertos onde pudesse jantar, depois de ter ido levar umas botas à minha filha que ela tinha deixado esquecidas em minha casa e que eram fundamentais vá-se lá saber por quê, mas há coisas que temos de fazer e pronto.
Desatei a enviar mensagens e alguns telefonemas e falei com a Ju, a minha amiguinha querida que estava no Porto com o João, verdadeiro alfacinha que é do Belenenses coisa inóspita como eu ser da Académica e que além disso tem humor e acabei convencido, sim, convencido, porque sou tímido, a ir jantar a Leça a casa do Jorge que eu não conhecia e que adorei conhecer. Também estava a Luísa que nunca sei se é optimista ou pessimista mas que é uma alegria e é jornalista como a Ju e como eu fui, já lá vai tempo e esse não volta, e estava a Carla que é irmã do Jorge e que eu nunca tinha visto mas que vi e que ainda, a esta hora, hora tardia, ainda continuo a ver. A ver, sim, que a imaginação é fértil e eu sou dado a essas coisas de imaginar o que gosto de imaginar.
Demorámos imenso tempo para irmos aonde tínhamos de ir que a cidade estava cheia e fomos, já com baixas porque a Ju e o João desistiram, mas veio a Ana que é uma boa onda e sabe de mim, a uma festa numas caves do Oporto em Gaia onde havia pessoas bonitas mas não resisti e disse que hoje em dia não basta ser bonito, é preciso ter atitude ou se preferirmos ter classe, coisa que escasseia por aí, mas que a Carla tem e eu disse-lhe e ela com classe desmarcou suavemente, mas eu continuo a vê-la por aqui e hei-de vê-la por aí, estou certo disso porque a atitude é assim mesmo.
Pouco ou o acaso pode fazer a diferença entre o tudo e o que é nada e eu hoje percebi isso mais do que nunca, porque estive na eminência de ir jantar a uma área de serviço como já jantei no Natal de 1999, ou começar o ano bem, coisa a que dou importância desde há alguns anos porque a vida é assim e eu espero ter sido claro quando lhes disse, a eles, que era assim mesmo, e porque sinto que o ano começou bem e a Carla tem atitude e é um ano novo cheio de graça, coisa em que não fui tão explícito quando disse, porque não, coisas que todos percebem, eu sei que percebem, porque já todos passaram por aí e sabem que há coisas que não se explicam.
BOM ANO. Para todos. E já agora para mim também. (8 da manhã do primeiro dia do ano da Graça de 2006).

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