Então um cristão, ou algo parecido ou, como é o caso, nem isso, vai com a legítima passar o ano a casa da Laurinda e do Manel Simas que promete farta bacalhoada, doçarias mais perigosas do que uma epidemia de gripe aviária e pimba: atiram-lhe logo à cara com uns nacos de polvo à galega (polvo a la féria, Laurindinha, a la feria...) como entrante e começa logo por declinar que cefalópodes , está quieto ò mau, comam-no vocês que nanja eu. E sobradas razões tenho, que nos tempos da infãncia descuidosa, ia a a pedibus calcantibus para escola de Buarcos, lá nos confins da praia, e passava rente a uma seca de tal bicheza. Jesus, Maria, José! Credo! Abrenúncio! Aquilo cheirava pior que mal. Tresandava.
Para entreter a "malvada" fui roendo uns punhados de caju que a dona da casa misturara com frutos secos. Para o caju não se sentir desacompanhado mais um copinho dum tinto alentejano que estava que fervia. Os restantes deglutantes (ou seja a fifi, enteada do escriba que estas traça, e o furioso caçador Alváro maila a sua mais que tudo) iam louvando as qualidades do octópode... com esta marabunta esfaimada aquilo teve a virtude de durar pouco e passou-se pois, com forte aprazimento, para as coisas séria. Entrou em cena um bacalhau desses do antigamente quando os pescadores os apanhavam à linha em dóris minúsculos, no meio dos nevooeiros cerrados da Terra nova, ao som distante da ronca. Ah bacalhauzinho duma figa, anda cá que já te conto uma história triste. E que bom que estava o malandrinho, posta alta, lasca a descascar-se prazenteira,uns grelos cozidos como Deus manda, e o eterno vinho tinto, esse líquido que nos distingue dos do norte frio e que significa dez mil anos de trabalho, de sabedoria, de civilização.
Já as boquinhas dos mastigantes começavam a debitar as primeiras histórias, a minha Crazy Grazy, já se ria de lágrima ao canto do olho, aquela, quando se ri, é como o jacaré: chora. O caçador Alvaro, inimigo jurado do bacalhau, contentava-se com uma perdiz, devidamente assada que ele mesmo terá caçado (!!!???)e cozinhado(???).
A partir deste momento foi a desbunda.
Entraram na mesa um pancadão de doces: arroz doce, aletria, bolo rei, bolo algarvio de amendoa e ovos (quem o comeu jurou que aquilo podia rebentar o fígado de um elefante), brigadeiro de chocolate e umas rabanadas que nem vos digo nem vos conto. E duas imensas saladas de frutas... E.. sei lá que mais.
Modestamente a dona da cassa prevenia que lá mais para o Verão haveria queijo da Serra e ... olhem até já me esqueci.
A clientela, empazinada aceitou que se ligasse a televisão que como de costume tinha um programa digno de um jogo de solteiros contra casados: um horror. Se o mau gosto valesse dinheiro, Portugal era mais rico que a Suiça!
Pronto, lá soaram as doze badaladas, lá se fizeram os votos da praxe e a conversa ganhou corpo. O que os camaradas Simas e Álvaro contaram da sua estravagante juventude académica, dava para escrever pelo menos três capítulos duma enciclopédia erótica dos anos sessenta. As consortes ouviam-nos com a indeferença que trinta anos de casamento dão a estas memórias quase póstumas. E lá chegaram os queijos. E houve quem comesse. E houve quem bebesse. E houve tempo para destruir o governo actual, o sistema de segurança social, os candidatos á presidência da república, a ileteracia reinante, o sistema nacional de saúde e o consumismo desbragado que se vê por aí.
Às três e meia da matina, oito casais de meia idade chegaram à conclusão que já não tinham vinte anos, e resolveram recolher a quarteis. Ficou por encetar um chouriço Revilla de meio metro que a Laurinda propunha como fim de festa: os temps já não são os mesmos. A melancolia também não.
Mas...no fundo da noite, como uma pertinaz vela acesa, a amizade fez acto de presença. E a ternura. E a vida. E a esperança. E os amigos. Presentes e ausentes: todos. E vocês. Bom ano
mcr fecit, pelas 10 horas e vinte da madrugada de domingo, 1 de Janeiro do ano da graça de 2006